QUARESMA: TEMPO DE REVELAÇÃO DO AMOR NA CRUZ.
¨Verdadeiramente este homem era Filho de Deus¨ Mc 15,39

A quaresma é um tempo propício para um confronto pessoal sobre as bases do nosso
relacionamento com Deus. Quem é Deus para mim? E de modo particular, que Deus é esse que morre
numa cruz? E o que a cruz nos revela? São perguntas que o evangelista Marcos que nos acompanha na
liturgia deste ano B do ciclo litúrgico, nos ajuda a responder, como nenhum outro, pois aos pés da cruz
declara: ¨verdadeiramente este homem era Filho de Deus¨ (Mc 15,39), ou seja Deus é um Pai que ama e
que doa no seu amor tudo o que tem de mais precioso, seu próprio Filho. Nos faz ver, de modo
particular, o valor dessa doação a obra de Fiódor Dostoiévski: ¨O idiota¨, e o quadro de Hans Holbein:
¨O corpo de Cristo Morto no sepulcro¨.
No contesto do evangelho de Marcos a Paixão (morte) de Cristo representa o ápice ao qual conduz
todo o texto. As palavras iniciais do proêmio, onde Jesus é declarado Cristo e Filho de Deus, encontram
ressonância na profissão de fé do centurião aos pés da cruz, quando na nulificação total do Filho do
homem se desvela a sua verdadeira identidade de Filho de Deus. Três manifestações da paixão tinham
sido feitas na fase do ministério público de Jesus, na qual o ¨divino Mestre¨ havia procurado de predispor
os discípulos ao escândalo da cruz, e os tinha convidado a segui-lo na mesma estrada.
A vida de Jesus é uma epifania secreta que somente com a proclamação da morte e ressurreição se
revela de forma justa no Evangelho. Jesus fez consigo mesmo e com os seus discípulos o processo de
conscientização do caminho ao Gólgota, deste processo ganha sentido o segredo messiânico de Mc.
Porque toda a ação de Jesus é evidência daquilo que vem operado no mistério da sua morte e
ressurreição, tal ação é caracterizada pela transmissão da fé, que em Mc é um relacionar-se que
compromete as pessoas e a História. Por isso não basta seguir o ¨Cristo dos milagres¨ e da glória, se deve
chegar ao ponto de comprometer-se com a sua pessoa concreta, sendo capaz de se doar até à cruz, por
amor. Os seus discípulos são chamados a condividir esta Vida\Via de Jesus, professando com fé aquilo que
somente o centurião, diante da cruz, reconhecerá: que verdadeiramente neste homem que apenas
espirou, Deus manifestou entre os homens a sua presença! A narração evangélica da paixão, segundo Mc,
não induz ao elemento emotivo, não cede à tentação de querer comover, nem à polêmica anti-semítica,
quer unicamente aprofundar a fé.
Por fim, podemos dizer, que os numerosos escritos dos milagres do evangelho de Mc não tem
nada haver, como pensam alguns esegetas, com uma teologia da glória, que deverá ser corrigida pelo
evangelista com a narração da paixão. Ao contrário, na pessoa de Jesus, Mc descreve como a angústia,
que faz de cada homem um prisioneiro de si mesmo condenado a ser sempre mais longe de Deus, e não
crer no seu amor, venha superada, devido, uma fé em Deus como Pai. Mc apresenta Jesus como aquele
que luta contra a angústia humana em todos os seus aspectos, para que de agora em diante nenhum
sofrimento na vida possa nos excluir do amor do Pai.
Para compreender a visão do mundo de Mc, é necessário que se reproponha aquela interrogação
sobre o ser humano que vem formulada nas horas da sexta-feira santa, enquanto o sol se escurece e a
terra é agitada pelo terremoto. É uma visão, assim aterradora como aquela que experimentou
Dostoiévski, quando viu no Kunstmuseun de Basilea o quadro de Hans Holbein, ¨O corpo de Cristo morto
no sepulcro¨. No seu romance ¨O idiota¨, ele descreveu o eco desta horrível cena na pergunta curiosa e
particular: se era aquele o corpo (e deveria ser exatamente assim) que viram os seus discípulos, e
sobretudo os seus futuros apóstolos e as mulheres que o tinham seguido e assistido sua morte perto da
cruz que acreditavam nele e o adoravam, como podiam esses acreditarem, olhando um cadáver reduzido
daquela forma, que aquele mártir seria ressuscitado? Vem espontâneo pensar que se a morte é assim

terrível e assim potentes são as leis da natureza, como é possível vencê-las? Como conquistar essa vitória
se não conseguiu nem mesmo Aquele que tinha superado as leis da natureza (caminhando sobre as águas
ou ressuscitando Lázaro) durante a sua vida?
O protagonista do segundo grande romance de Dostoiévski, ¨O idiota¨, publicado em 1869, é o
príncipe Míchkin, último herdeiro de uma grande família decaída. O personagem é uma criatura
espiritualmente superior, cresceu numa cidadezinha suíça onde é curado de uma doença nervosa, que o
leva a ser indefeso e confiante no próximo.
Retornando em Rússia, se encontra com uma sociedade doente e cruel, onde a sua atitude
benévola e inocente é considerada de idiota. É companheiro seu de viagem, Rogójin, um jovem
exuberante e violento, que narra o seu amor louco para com a bela Nastássia Filíppovna. Chegando a
São Petersburgo, Míchkin vai morar com o general Epantchin, seu parente, e descobre que o secretário
deste, Gánia, quer esposar Nastássia, atraído pelo dote do matrimônio. Na noite da decisão aparece na
casa de Nastássia, Rogójin que oferece uma cifra igual a do dote, para que ela rejeite Gánia e torne-se sua
amante. Míchkin, misteriosamente atraído pela mulher, se declara pronto a esposá-la para tirá-la daquele
mercado humilhante. Consciente da absoluta e profunda bondade do príncipe, Nastássia hesita por um
longo tempo e se sentindo indigna dele, se abandona a Rogójin, o qual porém sabendo os motivos
daquela escolha e com ciúmes do relacionamento ambíguo que liga Míchkin a Nastássia, tenta de
assassinar o amigo, mas termina por matar a mulher desejada. Com o cadáver de Natasja em mãos,
Rogosin vela uma noite inteira, junto com Míchkin embaixo de uma cópia do quadro de Hans Holbein
com Cristo morto no sepulcro, pendurado na parede, que soçobrar num estado de demência total,
retorno final ao estado de pureza da infância como rejeição ao mal do mundo, único modo de auto
defesa possível para o protagonista. O tema central da obra é o esplendor da beleza, a pureza subversiva
do bem, que se encarna na figura do principe Míchkin.
Naquele quadro se vê próprio o corpo, o cadáver de Cristo, completamente nas mãos da morte.
Esta cena da morte de Jesus que vem representada por Hans Holbein golpeou Dostoiévski, ao ponto de
vendo aquela pintura, chorar por horas junto com sua mulher, e dizer ¨se Ele próprio tivesse visto assim o
seu corpo, eu me pergunto se era encorajado a dizer que depois de três dias seria estado ressuscitado¨.
Ele que durante a sua vida parecia ter tido poder sobre a natureza aparece alí, na morte, entregue
completamente. Dostoiévski recorda que os artistas são habituados a representar Cristo, quando vem
tirado da cruz, com traços de extraordinária beleza no seu rosto, ao contrário, nesta pintura não tem nem
sombra de beleza, ou melhor, é exatamente presente, aquela beleza que salvará o mundo, ou seja o
Amor.
No quadro de Holbein se representa um verdadeiro cadáver de um homem que sofreu, antes da
sua crucificação, torturas terríveis sem fim; Dostoiévski diz ainda ¨eu sei que a Igreja cristã estabeleceu
desde o início de sua existência que o Cristo não sofreu em maneira simbólica, mas real, enquanto
também o seu corpo na cruz esteve subordinado totalmente à lei da natureza.¨
Se pode constatar que ninguém é capaz de reconhecer a ¨verdade do evento Jesus¨ durante a sua
vida: Pedro, que procurou confessar Jesus como Messias não tem a permissão de comunicar aos outros a
sua convicção, porque se trata de uma tentação que Jesus a rejeita sempre. Somente o centurião romano,
que assiste à morte de Jesus sob a cruz, chega a esta convicção que tudo transforma: ¨Verdadeiramente
este homem era Filho de Deus¨, e é somente na aurora da manhã de Páscoa que o anjo no sepulcro
enviará as mulheres em Galiléia com o anúncio da ressurreição do Cristo, aquele que com a sua vida e
morte, nos precedeu uma vez por todas nos espera, daquele momento, neste lugar, no qual nos diz pela
primeira vez a palavra de conversão: ¨vem e segue-me¨.

Diante daquele quadro, diz ainda Dostoiévski, e como poderiam ter acreditado aqueles discípulos
diante de um corpo assim destruído, que aquele corpo, aquele cadáver seria ressuscitado? Ao visitador, o
quadro de Holbein se apresenta, no museu, quase ao improviso. Mas quando a atenção cai sobre aquele
corpo martirizado qualquer outra imagem vem anulada. Chama atenção a exatidão com que foi retratado
a catástrofe que se abateu sobre aquele corpo: o rosto é escuro, o olho e revirado, vítreo, a ferida aberta
no pé, vista de perto, parece um buraco, a mão é pálida, a boca aberta. Síncope, lacuna, tempo vazio,
são as expressões que se aproximam ao sábado santo. E uma outra expressão, ainda mais radical, fala de
¨morte em Deus¨. Aquele corpo, pálido, inchado, sangrante, rendido à morte, da morte parece sofrer o
domínio. É destinado a ressuscitar o cadáver pintado da Hans Holbein? A putrefação se levanta das
extremidades dos pés e das mãos. E com essa, se espande o nada, que oprime sobre o Cristo como a
pedra que sela o sepulcro. O abandono é aqui no seu ponto máximo. Não na cruz, mas aqui, na absoluta
solidão do sepulcro. Nesta solidão se consuma a morte de Deus. Hans Holbein a repreende, e Dostoiévski
representando-la na figura de Myskin, apresenta o significado da doação de Jesus, até a morte.
Mesmo com a crueldade dos fatos narrados, é uma grande paz que se difunde na alma. Ele é o
elemento alter, o outro, o imprevisível, (encarnado em um personagem) que se mostra na narração de
Dostoivskj, como se Cristo tivesse descido do quadro para diminuir a pena do pecador, de cada um de
nós. Mc o apresenta como traidor, ou sendo mais fiel ao testo grego, é o ¨consignante¨ (paradi,dwmi)
aquele que se entrega. Ele que conhece bem o caminho da dor vivido por nós, torna-se mais próximo de
nós, que nós mesmos. O Cristo de Holbein é o idiota de Dostojevky.
Este ¨abaixamento¨ (evke,nwsen), como nos mostra Mc que somente é compreendido
verdadeiramente na experiência do encontro e da descoberta do ¨Jesus histórico¨, e no permanecer com
ele em uma atitude de discípulo que segue o seu Mestre. Mesmo em direção à morte e de cruz. Porque a
morte é a doação total do amor e Ele próprio nos faz ver esta realidade. Jesus é morto enquanto Filho de
Deus, é morto em conseqüência da natureza humana elevada por ele. Quem morre é a pessoa de Jesus
Cristo. E se pode dizer que aquele que fez a experiência de morrer é o Filho de Deus. A morte é garantia
da vida de Jesus, e a sua ressurreição garantia da nossa vida.
Com a história do príncipe Míchkin, herói absolutamente bom, ingênuo e visionário, em contraste
com a indiferença e a crueldade presente nos homens, é a imagem de Cristo que Mc apresenta como
Filho de Deus vindo para tornar-nos filhos de Deus. Se Deus vem a participar da nossa condição humana
à assume de forma real e concreta e a demonstra na morte. Sem a morte a ressurreição não é histórica, e
indigna de fé. ¨Se Deus fosse incapaz de sofrer seria incapaz de Amar¨.