O papel das virtudes na construção de um novo paradigma educacional
Pe Nelito Dornelas
Introdução
Nos últimos decênios os termos "virtude" e "virtuoso" perderam sua ressonância e nobreza com as quais eram cortejados antigamente. Passaram a ser vistos como uma roupagem inautêntica ou artificial, servindo-se apenas para ornar a fachada interior das pessoas, demonstrando certa imaturidade psicológica e moral.
Quem melhor traduziu este sentimento de mal estar em relação ao termo "virtude" foi P. Valéry ao afirmar que "a palavra virtude morreu ou, pelo menos, está próximo a morrer. Já quase ninguém as diz. Quanto a mim, ouvia-a muitíssimo raramente e sempre com sentido irônico".
Outro pensador moderno, o moralista Lalande, constatou que "as palavras 'virtude' e 'virtuoso' parecem tender a desparecer da linguagem moral contemporânea. São usados unicamente nas expressões consagradas ou apenas juntam-se a alguma fórmula semântica que exige sua aplicação estética, mesmo considerando seu 'semidesuso'".
A ausência do termo virtude nas mais variadas áreas do saber e, sobretudo, na área educacional confirmam essas análises.
O conceito de virtude tem maior ou menor força expressiva dependendo da concepção filosófica relativa ao ser humano e à sua eticidade daquele que se dispõe a tal tarefa.
Assistimos neste milênio a uma redescoberta e retomada dos estudos e pesquisas nas diversas áreas do saber sobre a virtude e sua influência na conduta social. Portanto, para uma compreensão atual da virtude no horizonte educacional faz-se necessário uma excursão ao nascedouro daquelas exigências virtuosas que modelaram a estrutura psíquica e moral das gerações que nos antecederam.
Considerando a complexidade do tema em questão, farei um corte do mesmo a partir da vertente filosófica grega, da concepção judaico-cristã e dos indígenas Quetchua e Aymara, na tentativa de contribuir com este debate tão urgente e indispensável.
1- Conceito de virtude na filosofia grega
Na antiguidade clássica deparamo-nos com os filósofos gregos debatendo sobre o agir "virtuoso" em contraposição ao agir "viciado" do ser humano e a busca de sua compreensão em vista de contribuir na superação dos vícios e a estruturação de um caráter virtuoso.
O primeiro obstáculo a ser superado foi a percepção imediata de que os vícios e as virtudes parecem ser características quase que inatas ao ser humano.
Desafiados por este obstáculo, Sócrates se põe a desvendar o mistério da virtude, o Arete, numa perspectiva especulativa e se depara com o conhecimento do Bem como o horizonte último da virtude, cuja apropriação se dá na vivência ética da harmonia com a natureza. Em última instância a virtude é a busca do Bem que se dá pela observância da lei natural.
Platão, atraído pelo ideal do Bem propagado por Sócrates, identificado com o Belo, entende a virtude como o equilíbrio e a ordem interior da pessoa que conhece e escolhe o Bem que é sempre o Belo.
Em perspectiva pedagógica, Platão propõe como o ideal do ser humano maduro e virtuoso a conjugação em seu caráter do conjunto das quatro virtudes cardeais: prudência, justiça, temperança e fortaleza.
Aristóteles, em Ética a Nicômano, faz uma reflexão mais orgânica sobre a virtude e a compreende como uma qualidade adquirida e apropriada pelo caráter que a traduz em atitudes morais. Para ele, a virtude é fruto de paciente esforço pessoal. Distingue a mediação entre a eticidade da pessoa na sua intimidade e a moralidade objetiva de suas opções morais.
Para Aristóteles, a característica fundamental da virtude é o "justo meio", isto é, a sabedoria equilibrada e os hábitos que fazem evitar os extremos do excesso e o levam a busca da sobriedade.
Aristóteles analisa minuciosamente o conjunto orgânico das virtudes que ao se tornarem em estruturantes do caráter e traduzidas em atitudes morais, envolvem completamente a pessoa em seu ser e agir.
2- A estruturação da virtude no decálogo judaico
O povo semita viveu, sob a liderança de Moisés, a experiência do Êxodo. Tal fato fora tão expressivo que determinou a constituição de um povo, de uma raça, de uma crença e de uma nação. Entre acertos e desacertos, esse povo se viu obrigado a estruturar um decálogo que ordenasse sua vida social em todas as suas dimensões e faixa etária, como bem o expressa o livro de Neemias (8,2): "todos aqueles que sabem ouvir" – crianças, jovens, adultos, idosos, mulheres, homens, escravos e livres.
Embora assumido como de cunho religioso, o decálogo não nasce em ambiente de culto, mas em ambiente social e educacional, cujo objetivo maior era formar um povo para preservar uma Aliança de amor.
O decálogo, assumido como mandamentos, indicam apoio estruturante do indivíduo e da sociedade como duas mãos a sustentar e indicar o caminho a ser seguido.
As punições nele indicadas para reparar as transgressões, ao estender sua abrangência até "três e quatro gerações" (Ex 20,5) designa a grande família, isto é, as gerações que convivem sob o mesmo teto. Algo parecido vale também para a expressão "mil gerações"(Ex 20,6; Nm 1,16; 1Sm 10,19;23,23; Mq 5,1) que não se refere a uma corrente de descendência imensamente longa através dos tempos, mas é sinônimo de clã, isto é, um grupo de parentes que vivem na mesma época e sofrem as mesmas consequências de um comportamento desvirtuado dos indivíduos que o compõem.
Ao redigirem o decálogo no século VIII a.C., seus autores o atribuem a Moisés, referindo-se às duas lutas por ele e seu povo travadas em vista da estruturação de um povo liberto, cuja constituição deveria moldar uma nação virtuosa que se tornasse espelho para os demais povos da face da terra. Haverão de nos ver e nos perguntar: "que povo tem leis tão perfeitas com este?"
Ao fazerem esta releitura descobrem a existência de duas espécies de maldades desintegradoras do ser humano e do tecido social, materializadas no Faraó. Há um 'faraó' externo e um 'faraó' interno.
Para livrar-se do 'faraó' externo foram necessárias apenas quatro semanas de diálogo pedagógico, táticas de guerrilhas e estratégias de guerra. Mas, para livrar-se do 'faraó' que cada ser humano carrega dentro de si, fora necessária uma longa caminhada pedagógica no deserto por quarenta anos.
Devido sua validade universal e seu caráter atemporal, o decálogo dialoga com as praticas educacionais modernas libertárias, cujos princípios estejam para além dos paradigmas individualistas e subjetivistas que querem nos tiranizar.
Em sua pretensão de abarcar o todo da vida – pessoal e social -, o decálogo, com sua didática de série de dez, foi classificado por Thomaz Mann como a "quintessência da decência humana".
Mesmo consciente dos limites do decálogo, compreensível pela contingência epocal e a evolução posterior da humanidade e de sua autocompreensão, o ethos pessoal e social são assumiodos pelo decálogo como uma unidade virtuosa inseparável.
O segredo do decálogo em sua consistência encontra-se em seu fundamento expresso no prólogo: "Javé não fez esta aliança com nossos pais, mas com todos nós, que estamos hoje aqui vivos" (Dt 5,3).

3- Um programa de vida bem aventurada proposto por Jesus

No Sermão da Montanha, Jesus retoma o projeto original do decálogo e, numa perspectiva pedagógica, aponta os pricipios norteadores de uma sociedade virtuosa.
Traduzindo este sermão para nossa lingua atual, Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS escreve a partir de Roma, neste 11 de setembro de 2013 – dia enigmatico – estas pala

vras:
Bem aventurados os pobres, não por sê-lo ou por acomodar-se à pobreza, mas porque nela e através dela colocam sua confiança no grande tesouro que se esconde para além das honras e riquezas materiais, coisas que aprisionam o coração e a alma, e que são corroídas pela traça e facilmente roubadas.
Bem aventurados os que choram, não porque o pranto seja sinônimo de felicidade, mas porque cada lágrima, dolorida e salgada, traz consigo justamente o sal da sabedoria, acumulado pela provação e pela experiência, o qual faz relativizar o que é secundário e ater-se àquilo que é absoluto e eterno.
Bem aventurados os mansos, não porque a tudo se submetem sem resistência, mas porque têm consciência que o tempo e o silêncio são os melhores conselheiros na aflição, e sabem também que qualquer ação, no momento certo, vem acompanhada pela mão de Deus.
Bem aventurados os que têm fome e sede de justiça, não pela fome e sede em si mesmas, mas porque interpelam a ordem vigente e seus detentores, abrindo o horizonte da história ao futuro e à promessa da Terra Prometida ou do Reino de Deus.
Bem aventurados os misericordiosos, não porque fecham os olhos à injustiça e ao pecado,
Mas porque os abrem em uma nova direção, uma aurora iluminada pelo dom do perdão,
Em que todos terão vida em plenitude.
Bem aventurados os puros de coração, não porque são ingênuos diante do mal que os cerca,
mas porque na transparência do olhar e das palavras são capazes de "ver" o que Deus tem reservado
Para aqueles que o procuram com sinceridade.
Bem aventurados os que buscam a paz, não porque ignoram as tensões, conflitos e tiranias,
mas porque, embora cientes de todos essas contradições, também o são de que o caminho da guerra só faz crescer a espiral daninha da violência.
Bem aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, não porque a perseguição seja um troféu e uma vitória, mas porque, não raro, representa o resultado de quem é capaz de acender uma luz na noite escura, apesar de saber que o mundo prefere as trevas.

4- O Bem Viver, um paradigma pedagógico
O Bem viver é um conceito que visa recriar, diante do fracasso do neoliberalismo, um antigo conceito dos povos andinos Quetchua e Aymará. É um grito por libertação diante da estreita visão antropológica que o neoliberalismo criou e de sua configuração filosófica materialista. O Bem viver tornou-se um projeto social, político, cultural, pedagógico e espiritual estruturante de uma sociedade virtuosa, cuja responsabilidade perpassa as gerações.
Este projeto de vida coletiva ganhou novo conteúdo e nova forma, e sua força foi tanta que foi incorporado às Constituições da Bolívia (2009) e do Equador (2008). Pesquisadores nas mais variadas áreas do saber e movimentos libertários em diversos países têm-se apropriado do Bem viver como uma saída ao projeto suicida, este beco sem saída, este encurralamento ao qual estamos submetidos.
O conceito refere-se a duas palavras com significados semelhantes em Quetchua e em Aymará: sumak muito bom, e kawsay ou camaña conviver. O principio gerador é a vida em harmonia: harmonia consigo mesmo, com outras pessoas do mesmo grupo, com grupos diferentes, com a Pachamama – a Mãe Terra e seus filhos e filhas de outras espécies e com as realidades espirituais.
Constitui uma alternativa econômica ao sistema produtivista-consumista ao afirmar que a Terra não é um grande depósito de recursos naturais a serem explorados para produzir riquezas, mas sim a mãe de todas as espécies de vida. Em vez de extrair / transformar / consumir / descartar, a economia deve ser regida pelo princípio do respeito à Terra. Ela é mãe generosa, e mesmo não sendo rica, nada nega a seus filhos e filhas. Mas nós – gente mimada e insensata – a exploramos, tudo exigindo e nada retribuindo. Mesmo adoecida e desgastada como está hoje, a Terra continua a nos oferecer aquilo que durante milênios produziu e conservou em seu seio. Só o respeito aos Direitos da Terra poderá resgatar sua saúde e favorecer nosso Bem viver.
E para se construir esta sociedade do Bem viver, há que se empenhar na construção da sociedade da paz, cujos caminhos são: para traz, com o nosso passado pessoal e coletivo; para frente, com as gerações futuras; para cima, com as divindades; para baixo, com o ambiente; para a direita, com os vizinhos; para a esquerda, com a família e para dentro, consigo mesmo. E mais: só se alcança o sétimo estágio se nos dispusermos antes a percorrer os seis anteriores.

Brasília – DF, 12 de setembro de 2013.