QUESTÃO INTRODUTÓRIA

1. A NOÇÃO DA FÉ EM GERAL.

Fé é tomado em sentido muito variado, também no uso da Sagrada Escritura:

De modo impróprio:

  • Promessa:

= "Quebraram a promessa anterior" (1Tm 5, 12). "Não admitas viuvas novas: porque quando nelas despertar a sensualidade e as afastar de Cristo, quererão casar, e incorrerão em sentença condenatória, uma vez que quebraram a promessa que fizeram". A promessa que fizeram: Alusão ao voto (de continência) que estas mulheres fizeram. Assim pensa S. Agostinho (de adult. Conj., c. 15) e muitos outros. Fillion, VIII, 488.  Promessa: propósito de consagrar-se a Deus. B. J., 39,p.35. Fidelidade: "Será que a sua descrença anula a fidelidade de Deus?" (Rm 3.3).

= Sua: dos Judeus. Fidúcia (confiança): "Por que duvidaste, homem vacilante na fé?" (Mt 14, 31).

= Jesus andando sobre as ondas. Os apóstolos: é um fantasma. Jesus não tenhais medo, sou eu. Pedro: Senhor, se és tu, manda que eu vá sobre as águas até onde estás. Vem, disse Ele. Pedro saltou do barco e caminhou sobre as águas em direção a Jesus. Reparando, porém, no vento rijo, teve medo, e começou a submergir. E bradou: Senhor, salva-me! De pronto estendeu Jesus a mão, apanhou-o e disse-lhe: por que duvidaste...

Consciência: "tudo quanto não procede da boa fé (consciência, ditame da consciência)  é pecado" (Rm 14, 23).

= São Paulo ensina que os fieis não devem escandalizar os irmãos fracos. Assim, não devemos comer tudo, embora todos os alimentos em si sejam puros. Quem escandaliza comendo, este peca. Então o apóstolo continua: Quem duvida (se é lícito comer determinado alimento), e não obstante come, já está julgado, porque não procede conforme o ditame de sua consciência, e conclui dando a regra geral: "tudo quanto..." Cf. Fillion. VIII, 100 sq.

 

De modo mais próprio: indica o estado da mente que sustenta algo acerca de alguma coisa, sem lhe perceber o motivo intrínseco.

= Mens: mente é o último princípio das operações da vida racional, ou: a alma humana segundo que como princípio ela é o princípio das suas operações superiores: intelecção e volição. Veja Init. Théol, 2ª, IV, p. 909.

Intellectus ou intelligentia é a faculdade espiritual de conhecer, considerada mais especialmente como a faculdade de conhecer de modo intuitivo.

Ratio é a mesma inteligência, mas considerada na sua função discursiva. Assim: a razão não é uma faculdade diferente da inteligência (entendimento intelecto), mas do ponto de vista do funcionamento desta faculdade, chama-la mais especialmente inteligência, quando ela vê, atinge ou aprende e mais especialmente razão, quando vai pelo discurso de uma coisa apreendida a outra. Veja. Jacques MARITAIN. L m. 7.

Intellectio: é o ato pelo qual a inteligência apreende o seu objeto, ou seja, conhece. Mesmo considerado assim de modo mais restrito e limitado, há possibilidade de diversos sentidos. Mas excluindo os sentidos menos exatos, temos que a fé, no seu sentido rigoroso é: estado mental firme causado pelo testemunho de outrem que possui autoridade.

a)     Estado da inteligência: ou seja a faculdade do verdadeiro. Como veremos, as demais faculdades cooperam para este estado, mas formalmente (essencialmente, na sua essência) é estado da inteligência.

b)    Firme: ou estado de certeza, no qual a nossa inteligência está firme, descansa é determinada para uma só coisa. Exclui-se, pois, do sentido rigoroso da fé, a opinião, que às vezes também, embora de modo impróprio, é chamada fé.

= Crer tem, em português também, o sentido de julgar, presumir, supor: "A larga história do seu destitoso amor que o mundo cria retribuindo e feliz" (Herculano, Bob, 81). Veja Fernandes, Dic. De Regimes, 8ª, p. 175. Entretanto, a opinião não afasta uma dúvida razoável a respeitar da opinião contrária e assim não é estado firme.

Esta firmeza não pode existir sem um motivo que dá repouso à inteligência, e a atrai racional e legitimamente para uma das alternativas, e a da afirmação. Para a fé este motivo não é a evidencia intrínseca da verdade, mas

c)     O testemunho de alguém que possui autoridade. Na ciência a firmeza provém de que nós mesmos vemos a verdade intrínseca da coisa que afirmamos; o nexo afirmado entre o sujeito e o predicado vemo-lo perfeitamente ao conhecermos por completo as noções do sujeito e do predicado.

 

Isto não se verifica na fé, mas vemos a necessidade do que cremos apenas naquilo que alguém que possui autoridade, declara esta verdade. Pois o testemunho de um homem, cuja veracidade não sofre contestação e cujo saber é conhecido com certeza absoluta, oferece motivo suficiente para o assentimento à verdade que ele é testemunha.

= Em face da verdade a nossa inteligência pode achar-se num estado definitivo, tranqüilo, pacífico: é a posse consciente da certeza ou num estado provisório, instável, inquieto: é a dúvida. Na certeza, a inteligência adere definitivamente a uma das alternativas, por força de um motivo claro, decisivo, e assim ela repousa na percepção do objeto conhecido.

Na dúvida, a inteligência oscila, porque as razões de afirmar ou de negar ou não se manifestam. Dúvida negativa; ou parecem neutralizar-se: há equilíbrio de motivos tanto em favor da afirmação como contra ela: dúvida positiva. Assim a inteligência é solicitada em sentidos opostos sem conseguir o repouso da unidade.

Se a inteligência se pronuncia em favor de uma das alternativas, sem contudo rejeitar a possibilidade de erro, falamos de opinião. Neste estado mental, o objeto não se ilumina com toda a sua claridade; a luz total faria talvez vê-lo de outro modo, e assim determinaria outra atitude da inteligência. Consequentemente também aqui reina certa inquietude: a consciência de que a solução a que se chegou, não é definitiva.

A fé não é dúvida, não é opinião, é certeza. Há, no entanto, diferentes espécies de certeza conforme a evidência do objeto conhecido: a evidência intrínseca, que pode ser imediata: a verdade é luminosa por si mesma, e não precisa de demonstração, mas simplesmente de explanação dos termos em que é enunciada. Explicai o que é um todo e o que é uma parte, e ver-se-á imediatamente que o todo é maior que cada uma de suas partes. Demonstrada: uma verdade é esclarecida com outra, e que imediatamente não se via, torna-se visível mediante a sua relação necessária com as evidências imediatas.

Estas certeza se firmam, pois, num motivo intrínseco à própria verdade.

Evidência extrínseca: porque a verdade se baseia num testemunho, na sua ciência e na sua veracidade. A razão, depois de pesar os títulos da testemunha, a sua ciência e sua veracidade, descansa sem temor, na verdade possuída com certeza. Cf. Pe. Leonel França S. J., Psicologia da fé. Rio de Janeiro, Agir, 5ª, pp. 19-31.

Se aplicarmos esta noção genérica ao caso particular da fé divina, esta deveria ser definida: estado mental que adere firmemente ao testemunho dado por Deus. Mas esta definição é negada por não poucos dos nossos adversários.

 

2. CONCEITOS ERRADOS DA NOÇÃO DA FÉ DIVINA.

a)     Os Racionalistas erram por intelectualismo exagerado:

= Racionalistas, por exemplo Jorge Hermes († 1831) e Antônio Guenther († 1863).

= Intelectualismo: toda a doutrina que atribui uma primazia ao espírito, á idéia, à razão. Uma vez que consideram a nossa razão lei suprema de toda a verdade, eles negam que a fé, pela qual haveríamos da admitir verdades que vão além da inteligência humana, e isto apenas porque Deus as afirma, é possível ao homem instruído.

"A razão o conhecimento de qualquer espécie de verdades" (D 1704, do sílabo, ou coleção de erros modernos, de Pio IX 8 de dezembro de 1864).

+ "Se alguém disser que a razão humana é de tal modo independente que Deus não lhe possa impor a fé, seja anátema". (D 1810, Conc Vat., sesss. III, cân 1 sobre a fé)

A fé é apenas o estado mental dos que não possuem suficiente cultura intelectual para julgar por si mesmos, mas pela fé eles se conservam dentro dos limites da honestidade.

= Assim Hermes define a fé, em termos puramente intelectuais, como o estado do espírito que partindo da dúvida positiva e absoluta chega a não mais poder duvidar. DTC, XV, 434.

b)    Por anti-intelectualismo pecam:

-   os Protestantes, que distinguem a fé histórica, pela qual admitimos o que está na S. Escritura; a fé dos milagres, pela qual se obtém os milagres, e a fé das promessas. Dizem que esta última, verdadeira fé que justifica, é a fidúcia, a confiança pela qual o homem crê que os merecimentos de Cristo lhe são aplicados. Cf. D 822.

= D 822. Concílio de Trento, sess. VI c. 12 da justificação: "Se alguém disser que a fé que justifica não é outra coisa senão uma confiança na misericórdia divina que perdoa os pecados por Causa de Cristo, ou que só por esta confiança somos justificados, seja anátema".

-   Kant que assevera que por causa das exigências da vida prática aceitamos pela fé o que não podemos provar com a nossa inteligência.

-   Os Modernistas, para os quais a fé não é outra coisa senão um movimento do sentimento religioso que de modo cego é movido pela necessidade da divindade. Cf. D 2074.

= D 2074. Da carta encíclica de S. Pio X, sobre as doutrinas modernistas, 8 de setembro de 1907.

A religião, quer a natural quer a sobrenatural, é mister seja explicada como qualquer outro fato. Ora, destruída a teologia natural, interceptada a entrada na revelação com o rejeitar os motivos de credibilidade, é claro que se não pode procurar fora do homem essa explicação. Deve-se, pois, procurar no mesmo homem; e visto que a religião não é de fato senão uma forma de vida, a sua explicação se deve achar mesmo na vida do homem. Daqui procede o princípio da imanência religiosa. Demais, a primeira noção, por assim dizer, de todo fenômeno vital, deve sempre ser atribuída a uma necessidade: os primórdios, porém, falando mais especialmente da vida, devem ser atribuídos a um movimento do coração, que se chama sentimento. Por conseguinte, como o objeto da religião é Deus, devemos concluir que a fé, princípio e base de toda a religião, se deve fundar em um sentimento, nascido da necessidade da divindade. Esta necessidade das causas divinas não se fazendo sentir no homem senão em certas e especiais circunstâncias, não pode de per si pertencer ao âmbito da consciência: oculta-se, primeiro abaixo da consciência, ou, como dizem com vocábulo tirado da filosofia moderna, na subconsciência, onde a sua raiz fica também oculta e incompreensível. Se alguém, contudo, lhes perguntar de que modo essa necessidade da divindade, que o homem sente em si mesmo, rebenta em religião, será esta a resposta dos modernistas: a ciência e a história, dizem eles, acham-se fechadas entre dois termos: um externo, que é o mundo visível; outro interno que é a consciência. Chegados a um ou outro destes dois termos, não se pode ir mais adiante, além destes limitas acha-se o incognoscível. Diante deste incognoscível, seja que ele se ache fora do homem e fora de todas as coisas visíveis, seja que ele se ache na subconsciência, a necessidade de um que divino, sem nenhum ato prévio da inteligência, como o que o fideísmo, gera no ânimo já inclinado um certo sentimento particular, e este, seja como objeto seja como causa interna, tem envolvido em si a mesma realidade divina, e assim de certa maneira une o homem com deus. é precisamente a este sentimento que os modernistas dão o nome de fé, e tem-no como princípio de religião. (Trad de D.P., 43, pp. 7-8).

 

3) A NOÇÃO CATÓLICA DA FÉ DIVINA.

Conforme a definição do Concílio Vaticano a fé é: uma virtude sobrenatural, pela qual, prevenidos e auxiliados pela graça de Deus, cremos como verdadeiro o conteúdo da Revelação... por causa da autoridade de Deus que não pode enganar-se ou enganar-nos (D 1789, Concílio Vaticano, sess. III, Cap. 3 trad de L. França, Op. Cit., p. 14).

a)     Virtude: o Concílio fala diretamente do hábito da fé recebida de Deus juntamente com a graça santificante, para que por esta virtude possamos crer o que Deus diz.

Mas visto como o hábito é especificado pelo objeto formal de seu ato próprio, valem as outras palavras da definição tanto do hábito como do ato.

Claro, porque o hábito entra em ação, quando é praticado o ato.

Várias virtudes podem ter o mesmo objeto material. Assim a fé, a esperança e a caridade tem como objeto material. A deus, assim como é em si mesmo. Entretanto, o objeto formal quod destas virtudes difere: da fé é deus, considerado como a Primeira Verdade, o da esperança: Deus que deve ser atingido como fim sobrenatural, o da caridade: Deus amável por si mesmo.

b)    Sobrenatural: porque a fé pertence à ordem da graça santificante, ela é intrínseca e essencialmente sobrenatural, uma vez que serve para tornar-nos capazes de abraçar a verdade divina, que necessariamente ultrapassa as forças naturais da inteligência humana. Pois ao falar da fé salutar, a Igreja tem em vista aquela fé, pela qual abraçamos a doutrina da salvação, quer dizer, a pregação do evangelho e os mistérios da religião cristã. E não podemos chegar a esta doutrina senão por um ato 9e hábito) sobrenatural.

c)     o conteúdo da revelação, ou seja o testemunho de Deus: a verdade própria de Deus mesmo, mas que Ele nos propõe em palavras humanas, palavras que com esta verdade tem semelhança análoga.

= A verdade própria de Deus não podemos conhecê-la, assim como Deus a conhece. Por isso Ele deve revelar a sua verdade segundo a nossa maneira de conhecer, e consequentemente a verdade revelada tem apenas semelhança análoga com a verdade assim como é conhecida por Deus, quer dizer, há semelhança não perfeita, mas misturada com diversidade. De Deus, damo-lhe assentimento pela fé como a uma verdade incontestável, pela qual até daríamos a vida, se fosse necessário. E isto "não em virtude de sua verdade intrínseca, vista pela luz natural da razão" (D 1789 trad L. franca, 1. C), mas:

d)    Por causa da autoridade de Deus que o revela. Eis o motivo objetivo, por que aceitamos o testemunho de Deus. é a autoridade de quem revela, que tem direito a nossa fé, visto como não pode enganar-se, isto é, errar, nem enganar-nos, isto é, fazer-nos cair em erro, iludir-nos.

Tudo isto, indicado aqui em poucas palavras, deve ser estudado pela Teologia Fundamental, algo que sugeria a nossa meta neste presente trabalho.

 

O OBJETO DA FÉ DIVINA

Uma vez que a fé divina é virtude teologal, tem ela o Deus assim como ele é em Si mesmo como objeto total quod e quo em outras palavras: tanto o que cremos, como o motivo, por que cremos é de ordem divina: é o próprio Deus.

1.O objeto "quod", ou o que o homem crê pela fé divina: é em geral o testemunho de Deus que revela ou atesta (afirma como testemunho).

Neste testemunho podemos considerar:

a) o objeto "quod" material, ou a verdade que Deyus afirma como testemunha, a verdade que quer comunicar: é a verdade do próprio Deus, ou seja, o que sabe de si mesmo e de tudo quando d'Ele tem o seu ser (ou por outra: o que Deus compreende de Si e de tudo que d'Ele procede).

O objeto primário é a verdade sobre o próprio Deus "assim como Ele é em Si mesmo (na sua vida íntima). Pois este é, na contemplação de deus o objeto primário que especifica toda a verdade que a própria a Deus.

Especificar é o mesmo que por alguma coisa nesta ou naquela espécie, nesta ou naquela ordem (STh, índices, 415).

Objeto secundário é a verdade divina sobre o que d'Ele tem o ser e para Ele a sua finalidade.

b) O objeto "quod" formal, ou a verdade divina, segundo que é formalmente o objeto da fé e não a da visão (beatífica, no céu), é a verdade assim como nos é comunicada e por nós é possuída na luz do testemunho ou revelação divinas. Também a visão beatífica tem como objeto a Deus assim como é em Si mesmo, a verdade que o próprio Deus contempla. Mas (a visão beatífica) atinge este objeto na luz da própria essência divina, vista intuitivamente (de modo claro, direto, sem intermédio de qualquer outra coisa), e imediatamente possuída  sem outra coisa de permeio.

A fé divina tem este mesmo objeto material. E realmente a mesma é a verdade que agora veremos e que depois veremos. Mas o aspecto sob o qual este objeto é atingido e possuído é diferente, a saber, na obscuridade do testemunho que Deus dá.

O objeto quo, quer dizer, o motivo objetivo e formal no qual se baseia objetivamente o assentimento da fé; o motivo por que damos assentimento ao testemunho de Deus, é a autoridade d'Ele, uo a verdade de Deus que é infalível e diz a verdade.

 

Referência Bibliográfica:

Denzinger-Bannwart-Umberg, Enchiridion Symbolorum, definitionum et declarationum de rebus fidei et morum. 26ª ed., Friburgo, Herder, 1946.

O enquiridion de Denzinger foi traduzido em espanhol por Daniel Ruiz Bueno: El magistério de la Iglesia, Barcelona, Herder, 1955.

Traduzido parcialmente em português no D. P., 95: D 782-1000 (O Concílio de Trento) e D. P.., 96: D 1781-1840 (O Concílio Vaticano).

R é Rouet DE JOURNEL. Enchiridion patristicum. 26ª ed., Friburgo, Herder, 1946.

São João da Cruz tem coisas belas sobre a fé no livro: A subida do monte Carmelo, livro II, 2ªed.,  na edição holandesa, 1ª parte, 1932 Hilversum; na edição francesa de Hoornaert, 1º tomo, 2ª ed., Paris, Descléa, 1936.

Temos na biblioteca "A subida do monte Carmelo, in Vida y obras de San Juan de la Cruz. 2ª ed. Madrid, BAC, 1950, p, 557 sqq.

Há também tradução portuguesa, Rio, 1926. Veja Vida y obras p. 521.