O homem moderno, ou seja, pós-moderno censurou vigorosamente o cristianismo por ser fonte de alienação. Segundo ele, convidando o homem a depositar toda a sua esperança em Deus, a fé o desvia de suas tarefas humanas na terra e nele destrói a esperança humana.

 

O que pensar desta grave acusação? Ela se refere ao próprio cristianismo ou apenas ao modo defeituoso pelo qual os cristãos o viveram, na autora do mundo moderno? É  verdade que alguns comportamentos religiosos testemunham uma real evasão desta terra e das responsabilidades que esperam o homem. Mas será que esses comportamentos se originam na fé em Jesus Cristo ou, pelo contrário, manifestam uma fé degradada?

 

É  da maior importância dar a estas perguntas uma resposta conforme à verdade do cristianismo. Se averiguarmos que o cristianismo criticado pelo homem moderno como fonte de alienação é, na realidade, um cristianismo truncado, é urgente que os cristãos façam sua autocrítica e aceitam a necessária conversão da mentalidade. A fé estaria, então, em perigo; além do mais, a evangelização do  mundo estaria seriamente posta em questão.

 

A reflexão que propomos primeiramente é o tema "esperança  cristã e esperança humana".  Deve  permitir-nos captar melhor o alcance das críticas formuladas pelo homem moderno ou até do homem pós-moderno, como muitos dizem; ela pode ajudar o cristão a perceber melhor a verdadeira natureza de suas responsabilidades na atual situação do mundo hodierno.

 

2.1. O ELÃ DE ISRAEL PARA OS BENS TERRESTRE

 

Israel é um povo muito realista para desprezar os bens da terra. Deste modo, quando ele constata que esta terra é, na maioria das vezes, um vale de lágrimas, ele dirige seu olhar para um futuro de abundância, numa terra nova, onde a felicidade temporal ocupa o lugar de honra ao lado do conhecimento de Deus, da conversão dos corações, da conversão das nações, do culto perfeito. Se Jahvé e seu reino universal constituem o objeto próprio da esperança de Israel, esta não convida o crente a deixar de considerar a terra onde ele se encontra, mas apenas esperar sua renovação, afim de que desapareçam os obstáculos à felicidade temporal.

 

Será que o elã de Israel para os bens terrestres significa que sua esperança religiosa seja uma autêntica esperança humana, no sentido moderno do termo? Será que sua aspiração à felicidade temporal constitui  a fonte de um projeto de transformação desta terra, cuja execução dependeria dos recursos próprios do homem? A resposta a esta pergunta deve ser nuançada. Para Israel, está claro que a felicidade temporal é, antes de tudo, uma bênção divina à sua previdência inteiramente gratuita, mas que é, ao mesmo tempo, o fruto normal do trabalho do homem; ou ainda, está claro, para o povo judeu, que o domínio sobre todos os povos só lhe pode ser concedido pela intervenção poderosa de Jahvé, mas isso não o dispensa de pensar nos meios de cooperar na ação divina...

 

Além disso, Israel está convencido, por experiência, de que uma terra indissoluvelmente ligada ao sofrimento e à morte é incapaz de gerar uma verdadeira felicidade temporal. Uma terra que carrega as conseqüências do pecado está necessariamente condenada. Portanto, é preciso esperar a intervenção salvífica de Deus que, libertando o homem do pecado, provocará o nascimento de uma terra nova, de um paraíso terrestre ainda mais maravilhoso do que o primeiro.

 

Portanto, Israel não é um povo que procura sua felicidade na evasão. Não há nada que nele faça lembrar a concepção grega da ascensão a Deus da alma imortal que, por sua vez, sacudiu o jugo do corpo corruptível. No entanto, permanecemos longe de uma esperança em Deus que se torne fonte, no homem, de uma autêntica esperança  humana. Neste ponto, a reviravolta se deu com  Jesus de Nazaré.

 

 

2.2. JESUS CRISTO O SALVADOR E A VERDADEIRA FACE DA ESPERANÇA.

 

Como  Messias, Jesus proclama que o Reino de Deus chegou. Contrariamente à expectava judaica, o Reino não chega  com estardalhaço e nada mudou na face da terra. Tudo segue seu curso  habitual. O Reino, que não é deste mundo, implanta-se aqui na terra, como a menor semente, invisivelmente. Ele crescerá progressivamente, quando atingir o Reino a seu Pai.

 

A concepção judaica da esperança foi profundamente posta em questão. A vinda do reino, que não modificou a condição da terra, a aparente insignificância dessa vida, que nada mudou do regime político do povo judeu diante das nações, tudo isso corresponde tão pouco à esperança de Israel que, até à Ascensão, os próprios discípulos de Jesus não compreendem e se permitem a pergunta: "Senhor, é agora que pretendes restaurar a realeza em Israel?"

 

Com efeito, para entrar nas perspectivas de Jesus, é preciso começar por olhar a condição terrestre com novos olhos, bem diferentes daqueles com os quais os judeus estavam acostumados, assim também se dá a nossa perspectiva de esperança no pobre de hoje em nosso país.  Neste  mundo, no qual o homem constantemente tem que enfrentar o sofrimento e a morte não são as conseqüências do pecado. Jesus não tem pecado e deve enfrentar ambos, como qualquer outro homem. Pelo contrário, o que é a conseqüência do pecado é o sentido que o sofrimento e a morte tomam aos olhos do homem pecador: no caminho do orgulho, eles se apresentam como obstáculos intransponíveis. Ao passo que, enfrentando-os como ele fez, na obediência à sua condição de criatura e na renúncia a si próprio, que uma tal obediência comporta, Jesus desvendou seu sentido. A morte, em particular, torna-se o campo privilegiado do dom total de si, o campo onde toma corpo, em plena verdade, o duplo amor de Deus e de todos os homens..

 

É assim que se revela a verdadeira face da esperança em Deus. Seu objeto transcende toda perspectiva terrestre: o Reino inaugurado em Jesus Cristo não é deste mundo, é a Família dos filhos de Deus, e a felicidade que ele traz não é comparável a nenhuma felicidade temporal. A humanidade e a criação têm acesso ao Reino passando pela morte, a exemplo de Cristo e a ele ligadas. Mas, por outro lado, o Reino vem à terra, aqui se enraíza no Homem-Deus, e deve crescer progressivamente através da cooperação dos homens que seguirão a Cristo no caminho de sua obediência e desde então praticarão o duplo amor de Deus e de todos os homens. A  verdadeira esperança torna-se então a fonte de uma autêntica esperança humana.

 

 

2.3. A ESPERANÇA VIVIDA NA IGREJA E O DINAMISMO DA HISTÓRIA.

 

De fato, considerando a história da Igreja, o que constatamos? Muito rapidamente, na comunidade primitiva, a velha esperança   escatológica - a espera do Reino que ia chegar, inteiramente fabricado, do alto - transformou-se em intensa atividade missionária. A intervenção de São Paulo desempenhou um grande papel nesta mudança. Em Jesus Cristo, cumpre-se as promessas; a glória esperada já é uma realidade atual. Mas resta cumprir "o que falta" na Paixão de Cristo; todos os homens são chamados a trabalhar aqui na terra, como associados de Cristo, na edificação do Reino.

 

Ora, a missão universal, primeiramente concebida por São Paulo como uma tarefa feita à sua medida, revela-se pouco a pouco de uma extrema complexidade. Sempre urgente, a missão  só se pode realizar com uma extrema lentidão e uma paciência inabalável. Porque, reunindo-se ao homem em sua busca de salvação, ela põe em questão todas as realidades dos seu devir histórico. Sendo a expressão privilegiada do amor fraterno universal, ela testemunha um poder capaz de renovar a face da terra. No momento mesmo em que convida o homem a entrar na Família do Pai, ela desencadeia um dinamismo que, no homem, apela para todos os recursos de sua condição de criatura; ela torna o homem, libertado do pecado, atento as suas responsabilidades terrestre. O amor que constrói o reino que não é deste mundo apresenta-se necessariamente aqui na terra como um poder de transformar o mundo, a fim de torná-lo cada vez mais humano, cada vez mais conforme as normas evangélicas. Abrindo o homem para sua vocação divina, a missão manifesta-lhe, ao mesmo tempo, sua verdade e sua missão de criatura.

 

A tomada de consciência pela Igreja da repercussão da esperança, no campo dos projetos de civilização, não se deu num dia. Foi preciso muito tempo para avaliarmos todas as conseqüências que a fé em Jesus Cristo implicava. Foi mister que as gerações de crentes vivessem desta fé e descobrissem, pela experiência, para onde ela os conduzia.

 

 

2.4. O  ANUNCIO DE CRISTO AO MUNDO ATUAL E A PARTILHA DA ESPERANÇA HUMANA

 

Se o que acabamos de dizer é verdade, como possível que o advento do mundo moderno tenha sido em parte recusado pelos cristãos e, especialmente, pelos católicos? Como os cristãos puderam dar motivo para a crítica de alienação religiosa? Como os cristãos do século XIX puderam pregar a resignação aos operários da indústria nascente, vítimas de uma exploração objetivamente evidente?

 

Vários fatores explicam estas reações. A Igreja, herdeira dos hábitos de cristandade que a convidam a tutelar o homem, levou o homem moderno a suspeitar que ela queria reviver o velho sonho prometeico: será que a defesa de uma legítima autonomia não encobria a tentação de contestar a Deus seus direitos, em nome do poder sobre a natureza que o progresso das ciências, e em breve das técnicas, realmente proporcionava? Por outro lado, é certo que cristãos, e até mesmo homens tornados estranhos à influência da Igreja, viram no cristianismo uma força capaz de salvar a coesão da velha ordem estabelecida, uma vez que ele tinha obtido tamanho êxito em articular-se com a ordem social da cristandade. Além do mais, quando o cristianismo é a religião de um povo inteiro, ele é vivido por uns e outros em diversos níveis de profundidade; elementos de religião pagã ou, pelo menos, de religião judaica permanecem presentes nas consciências e de fato influenciam comportamentos que justificam a crítica de alienação religiosa.

 

Percebemos cada vez mais que o anuncio de Cristo no momento atual exige a purificação destas escórias, herdadas do passado e sempre ameaçadoras, se não tomarmos cuidado. Na realidade, a tomada de consciência pelo homem moderno de seu poder sobre a natureza pode ajudar o cristão nesta obra de purificação. O exercício desse poder dá a esperança humana o ponto de apoio de uma consciência mais vigorosa e, em todo caso, nitidamente mais percebida; se ele dá ao homem a tentação prometeica, não conduz necessariamente a ela. E, assim que a esperança humana é percebida mais nitidamente em sua consistência própria, a esperança cristã que a provoca revela sua verdadeira face com mais facilidade. Quando ambas se manifestam em sua autenticidade, a esperança humana e a esperança cristã aparecem ao mesmo tempo como radicalmente distintas e intimamente articuladas uma na outra. A verdade concreta do homem é una; a ordem da esperança cristã e a ordem da esperança humana não se justapõem nem se sobrepõem, mas são apenas as duas dimensões distintas e necessárias do único agir humano que é conforme ao desígnio divino.

 

 

2.5. A CELEBRAÇÃO EUCARÍSTICA OU A RECONCILIAÇÃO DA ESPERANÇA CRISTÃ COM A ESPERANÇA HUMANA

 

A celebração da Eucaristia era o marco essencial da história da salvação. Ela é o lugar por excelência no qual toma corpo e se desvenda a verdadeira face da esperança.

 

A Eucaristia é o memorial da cruz de Cristo "até que ele venha", oferecendo assim à esperança cristã o campo privilegiado de seu autêntico desabrochamento. Com efeito, a esperança cristã se refere à construção do reino. Mas esse Reino, que não é  deste mundo, deve ser construído aqui na terra por uma defrontação quotidiana com a morte, na qual os crentes são chamados a seguir as pegadas de Cristo em sua Paixão. O Reino que esperamos celebrando a Eucaristia é, por identidade, o Reino que temos a missão de construir. E nossa esperança é fundada porque se baseia na vitória obtida de uma vez por todas por Cristo ao morrer na Cruz. Quando a participação na Eucaristia aparece como este luxo que se podem oferecer alguns homens à procura de evasão ou, simplesmente, de vida interior, ela está completamente desfigurada. Por sua própria natureza, a celebração eucarística convida o fiel a agir: ela é a mais séria ação do homem que possa existir.

 

Mas, pelo fato de desvendar e prometer a verdadeira face da esperança, a Eucaristia alimenta incessantemente a reconciliação da esperança teologal com a esperança humana. Chamando o homem para a construção do reino, ela o liberta de seu pecado e coloca-o em condições de agir para a utilização a mais lúcida de seus recursos de homem. Ela o convida a mobilizar todas as suas energias, com o objetivo de construir uma cidade humana que testemunhe, tanto quanto possível, uma vitória quotidiana sobre a morte; uma cidade digna do homem e, principalmente do pobre, na qual as conquistas do amor fazem recuar incessantemente as fronteiras do ódio e da divisão. Estes pontos levam a necessidade de uma reflexão antropológica da esperança, apresentando não somente os aspectos de uma teologia do alto, mas de uma teologia que começa a partir do homem a Deus.


At 1, 6