Ação das dioceses

Dom Eugenio Sales

Arcebispo emérito do Rio de Janeiro

Terminou a 8 de fevereiro a série qüinqüenal de visitas do episcopado brasileiro à Sé de Pedro, denominadas de visitas ad limina apostolorum, que tiveram início a 26 de agosto. Os bispos dos regionais Centro-Oeste e Norte 2, que abrangem o Distrito Federal e os Estados de Goiás, Tocantins, Pará e Amapá, foram recebidos pelo santo padre a 7 deste mês. A eles, como de costume, o papa dirigiu um discurso com orientações válidas para todos os integrantes da Conferência dos Bispos do Brasil. Para maior conhecimento dos fiéis, tenho dado divulgação às normas do sucessor de Pedro no cumprimento da missão recebida de Jesus, de ''apascentar o rebanho'' (Jo 21,15).

Tem palavras de reconforto para quem exerce o encargo de pastor nessas imensas regiões: ''Ser bispo nunca é fácil e hoje supõe obrigações, compromissos e dificuldades enormes, complexas e, às vezes, humanamente insuperáveis'' (nº 1). Ao lado da diversidade de cada diocese, existem situações e problemas que exigem uma ação pastoral concorde. Diz João Paulo II: ''Conforta-me saber que esta é a vossa experiência, e que este é também o empenho de vossa conferência episcopal: uma longa e profícua experiência de comunhão e de co-responsabilidade, que vem ajudando vossas dioceses a unirem seus esforços em prol da evangelização'' (nº 2).

Referindo-se ao jubileu de ouro da CNBB, recordou que ela ajudou a ''Igreja que está no Brasil a permanecer ao lado do povo'' compreendendo a sua situação e assumindo as suas causas. Isto leva-nos também a recordar a importância de que se ''a Igreja precisa estar perto do povo (...) deve, sobretudo, aproximar Jesus ao povo, dando-o a conhecer (...). A Igreja, como instrumento de salvação, recebeu de Cristo a missão vital de ir por todo o mundo e pregar o Evangelho'' (Ibidem).

Quanto ao relacionamento entre conferência e seus integrantes: ''A tarefa pastoral do bispo na sua diocese inclui necessariamente a participação ativa nos trabalhos da conferência episcopal, configurando, ao mesmo tempo, seus limites: por parte da conferência, devendo esta se ocupar daqueles assuntos que necessitam ser por ela conduzidos, de acordo com seus estatutos, para o bem do conjunto das dioceses; e limites, também por parte da dedicação pessoal de cada bispo (...) de acordo com os benefícios que redundarão para todas as dioceses'' (nº 4). Lembra um outro fator a ser tomado em consideração: ''Tenham em conta, porém, que o excesso de organismos e de reuniões, obrigando muitos bispos a permanecerem freqüentemente fora das próprias igrejas particulares (...) tem conseqüências negativas''. A seguir o papa indica o caminho a ser seguido. Por isso, foi indicada explicitamente a necessidade de evitar, além da excessiva multiplicação de organismos, a burocratização de órgãos subsidiários e comissões que continuam ativas no período entre as reuniões plenárias; destarte, esses órgãos ''existem para ajudar os bispos e não para ocupar o lugar deles'' (motu próprio ''Apostolos Suos'', 18 nº 3).

Recentemente, foi feita uma revisão dos Estatutos da CNBB, dentro das diretrizes da Carta Apostólica, sob forma de motu próprio, ''Apostolos Suos'', pois ''deve estar a serviço da conferência e de cada um dos ordinários, para pôr em execução as decisões da assembléia geral e, quando for o caso, do conselho permanente (...). Por isso, confio no vosso zelo pastoral, a fim de que seja evitada qualquer discrepância relativa às normas estatutárias aprovadas'' (nº 4).

Ao analisar a importância e a responsabilidade da conferência episcopal, o sucessor de Pedro recorda a dimensão continental do Brasil e o dever de preservar as características do povo de Deus: ''comunhão de vida, de caridade e de verdade'', na expressão do Vaticano II em ''Lumen Gentium'' (nº 9). Diz o papa: ''A todos cabe o direito de receber de forma unitária e homogênea não só a verdade revelada mas o pensamento comum do episcopado nacional, através das declarações feitas em nome da Conferência dos Bispos''. E faz veemente súplica: ''Apelo, portanto, ao vosso sentido de responsabilidade nos pronunciamentos realizados através dos meios de comunicação social, em representação da mesma Conferência. O fato de uma comunicação ser de inteira responsabilidade pessoal, conforme indicam vossos estatutos (cap. III, art. 131) não exime a coerência doutrinária e a fidelidade ao magistério da Igreja (...) cabe uma sintonia ainda maior quando se trata de analisar, nas diversas instâncias da conferência episcopal, assuntos de dimensão nacional, que repercutem nas diversas pastorais diocesanas''(n. 5 e 6). As conferências episcopais assumem a responsabilidade por suas decisões ''pelos reflexos inevitáveis na Igreja universal. O ministério petrino do Bispo de Roma permanece e garante a sincronização da atividade das conferências com a vida e o ensinamento da Igreja universal'' (nº 6).

O santo padre conclui seu discurso com algumas advertências em relação a posições errôneas e à luz da doutrina católica. Infelizmente, alguns se infiltraram em ambientes que, em vez de se converterem à Igreja de Cristo, usam indevidamente o nome de católicos.

Diz o papa: ''Por isso é necessário considerar que a ação pastoral não pode reduzir-se a um certo 'pastoralismo', entendido no sentido de desconhecer ou atenuar outras dimensões essenciais do mistério cristão, entre elas a jurídica. Se a pastoral dilui qualquer obrigação jurídica, relativiza a obediência eclesial, esvaziando o sentido das normas canônicas. A autêntica pastoral jamais poderá ser contrária ao verdadeiro Direito da Igreja'' (nº 6). Alerta o papa para a existência de forças de divisão e exorta à sintonia fraterna no âmbito da Conferência e com o sucessor de Pedro. E, por fim, manifesta a esperança de que ''seja construída a unidade na verdade e na caridade para que possais responder aos grandes desafios da hora atual'' (nº 7).

O conjunto dos pronunciamentos de João Paulo II no decorrer das visitas ad limina constitui um valioso material para exame de consciência e preciosa oportunidade de decisões em favor da vitalidade da Igreja Católica no Brasil.

[15/FEV/2003]

O desrespeito à vida

Dom Eugenio Sales

Arcebispo emérito do Rio

Tudo que se relaciona com a vida é algo fundamental sob qualquer ângulo que seja tomada. Para o cristão, o assunto adquire valor especial, pois Jesus assim se designa a si mesmo: ''Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida'' (Jo 14,6). Lemos nos Atos dos Apóstolos (5,20) que Pedro e os apóstolos, isto é, a Igreja tem com missão ''anunciar corajosamente a Vida''. Vivemos em um mundo de contradições: luta-se contra a morte, a fome, as doenças, a guerra e, por vezes, as mesmas pessoas combatem este valor divino.

Essas reflexões me vêem à mente quando tomo conhecimento das cifras de assassinatos em nossa cidade, da campanha enganosa de Sexo Seguro contra o HIV, da morte de um ser humano inocente e indefeso pelo aborto.

Cresce a violência urbana entre nós. No dia 9, foram divulgados pela mídia os seguintes dados: ''Mais da metade dos desaparecidos no Rio tem envolvimento com drogas: viciados são as principais vitimas.'' Cerca de 800 pessoas desaparecem por ano vítimas do tráfico de estupefacientes nesta cidade. A afirmativa é da Delegacia de Entorpecentes e de Inteligência da Polícia Civil, para explicar o aumento de 72% do número de desaparecidos na capital, de 1992 a 2002. Nos últimos 11 anos foram registrados 15.626 casos. Outro aspecto da gravidade do assunto: ''as execuções têm requintes de crueldades, muitos corpos são queimados''. No dia 10, próximo à residência, deparo-me com um automóvel incendiado na noite anterior. Como não era o primeiro caso no mesmo local, fui verificar. Sozinho, abandonado, estava o corpo carbonizado de um filho de Deus. No dia seguinte, à mesma hora, ao transitar outra vez naquela via pública, o corpo continuava à espera de um transporte. Insisti na remoção e fui atendido. Isto é apenas a ponta de um iceberg, o desrespeito à vida, ao cadáver de alguém criado à imagem de Deus.

Outra afronta à dignidade da vida humana é a campanha denominada Sexo Seguro.

No dia 29 de janeiro, leio na imprensa local: ''Camisinha de time é falsificada, a informação é da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), por ter, no dia anterior, interditado o lote de preservativo nº 06602-MD. A associação Brasileira de Combate à Falsificação (ABCF) informou a irregularidade à Anvisa que está recolhendo o produto em todo o país.'' A 17 de julho de 2000, eu publicava o seguinte: ''A 12 de fevereiro do ano passado um importante jornal de circulação em todo o Brasil, publicou uma notícia sob o título: 'Instituto resolve recolher do mercado um lote de preservativos reprovados em teste'. Tratava-se de um lote, importado e examinado pelo Inmetro. A marca é a terceira em venda no país.'' Há, portanto, camisinhas ineficazes, embora a campanha fale de ''sexo seguro'', o que é inverídico. Há resistências em aceitar a verdade. Por isso se recorre a subterfúgios. Assim, o declínio de mortes causadas pela Aids, em várias partes do Brasil, é atribuído ao crescimento do uso dos preservativos, mas se omite o outro aspecto: o aumento dos infectados. Ele demonstra a falsidade do esforço publicitário baseado no chamado ''sexo seguro''. Transmite uma falsa tranqüilidade, pois o preservativo, em certa proporção, se rompe em uso e, em conseqüência, mais um pode ter sido condenado à morte.

Merece profunda reflexão no Brasil este trecho da palestra da doutora Margaret Ogola, no Congresso Mundial das Famílias, em Genebra, realizado em novembro de 1999. A doutora Margaret é diretora- executiva da Family Life Coumeling Association of Kenia e diretora médica do Hospital Cottolengo para órfãos do HIV positivo. Diz ela: ''Um dos piores aspectos dessa epidemia é a insistência de países ocidentais pelo preservativo, colocando-o como o único remédio ou escolha (...). Esta propaganda dos países ocidentais convenceu milhões de jovens africanos de que o preservativo é sexo seguro. E a reação desses jovens, quando eu, médica, tenho de lhes dizer que eles se infectaram, que têm o HIV, é de partir o coração. Eles me perguntam: 'Mas (...) não era sexo seguro?'.''

Devemos reconhecer que a propaganda contra o HIV, apresentando o preservativo como único método de preservação da enfermidade, não é correto. Queiram ou não, a abstinência sexual, o parceiro único e imune do vírus deveriam ser incluídos e com prioridade. Isto não é exigência apenas da moral, mas é também do bom senso. Entretanto, não há uma só linha de advertência. Não podemos negar uma verdade, pois o sexo com camisinha não é inteiramente seguro e, ao despertar uma esperança, promove a promiscuidade sexual: fator importante na propagação da enfermidade. Os aplausos à atitude adotada por organismos oficiais simplesmente mostra a força da atmosfera de erotismo que nos envolve. A imoralidade reinante destrói os valores da família e causa desmoronamento da estrutura social. Atinge a fonte da vida e leva à morte.

Ao lado da violência, da epidemia do HIV, com milhões de mortos e infectados, sem uma vacina que evite o contágio ou medicamento que restitua a saúde, alinha-se o aborto provocado. Ele corta a existência de um ser humano indefeso, inocente, pois não tem culpa de ter sido concebido. Irmãos nossos, deficientes físicos ou mentais, são eliminados antes de verem a luz do dia.

A deformação ou insensibilidade moral dos que defendem essa causa participa da gravidade do abortamento.

A 25 de março, solenidade da Anunciação do Senhor, no ano de 1995, veio a lume um documento de extraordinário valor. Refiro-me à ''Carta Encíclica do Santo Padre João Paulo II'', dirigida aos bispos, aos presbíteros, diáconos, aos religiosos e religiosas, aos fiéis leigos e a todas as pessoas de boa vontade sobre o valor e a inviolabilidade da vida humana: ''A voz do sangue do teu irmão clama por mim desde a terra'' (Gn 4,10).

A lei santa de Deus deve ser respeitada.

[22/FEV/2003]

Uma Igreja Católica viva e atuante

Dom Eugenio Sales

Arcebispo emérito do Rio

Neste mês de fevereiro veio a lume o Anuário Pontifício 2003, com os dados estatísticos mais recentes da Santa Sé. Por eles pode-se constatar o crescimento ou não dos vários setores da Igreja Católica, além das informações úteis sobre a vida da Instituição. Ao ser apresentado ao Papa, foram divulgados alguns números que bem merecem ter maior divulgação. Assim, os fiéis tomam maior conhecimento da obra fundada por Jesus Cristo e à qual eles pertencem. Eis alguns elementos que compõem a realidade eclesial.

A Santa Sé, hoje, mantém relações diplomáticas com 175 países. O última a ser estabelecida foi com o Catar. Os batizados na Igreja católica, de 757 milhões em 1978 são, em 2001, 1 bilhão e 61 milhões. Especificando por Continente: na África registrou-se um aumento de 148% neste período. Na Ásia, América e Oceania a expansão foi notável. Na Europa, o número permanece estável. As pessoas que se dedicam às tarefas pastorais na Igreja são 4.270.069, assim distribuídos: 4.649 bispos, 405.067 sacerdotes, dos quais 266.448 diocesanos, 29.204 diáconos permanentes, 54.970 religiosos professos não sacerdotes, 139.078 missionários leigos, 2.813.252 catequistas. Além das religiosas de vida ativa, há 51.973 monges de opção contemplativa.

Os candidatos ao sacerdócio aumentaram entre 2000 e o ano 2001, passando de 110.583 a 112.244. O aumento significativo se registra na Ásia, África e na América enquanto na Europa e na Oceania tem havido ligeiro regresso.

Repetidas vezes, notícias negativas, mesmo que sejam verdadeiras (o que nem sempre acontece), são com freqüência apresentadas ao público sem a contrapartida de uma realidade viva e altamente positiva como esses dados nos fazem compreender. Daí resulta, em alguns católicos, uma sensação de inferioridade por eles atribuídos à Igreja. Para isso concorre a escassa divulgação das realizações de modo particular, na área social, dando uma impressão errônea bem inferior à verdade. Isso costuma ocorrer com os que pouco participam da atividade comunitária católica.

A outra causa do pessimismo é a ignorância acerca da doutrina cristã. Isto leva a um distorcido conceito do papel da vida cristã como fermento da sociedade ou é conseqüência de uma interpretação falsa das palavras de Jesus Cristo: ''Não saiba a sua mão esquerda o que faz a tua direita'' (Mt 6,3). Esquecem-se de outras expressões como a referente à luz que deve ser posta sobre o candeeiro para iluminar ao derredor (cf Mt, 5,15ss). Sempre que se divulga uma realização para honra e glória de Deus e não dos homens, estamos cumprindo nosso dever.

Sem dúvida, vivemos em nossos dias uma Igreja Católica florescente embora não faltem sombras decorrentes das limitações humanas de seus integrantes. Em dois milênios de história, de sua fundação por Jesus até os dias atuais, tem passado por muitas vicissitudes a obra de Cristo. Evidentemente, há falhas em conseqüência da fragilidade humana. A Igreja é santa e pecadora. Desde o século XIX até hoje, há uma seqüência ininterrupta de grandes vultos que têm ocupado a Sé de Pedro. É certamente injusto o que se diz a respeito de Pio IX, Pio X e mais recentemente Pio XII, este sobre o silêncio diante de Hitler, pois a realidade, com segurança, é outra e altamente favorável a esses grandes Pontífices. Essa longa história e a sobrevivência a tantas turbulências, como na Revolução Francesa quando julgava-na definitivamente derrotada, eis que surge a Igreja em toda sua vitalidade. Para nós, católicos, a explicação está no poder de Jesus Cristo que lhe prometeu a sobrevivência a todas as adversidades. Em conseqüência, gera uma profunda paz diante das dificuldades que nos afligem. Em meio às vicissitudes do momento atual, como são importantes e nos dão segurança e tranqüilidade as palavras do Senhor, dirigidas ao chefe dos Apóstolos: ''Simão, Simão, eis que Satanás vos reclamou para vos triturar como ao trigo, mas eu roguei por ti para que a tua confiança não desfaleça; por tua vez, confirma os teus irmãos'' (Lc 22,31ss).

Essas considerações nos levam a um hino de ação de graças de maneira particular pelo atual Pontífice que no próximo mês de outubro celebrará seu 25º aniversário de Pontificado.

Alguns fatores, nos tempos presentes, promovem o surgimento de ataques à obra de Cristo. Correntes de pensamentos de cunho subjetivo facilitam as mais estranhas e absurdas conclusões, pois cada um, nessa concepção da realidade, organiza a seu bel-querer a religião que lhe apraz ter como verdadeira. Notemos também a aceitação da libertinagem como se fosse autêntica liberdade. Utiliza falsamente o nome de católico quem não aceita o ensinamento de Jesus Cristo e nem acata a interpretação da doutrina por aqueles a quem foi confiado esse mister.

Todas essas considerações nos levam a manter um atento espírito crítico, de modo particular por vivermos em um ambiente globalizado, que proporciona facilidade e rapidez de comunicação em todo o universo. O progresso existe para o bem e para a verdade e não em favor do mal e do erro.

Em decorrência, mais do que em outras épocas, faz-se mister a autenticidade na prática de nossa Fé. Cresceu muito a importância do leigo que passa de espectador para ator nas atividades pastorais. Para ele exercer o papel que lhe é confiado, necessita de adequada formação. Devemos estar sempre alerta para o ''fenômeno'' de que eclesiásticos ocupem o lugar de leigos e estes assumirem uma mentalidade clerical em suas atividades.

Os dados apresentados no início, com a eloqüência dos números, nos mostram uma Igreja Católica viva e atuante. E nos convidam a cumprir nosso papel no momento presente.

A estrutura da Instituição criada por Cristo e integrada por criaturas humanas trás em si posições conflitantes. Deus concedeu ao homem o gozo da liberdade - o mais nobre de seus predicados. Para seu reto uso, Ele o remiu por sua morte de cruz e assegurou a força da graça divina. Uma só coisa se faz necessária, uma resposta generosa à proposta de Cristo, de levar a todas as gerações, séculos afora, sua mensagem salvífica.

[01/MAR/2003]

Renovação da vida religiosa

Dom Eugenio Sales

Arcebispo emérito do Rio

Um momento particularmente rico para a Igreja Católica no Brasil tem sido a visita qüinqüenal de nosso episcopado ao sucessor de Pedro, a denominada visita ad limina apostolorum. Teve início em agosto último e será concluída no próximo mês de fevereiro. Incluindo os 114 bispos eméritos - isentos de tal obrigação -, são um total de 417 sucessores dos apóstolos que, agrupados em regionais, comparecem a Roma. A eles o papa dirige um documento apresentando suas diretrizes como pastor universal. Após acurado exame da realidade religiosa do país e ouvido cada um dos participantes, o santo padre, de modo paternal, comenta e dá suas orientações e determinações. Cumpre a ordem do Senhor: ''Apascenta minhas ovelhas'' (Jo 21,16). Divide os assuntos, mas deixa claro que as diretrizes dadas a um regional da CNBB se destinam a todo o Brasil. Os textos não são breves, pela própria natureza da matéria, que nem sempre é de fácil compreensão. Por isso, tenho procurado sistematicamente apresentar, de forma acessível, as prescrições do sucessor de Pedro. E, para assegurar maior objetividade, transcrevo as próprias expressões do romano pontífice, no que há de essencial. Evidentemente, resta sempre a recomendação de tomar conhecimento do texto integral e comparar esta síntese que tem sido feita com o texto original.

Hoje, como venho fazendo desde o início das visitas, levo aos católicos as normas do santo padre dadas pessoalmente aos Bbspos. Para isso, utilizo redes de televisão, emissoras de rádio, jornais leigos de circulação nacional e a imprensa católica da arquidiocese. Hoje é a vez do discurso do papa João Paulo II aos bispos do Regional Nordeste III, que abrange os Estados de Bahia e Sergipe, pronunciado a 10 de dezembro de 2002.

O tema central são as congregações e institutos religiosos. Diz ele (nº 5): ''Desejo convidar-vos a prestar uma renovada atenção à promoção e ao cuidado da vida consagrada no vosso país''. Antes (nº 2) assim mencionava esse assunto: ''Um lugar especial está reservado no coração do papa e - tenho a certeza - no coração de todos vós, amados bispos, aos consagrados na Igreja''.

Ao se referir às atividades pastorais das comunidades religiosas, destaca os que são exercidos através dos meios de comunicação social. Em conseqüência, faz-se necessária uma boa orientação ''a fim de que não se deixem arrastar por ideologias contrárias ao magistério da Igreja e se empenhem por manter a unidade com a Sé de Pedro'' (Discurso nº 4). Como vivemos em um ambiente profundamente secularizado, o pastor universal convida os bispos ''a prestar uma renovada atenção à promoção e ao cuidado da vida consagrada no vosso país'' (Discurso nº 5). Como em menos de duas décadas, as vocações sacerdotais diocesanas superaram a dos religiosos, é ''urgente estruturar a vasta e capilar Pastoral das Vocações que envolva as paróquias'' (''Novo Millennio Ineunte'', 46). Ele dá normas preciosas: ''Encorajem os responsáveis das congregações e institutos presentes nas suas dioceses a oferecerem aos noviços e às noviças uma formação humana, intelectual e espiritual que permita uma conversão de todo o ser a Cristo (...). As atividades e os programas da Conferência Nacional dos Religiosos devem, antes de tudo, primar pelo reverente acatamento e pela especial obediência ao sucessor de Pedro e às diretrizes emanadas por esta Sé Apostólica''. (Discurso nº 6). O papa volta a recordar a responsabilidade dos superiores maiores e do bispo diocesano, ''que devem ter a possibilidade de um controle e de um efetivo acompanhamento'' (Discurso de 11 de julho de 1995).

O Santo Padre vai fundo no problema: ''Ouve-se falar, às vezes, de refundação de congregações, descurando-se, porém, (...) que se trata, sobretudo, de partir de novo e integralmente de Cristo e de examinar, com humildade, o 'sentire cum Ecclesia' (...). Uma vida religiosa que não expressa a alegria de pertencer à Igreja, e com ela, a Jesus Cristo, já perdeu a primeira e fundamental oportunidade de uma pastoral vocacional'' (Discurso nº 5). Logo a seguir, confia à Conferência Episcopal e a cada bispo, individualmente, uma tarefa: ''Examinareis, sem dúvida, com objetividade e respeito, a crescente escassez de vocações que se está verificando em muitos institutos, enquanto outros florescem continuadamente'' (Discurso nº 6). Olhando em volta, chama a atenção o fato de que, em algumas congregações religiosas, o número de seus membros diminui e em outras, cresce. As explicações dadas não são convincentes ou, pelo menos, a gravidade do assunto conduz a um exame mais profundo acerca da identidade vocacional. Diz o santo padre: ''Com espírito de profunda humildade (...) os religiosos e as religiosas interroguem-se sobre o renovamento proposto pelo Concílio Vaticano II: procuram seguir fielmente e foram produzidos os frutos de santidade e de zelo apostólico que se esperavam? Alguns documentos publicados em anos posteriores, com minha aprovação, sobre a formação nos institutos religiosos e sobre a vida contemplativa foram postos em prática? A renovação da vida religiosa dependerá do crescimento do amor de Deus'' (Discurso nº 6).

Ao terminar, o santo padre trata da importância dos votos de castidade, obediência e pobreza, à luz da realidade atual. Quanto a este, assim se expressa: ''A História ensina que certos casos de declínio no fervor e na vitalidade da vida religiosa estão ligados a um correspondente declínio na compreensão e na prática da pobreza evangélica(...). É fácil cair nas malhas de ideologias materialistas quando o testemunho pessoal não serve de conduta para os demais'' (Discurso nº 7).

Todo o discurso do romano pontífice ao Regional Nordeste III foi centralizado sobre a importância dos religiosos na vida diocesana. O apoio e o estímulo que eles merecem por parte dos bispos é justificado pelo papel que eles têm desempenhado em toda a história eclesiástica, desde o descobrimento do Brasil. O caminho certo está claramente indicado por quem recebeu do Senhor a missão de dirigir sua Igreja. Resta-nos ser fiéis na obediência ao sucessor de Pedro.

[25/JAN/2003]

A contribuição católica

Dom Eugenio Sales

Arcebispo emérito do Rio

A identidade da obra de Jesus, a Igreja, tem sido assegurada, ao longo dos séculos, pela vigilância exercida sobre o depósito doutrinário, confiado por Cristo a Pedro, aos apóstolos e seus sucessores. Isso tem sido realizado em comunhão com a Cabeça desse denominado Colégio Apostólico. Lemos em São Mateus (28,17-20): ''Toda autoridade sob o céu e sobre a terra me foi entregue. Ide, portanto, e fazei que todas as nações se tornem discípulos (...) ensinando-as a observar tudo quanto vos ordenei''. Cristo instituiu sua obra alicerçada sobre os 12 apóstolos, à maneira de colégio ou grupo estável, ''ao qual prepôs Pedro, escolhido dentre os mesmos'' (''Lumen Gentium'', nº 19). São Mateus nos relata as palavras de Jesus (16,18-19.

A visita ad limina é também de grande importância para os leigos e toda a comunidade eclesial. Vêem seus pastores locais irem a Roma, oportunidade para ouvir diretamente do sucessor de Pedro normas e diretrizes, fonte de tranqüilidade.

Seguindo a série desses discursos, vejamos hoje alguns tópicos mais importantes abordados por João Paulo II, no encontro da manhã de 26 de novembro último, com os Regionais Sul 3 e 4 da CNBB, que abrangem as dioceses do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Ele trata do tema: ''Reinem no Brasil uma Justiça e Solidariedade autênticas, que sejam fruto de uma vida cristã coerente''. Suas primeiras palavras são bem elucidativas: ''Formados por uma fé adulta, os discípulos do Senhor são chamados a anunciar e promover, no mundo dominado hoje por crescentes incertezas e temores, as transcendentes realidades da vida nova em Cristo'' (nº 1). Exorta à promoção integral do homem, no diálogo, na compreensão mútua. ''Como recorda a Carta a Diogneto, os cristãos são a alma do mundo'' (6.1). ''Que todo fiel compreenda, com renovada consciência, a sua tarefa de ser alma do mundo'' (Idem).

Ultimamente, com alguma freqüência, alguns indivíduos, na mídia, têm exposto a figura sagrada de Jesus Cristo e sua doutrina ao ridículo, profanando a imagem sacrossanta do Senhor, envolvendo-a em assuntos que beiram a pornografia. Infeliz quem tenta fazer humor às custas da santidade de Deus. Sobre esses e outros abusos, assim se exprime o Papa: ''Num ambiente em que, não raramente, a liberdade da palavra é usada como arma para difundir mensagens contrárias aos ensinamentos da moral cristã, não falte a franca presença pública do pensamento católico'' (nº 2). E adiante, sobre nossa missão: ''A Igreja não pretende usurpar tarefas e prerrogativas do poder político; mas sabe que deve oferecer também à política sua contribuição específica e de orientação acerca dos grandes valores morais (...) A Igreja 'perita em humanidade', não pode renunciar a inspirar as atividades políticas, a fim de orientá-las ao bem comum da sociedade. Uma missão tão comprometedora requer audácia, paciência e confiança (...) A sociedade moderna está marcada por uma evidente desorientação ideal e espiritual'' (nº 2).

O romano pontífice, falando a esse grupo de bispos brasileiros, recorda a urgência do compromisso ético a serviço do homem. Diz ele: ''As experiências econômicas registradas no Brasil a partir dos anos 40 do século passado - substituição das importações, industrialização protegida, ação empresarial do Estado, expansão subsidiada da fronteira agrícola etc - procuram combinar elementos técnicos dos grandes sistemas econômicos então vigentes, favorecendo sem dúvida o crescimento global. Porém estes não acertaram o objetivo fundamental de reduzir substancialmente a pobreza. Os recentes planos de estabilização monetária, modernização tecnológica e abertura comercial, apesar de sua relativa eficácia, permitiram alcançar tal objetivo somente em parte'' (nº 5). Na verdade, pode ter faltado uma concepção ética da vida social. Contudo, ''jamais pode prescindir do empenho institucional e pessoal de todos os brasileiros. Para tal, os católicos, que constituem a maioria da população brasileira, podem dar uma contribuição fundamental''. Essa aguda constatação deve levar a uma reflexão, principalmente os que acusam apenas o governo da permanência da pobreza. A responsabilidade cabe também aos acusadores.

Diante dos males da globalização, abre perspectiva para uma outra forma de globalização solidária, garantias financeiras e comerciais aos mais débeis. Quanto ao Brasil, é otimista: ''Vosso país (...) possui uma economia suficientemente forte que, até hoje, permitiu enfrentar crises financeiras globais (...) deve-se agradecer a Deus, portanto, que existam no conjunto da sociedade os elementos básicos para resolver os problemas sociais (...) É possível trabalhar no Brasil, por uma sociedade mais justa e o compromisso nesse trabalho faz parte das exigências da mensagem evangélica'' (nº 6).

O documento mostra que a dignidade humana transcende os fatores econômicos. Uma visão da economia e dos problemas sociais, na perspectiva da doutrina social da Igreja, não pode estar sujeita ao simples jogo dos fatores econômicos. ''Por outro lado, ajuda a compreender que, para alcançar a justiça social, se requer muito mais do que a simples aplicação de esquemas ideológicos, originados pela luta de classes, como, por exemplo, através da invasão de terras - já reprovada na minha Viagem Pastoral de 1991 - e de edifícios públicos e privados ou, para não citar outros, adoção de medidas técnicas extremas, que podem ter conseqüências bem mais graves do que a injustiça que pretendiam resolver, como no caso de não cumprimento unilateral dos compromissos internacionais'' (nº 7). Comparemos a posição do santo padre com atitudes e declarações de católicos, entre nós.

O sucessor de Pedro diz ainda ser necessário dar um rosto humano e solidário à política e à economia. A opção preferencial pelos pobres ''não é uma opção classista, mas serve de base de aproximação a todos os cristãos, homens ricos e pobres, de qualquer partido ou opinião política, com o espírito de Cristo, para provocar neles o milagre da misericórdia'' (nº 9).

Eis diretrizes autênticas da Igreja de Jesus Cristo. Recordemos, por fim, as palavras de Jesus: ''Quem vos ouve, a mim ouve, quem vos despreza, a mim despreza, e quem me despreza, despreza aquele que me enviou'' (Lc 10,16).

[18/JAN/2003]

Esperanças e reflexões

Dom Eugenio Sales

Arcebispo emérito do Rio

O Novo Ano é sempre portador de esperanças. Desta vez, esse episódio cíclico adquire mais ampla dimensão, por coincidir com a substituição do supremo mandatário desta nação e dos governadores dos Estados. Nele se celebra também o Dia Mundial da Paz.

Em minha vida, tive oportunidade de assistir a muitos inícios e términos de administração dos escalões federal, estadual e municipal. Aprendi, entre outras, duas lições. A primeira é o ato de posse no governo se assemelhar ao alvorecer do dia, com seus entusiasmos e otimismos; o encerramento da missão confiada pelo voto popular ao entardecer, ora tranqüilo, às vezes melancólico. A outra é a sensação de transitoriedade dos cargos, da vida humana, que nos vem no momento solene da posse, especialmente, em certos postos. As pessoas, mesmo poderosas, sempre passam ou descem à planície, mas a Igreja continua seu caminho. Fundada por Jesus Cristo há quase 2 mil anos, tem enfrentado as mais variadas tempestades e ei-la cheia de vitalidade, em nossos dias. Bons ou defeituosos, seus membros ultrapassam hoje a cifra de 1 bilhão de indivíduos. Os homens, os que a amam ou odeiam, desaparecem no decorrer dos tempos e ela permanecerá.

Com humildade e diante de Deus, meditemos por ocasião do Ano Novo, na mudança do governo desta nação e deste Estado. Nós não somos meros assistentes do que ocorre. Cada um é co-responsável e, portanto, daremos contas a Deus. A tomada de posse nos adverte sobre o dever de cooperar em prol do bem comum. Esse momento é de grandeza, de busca sincera, de entendimento que multiplique as forças e não fomento de divisões estéreis. Os interesses egoístas ou corporativistas, cedam lugar a sentimentos nobres. Recordemos que todo esse quadro se estrutura sobre o alicerce dos valores morais. E, evidentemente, sem o auxílio de Deus, em vão trabalham os homens: ''Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a constroem'' (Sl 126,1)

No primeiro dia deste Ano Novo, que coincide com a posse do governante da nação brasileira e dos governadores, comemora-se o XXXVI Dia Mundial da Paz, que em 2003 tem por tema ''Pacem in terris - um compromisso permanente''.

A mensagem do papa João Paulo II por ocasião desse evento assim começa: ''Transcorreram quase 40 anos, desde aquele dia 11 de abril de 1963: era quinta-feira santa. Dirigindo-se ''a todas as pessoas de boa vontade'', o meu venerando predecessor, que morreria passados dois meses, resumiu a sua mensagem de paz ao mundo na primeira afirmação da encíclica: ''A paz na Terra, anseio profundo dos seres humanos de todos os tempos, não se pode estabelecer nem consolidar senão no pleno respeito da ordem instituída por Deus''. Já havia o ''Muro de Berlim'' e o papa falava para todos, tanto de um lado como do outro, desse sinal de divisão. Apelava a todos, os católicos e não católicos; ele buscava ''homens de boa vontade'' para construir um mundo novo.''

Nesse Dia Mundial da Paz, a mensagem de João Paulo II resgata a riqueza extraordinária contida na encíclica Pacem in terris, e atualiza seus ensinamentos à luz da realidade hodierna. João XXIII se dirigia a um mundo em situação de profunda desordem. Em 60 anos do século XX, a humanidade foi flagelada por duas guerras mundiais, os dois sistemas totalitários, o comunismo e o nazismo, causaram imensos sofrimentos. E a Igreja suportou ''a maior perseguição até então conhecida na História'' (Mensagem, nº 2). O bom papa João, como o povo a ele se referia, no entanto, acreditava na possibilidade da paz e identificou quatro exigências concretas da alma humana, como condições essenciais para alcançá-la: a verdade, a justiça, o amor e a liberdade. A primeira coluna, a verdade, leva o indivíduo a tomar consciência dos próprios direitos, mas também dos seus deveres. A segunda, a justiça, edificará a paz se ''cada um respeitar concretamente os direitos alheios''. O amor ''será fermento da paz se as pessoas sentirem como próprias as necessidades dos outros e partilharem com eles o que possuem''. A última, ''a liberdade alimentará e fará fortificar a paz se os indivíduos, na escolha, nos anseios para alcançá-la, seguirem a razão e assumirem compromissos e responsabilidade pelos próprios atos'' (Mensagem, nº 3).

Diz João Paulo II, na sua Mensagem, que João XXIII entreviu e interpretou os dinamismos profundos que surgiram e ''atuaram na história humana, algo que o papa identificou como o indício promissor de uma revolução espiritual'' (Mensagem, nº 3). Havia sinais claros como o fim do colonialismo, os novos Estados independentes, maior compreensão dos direitos dos trabalhadores, o ingresso das mulheres na vida pública, a convicção de que todos os seres humanos são iguais entre si pela dignidade da natureza, maior consciência de certos valores espirituais. ''O papa estava convencido de que essa sensibilidade espiritual mais viva haveria de ter conseqüências públicas e políticas (...) À vista da crescente consciência dos direitos humanos que se ia manifestando a nível nacional e internacional, João XXIII intuiu a força contida em tal fenômeno e o poder extraordinário que tinha para modificar a História (...) Trata-se por conseguinte, dos direitos e deveres universais, invioláveis e inalienáveis'' (Mensagem, nº 4). Essas idéias, com vastas conseqüências práticas, foram amplamente expostas por João Paulo II em seu discurso de 5 de outubro de 1995, na Assembléia das Nações Unidas.

A Mensagem para o Dia Mundial da Paz 2003 aborda ainda o bem comum universal, uma nova ordem moral internacional, a ligação entre paz e verdade, as premissas de uma paz duradoura e uma cultura da paz.

O Ano Novo, a posse do presidente da República e dos governadores dos Estados, o Dia Mundial da Paz constituem uma oportunidade para reflexões profundas que nos levem a propósitos em favor da paz e da concórdia.

[28/DEZ/2002]