O homem moderno e mais precisamente o pós-moderno tem a profunda convicção de possuir sobre a terra uma tarefa histórica a desempenhar. Tarefa proporcional às suas possibilidades cada vez maiores e que integra um real domínio do universo. O objetivo desta tarefa é a promoção da comunidade humana no interior de uma cidade cada vez mais fraterna, principalmente, frente a um mundo e, mais especificamente, a um Brasil que muitos têm pouco e poucos têm muito fazendo crescer uma desigualdade social e de estrondosa injustiça, tornando os pobres cada vez mais pobre e até miseráveis, tornando suas vidas uma sub-vivência!

 

Para numerosos contemporâneos, esta tomada de consciência é acompanhada de uma amarga crítica da religião, a seus olhos, grande responsável pela alienação secular do homem. Seguindo sua tendência natural, a religião é levada a favorecer a ordem estabelecida e a pregar a resignação aos desfavorecidos...

 

Bem compreendido, o cristianismo escapa a esta crítica. Longe de sugerir a evasão, a fé ordena ao cristão assumir suas responsabilidades na busca dos objetivos que se impõem à consciência moderna. Aliás, os fatos confirmam isso: os apelos do mundo atual são ouvidos por amplas camadas de cristãos; o próprio Concílio Vaticano II consagrou uma parte importante de seus trabalhos às grandes preocupações - aparentemente mais profanas que religiosas - do homem do século XX. As reticências do cristão de ontem em relação ao engajamento no mundo parecem superadas.

 

No entanto, permanece uma questão que pode ser formulada assim: a construção da cidade terrestre é evidentemente uma tarefa importante, mas será que ela não foi golpeada por uma caducidade fundamental diante da realidade do Reino inaugurado em Jesus Cristo e que evidentemente é de outra ordem? Mais precisamente: será que construindo a cidade dos homens, contribuímos ou não - e se sim, de que maneira - para a edificação do Reino de Deus? São os dois empreendimentos estranhos um ao outro, são paralelos ou, ao contrário, estão estreitamente articulados entre si?

 

A resposta a esta questão tem conseqüências incalculáveis sobre a concepção que se faz da missão da Igreja. Hoje em dia é essencial formulá-la com toda a clareza e apreender o seu alcance concreto para o agir do cristão.

 

Temos no relato da criação, segundo a tradição sacerdotal, que Deus criou o homem e a mulher à sua imagem e semelhança, e que, depois de tê-los abençoado, disse-lhes:

"Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra, submetei-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se movem sobre a terra" .

 

Semelhante concepção da missão do homem está ligada ao regime da fé. Israel descobre que seu Deus Jahvé é verdadeiramente o Todo-Outro, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis e que nada escapa ao seu domínio soberano; mas este reconhecimento leva o homem à revelação de sua própria grandeza. No desígnio que Deus tem sobre ele e que a história do paraíso terrestre tem por papel desvendar, o homem é chamado a dominar o universo. A ordem divina na qual ele é introduzido espera a sua contribuição de companheiro na realização da obra criadora.

 

Na realidade, o homem que encontramos aqui na terra não é o homem do paraíso, mas um ser decaído. Por inveja de Deus, o homem criado à imagem e semelhança divina quis fazer-se deus e conferir a seu próprio poder um domínio do universo igual ao de Deus. O homem pecou; não honrou sua condição de criatura e Deus expulsou-o do paraíso... A submissão­­­­­ da terra pelo homem parece definitivamente comprometida, pois a morte, introduzida pelo pecado, colocou-a incessantemente em jogo.

 

Todavia, o desígnio divino sobre o homem realizar-se-á um dia. Jahvé é fiel. Sob o impulso profético, o olhar de Israel volta-se para o futuro. Virá um homem, por quem Deus restaurará todas as coisas de modo ainda mais maravilhoso. O paraíso perdido não será mais lamentado. Com o advento de uma nova terra e de novos céus, o homem será verdadeiramente o rei da criação. O novo Adão triunfará onde o primeiro fracassou.

 

Portanto, Israel percebeu claramente o papel que Deus reservava ao homem em sua obra. Mas o exercício deste papel não lhe parecia compatível com sua condição terrena. Para perceber esta compatibilidade, Israel teve que descobrir o conteúdo da obediência do homem à sua condição de criatura. Somente a Virgem Maria, que foi sem pecado, pressentiu que esta obediência ia até à morte e que, nestas condições, a dominação do universo pelo homem enraíza-se aqui na terra. Para executá-la não é necessário evadir-se de sua condição terrestre atual.

 

Na tomada de consciência daquilo que é a dominação do universo pelo homem segundo o desígnio de Deus, a etapa decisiva é transposta com Jesus de Nazaré. Nele, a vocação do homem adquire seu sentido pleno. Por seu ser e seu agir, Jesus situa e realiza em si todos os dados da vocação integral do homem. Antes de tudo, um membro da família humana é doravante o próprio Filho de Deus e nele todos os outros homens são chamados a participar da própria vida de Deus. Assim, o desejo de absoluto que anima o homem é planificado para além de toda esperança. Deus constrói seu reino com a contribuição do Verbo Encarnado e de todos os homens tornados, nele, seus filhos adotivos. Mas a matéria desta contribuição ativa para a construção do Reino é a fidelidade do homem à sua condição terrestre de criatura. Jesus de Nazaré nos fornece o exemplar definitivo dessa fidelidade sendo obediente até a morte e morte de cruz !

 

Desta forma, realiza-se em Jesus a dominação do universo pelo homem. Ela apresenta um aspecto de definitivo e de absoluto, pois Jesus é o Filho de Deus e nele todos os homens podem tornar-se os filhos do Pai. Mas, ao  mesmo tempo, ela se enraíza aqui na terra como um projeto dinâmico que desvenda sua autenticidade implicando a passagem pela morte. Sendo uma autêntica promoção humana é um amor sem fronteiras que supõe a renúncia total a si mesmo. A concretização deste projeto é o conteúdo último e a própria condição de uma realeza sobre a criação, pois ela faz apelo, no homem, a todos os seus recursos de criatura.

 

Intervindo na história, Jesus nela o lançou o princípio vivo de sua fecundidade. A ordem humana da criação nada tem da ordem estabelecida uma vez por todas, mas se apresenta como um programa, uma tarefa a ser promovida. A missão que Deus confiou ao homem com relação ao universo é que ele deve, aqui na terra, cumpri-la. Este cumprimento passa pela morte. Abrindo ao homem as portas do reino, Jesus desvenda a dimensão eterna da realeza do homem sobre o universo e, ao mesmo tempo, liberta o homem do pecado, isto é, de tudo aquilo que o impede de aceder à sua própria verdade e de concretizar o verdadeiro dinamismo humano da criação.

 

Jesus abrira o caminho de um real discernimento entre a religião e a civilização, entre a edificação do reino e a construção da cidade terrestre. Foram necessárias numerosas gerações de cristãos para que se depreendessem claramente as conseqüências desse discernimento. A história da Igreja manifesta globalmente um esforço sempre renovado para salvaguardar a transcendência absoluta da salvação adquirida em Jesus Cristo e para abrir o homem ao campo imenso de suas possibilidades.

 

Desde as origens do cristianismo, é evidente para todos que a autêntica promoção do homem deve seu segredo ao Evangelho e que ela só se realiza na fé em Jesus Cristo. O homem tem os recursos de sua fidelidade à condição da criatura, mas o bom uso dele supõe o elo vivo com Cristo. Daí a reação espontânea da Igreja exprimindo em termos de condutas morais a Boa-Nova da salvação que ela tem a responsabilidade de transmitir. No dia em que ela tiver a possibilidade e que ela se encontrar diante da necessidade de educar na fé povos inteiros, a Igreja organizará um vasto feixe de instituições que exprimirão a repercussão universal da fé sobre os setores da vida humana individual e coletiva. Mas logo tomamos consciência de que o terreno dos valores humanos não está ligado ao fim sobrenatural como um meio em relação a um fim. Ele tem consciência em si mesmo. Para o homem, ser criado, a obediência até a morte, na qual nos foi comunicado o segredo da autêntica promoção humana, não se reduz à sua significação religiosa. Ela desvenda em seu ponto culminante a verdade intrínseca da natureza humana, como poder de suscitar livremente uma ordem de valores que encontra em si mesma seus princípios de regulação. A reviravolta é decisiva e é validada por uma boa teologia desde o século XIII. Enquanto Santo Agostinho só conservava dos valores humanos a "referência" que mantinham com a escolha suprema do homem - pró ou contra o Deus de amor - Santo Tomás introduz uma distinção - a natureza e o sobrenatural - que vai permitir ao homem avaliar a medida de sua liberdade de criatura: longe de volatilizar, a fé manifesta a sua consciência própria. Pouco a pouco a tutela da Igreja será considerada como um peso pelo homem apaixonado pela liberdade e cada vez mais consciente da amplitude de suas possibilidades.

 

Para a Igreja. O problema hoje em dia é o seguinte: como encontrar uma solução de substituição para o regime de tutela ? Como garantir ao cristão, ao pobre, disperso entre os homens, o elo vivo a Jesus Cristo que lhe permita trabalhar retamente para a promoção do homem?

 

A resposta a esta questão revela um aspecto freqüentemente desconhecido pela Igreja: no terreno onde o cristão é um disperso entre os homens, a Igreja deve existir, não mais como Instituição, mas como fermento na massa. A Igreja é feita de pessoas concretas. Existe como Instituição quando as congrega, mas não deixa quando não as congrega mais. Dispersos, os cristãos continuam interligados pelos elos pessoais que os constituíram em Igreja e comunicam-se mutuamente o eco de seu caminhar. Isto supõe que os cristãos encontrem na vida o feixe completo desses elos eclesiais. Em outras palavras, trata-se para a Igreja de estar presente na vida tanto através de seus sacerdotes quanto através de seus leigos, de forma especial aqueles que estão numa contínua formação permanente, para poderem levar os demais a uma condição ainda mais próxima da Verdade, haja vista que é a Verdade que nos liberta e somos levados a testemunhar esta Verdade, a fim de que todos cheguem ao conhecimento desta mesma Verdade.

4.1. EVANGELIZAR E A PROMOÇÃO HUMANA.

Evangelizar é propor o sinal da ressurreição a partir de um enraizamento histórico do ministério de Cristo no itinerário espiritual de um povo ou de uma cultura. Portanto, a lógica da evangelização quer que um povo, ao pobre, seja acessível à proclamação da Boa-Nova na medida em que ele aprende mais ou menos explicitamente que o mistério de Cristo concerne verdadeiramente à sua própria vida e ao itinerário em que esta vida tomou e continuar a tomar corpo.

 

Ora, relativamente à evangelização, o homem moderno reage diferentemente do homem que vivia em regime sacral. Enquanto que este último estava espontaneamente sensibilizado aos "valores religiosos", isto é, a tudo o que nele exprimia o recurso ao "divino" que salva, o homem moderno está diretamente voltado para os "valores humanos" a promover, isto é, para tudo o que ele pode e deve tirar de seus próprios recursos.

 

Por conseguinte, a proposição do sinal da ressurreição ao homem de nosso tempo vai apresentar-se sob uma forma nova. Enraizar-se no itinerário espiritual do mundo moderno é necessariamente atingir o homem naquilo que constitui o centro de gravidade de sua existência, a saber, a própria promoção humana.

 

Não se trata apenas de uma identificação lingüística com um povo novo, de apreender mais ou menos profundamente suas pulsações íntimas e de permitir, assim, à Palavra e às instituições eclesiais que adotem pouco a pouco a fisionomia cultural deste povo. Não se trata apenas de traduzir as Escrituras, de um dia ter uma liturgia indiana, chinesa ou africana, de construir uma catequese baseada em categorias de pensamento não-ocidentais. É necessário sobretudo que a Boa-Nova da salvação atinja o homem no momento em que ele tem consciência, segunda uma linha cultural que lhe é própria, de dever assumir seu próprio destino, numa abertura total do homem para que a Boa-Nova seja atualizada na vida presente e existencial do homem no seu próprio contexto.

 

Pelo fato de a Boa-Nova da salvação ser a realização do destino humano na humanidade do Homem-Deus, o cristianismo está em condições de encontrar o homem  moderno no terreno mesmo onde ele se colocou. Como já vimos, o exercício da fé revela a verdade do homem e implica, pois, uma certa concepção da promoção humana e da liberdade. Reciprocamente, uma certa maneira de trabalhar para a promoção humana pode ser significativa da ordem da fé.

 

Entre a sabedoria humana do cristão e a do paganismo ateu - tentação do homem moderno que pensa ilusoriamente que a salvação está no termo de uma promoção humana entregue aos seus próprios recursos - o confronto é inevitável. A Boa-Nova da salvação é uma exigência de despojamento radical; por isso, o empreendimento de civilização obtém sua retidão e dispõe o homem a receber sua condição de "filho"  das mãos do Mediador único.

4.2. TEMA DO SERVIÇO

Quando o concílio Vaticano II se interrogou sobre o tipo de presença que o povo de Deus deve assegurar entre os homens de nosso tempo, uma expressão se impôs à atenção de todos: "a Igreja, serva do mundo". Foi uma maneira de se afirmar que a Igreja não deve tutelar o destino da humanidade e, mesmo que a tenha feito durante séculos por motivos explicáveis pela história, isso em nada justifica que ela continue a faze-lo. Ao recusar esta tutela, o mundo moderno lembra simplesmente à Igreja que ela foi feita para servir. Por outro lado, é bastante evidente que, se tal afirmação vale para a Igreja em geral, ela se aplica em particular a todos aqueles e aquelas que, na Igreja, desempenham um papel, exercem um ministério. De fato, esta mesma idéias de serviço voltou constantemente nos debates conciliares onde todos se preocuparam em esboçar a imagem do bispo ou do sacerdote de que a Igreja atual tem necessidade.

 

O  tema do serviço pertence ao conteúdo essencial da mensagem cristã: "O Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir". Ao referir-se constantemente a este tema, o Vaticano II outra coisa não fez senão reatar, até mesmo literalmente, com as origens: poucos temas podem-se prestar tão bem quanto o do serviço para levar à compreensão da intervenção messiânica e da missão da Igreja.

 

Mas o serviço não se reduz a um espírito nem a uma mentalidade. Deve marcar tanto as instituições quanto as pessoas. Por conseguinte, definir a relação da Igreja com o mundo sob o signo do serviço, como foi feito no concílio, é, sob pena de nada ter dito - ou, em todo caso, nada dito de novo - engajar a Instituição eclesial e os múltiplos papéis que aí se exercem num processo de reforma bastante profundo. Portanto, não é de se estranhar que a Igreja pós-conciliar atravesse múltiplas "crises": elas estão em estreita continuidade com a orientação básica do Vaticano II.

 

4.2.1. O SERVIÇO DE JAVÉ EM ISRAEL

O mundo grego, a noção de serviço é fundamentalmente depreciada quando se aplica ao serviço dos outros. A imagem que ela evoca então é a do escravo que serve a mesa e serve a bebida. O ideal do grego não é o de servir mas o de exercer o poder, e os termos que designam os papéis na sociedade comportam sempre uma nota de responsabilidade e de honorabilidade. Quanto ao serviço exigido pelas coisas públicas ou aos serviços a prestar às divindades, são designados por termos como liturgia e leiturgein dos quais está ausente qualquer idéia de rebaixamento.

Em Israel, a aventura da fé aclimatou progressivamente a noção de dependência. Jahvé, o Deus de Israel, é o Todo-Outro, e o homem depende radicalmente dele. Sob a ação dos profetas, o ideal religioso do judeu concretiza-se pouco a pouco na figura do pobre que, tal como o escravo, tudo deve à bondade do Senhor e outra coisa não pode senão deixar-se conduzir por ele. Por isso mesmo, o serviço cultual de Jahvé não se reduz de forma  alguma às liturgias praticadas nos templos pagãos. Para ser agradável a Deus, é preciso que ele exprima  a obediência do crente aos precitos da Aliança. Portanto, quando a versão dos Setenta retoma o vocabulário litúrgico pagão, citado acima, para designar o serviço cultual de Jahvé, e especialmente o serviço sacerdotal, dar-lhe-á conotações novas ligadas à aventura da fé. Por outro lado, este mesmo aprofundamento produzirá, em Israel, uma sensível melhoria da condição do escravo: o homem escravizado permanece um homem, e acontece que ele se torna o homem de confiança e até mesmo o herdeiro. Por isso, servir outrem, aos olhos do judeu, não é mais necessariamente infamante.

 

Contudo, tanto em Israel quanto no mundo grego, não passaria pela idéia de ninguém utilizar o vocabulário do serviço de outrem, realizado pelo escravo ou pelo servo, para designar as funções a serem exercidas na sociedade civil ou religiosa. Os serviços políticos ou sacerdotais estabelecem seus beneficiários à parte do povo, acima dele: conferem-lhes necessariamente poder e dignidade. Na época de Jesus de Nazaré, todos aqueles que exerciam algum cargo em Israel eram alvo de consideração: deviam ser saudados de um modo protocolar e ser chamados com nomes que mantinham as distâncias e confirmavam a superioridade de sua linhagem...

 

4.2.2. JESUS DE NAZARÉ E O SERVIÇO DO OUTRO

Nesta condições, é fácil avaliarmos a reviravolta introduzida por Jesus. Segundo o testemunho dos Evangelhos, os Doze que o acompanhavam durante seu ministério público colocaram-se a questão de saber quem era o maior. Jesus respondeu fazendo apelo ao vocabulário do serviço do outro, desempenhado pelo escravo: "se alguém quer ser primeiro, far-se-á o último de todos e o servo de todos". E ainda, de modo mais preciso: "Qual é, com efeito, o maior, aquele que está à mesa ou aquele que serve? Não é aquele que está a mesa? Pois bem, eu estou no meio de vós como aquele que serve!". Não há possibilidade de engano: o vocabulário utilizado é o da diaconia, do serviço realizado pelo servo da mesa a do Senhor. Por sua vez encontramos em Mateus 20, 27 esta declaração: "aquele que quiser ser primeiro será o vosso escravo". Esta é a condição do discípulo, a exemplo de Jesus: estar a serviço dos outros, dar-lhes sua vida por amor.

 

Entretanto, dirigindo-se aos Doze, Jesus indica ao mesmo tempo o sinal com que os papéis seriam exercidos na comunidade messiânica. Os modelos de pessoas importantes não faltam; no entanto, Jesus não toma nenhum deles. Dos sacerdotes que servem a Deus no templo, ele não diz uma palavra. Dos escribas e dos fariseus, declara: "Praticam, porém, todas as suas obras com o fim de serem vistos prelos homens... Gostam do primeiro lugar nos banquetes e das primeiras cadeiras nas sinagogas, das saudações nas praças, e de serem chamados de mestres pelos homens. Vós porém, não sereis chamados de mestres, porque um só é vosso Mestre, e vós todos sois irmãos... Mas o maior dentre vós será vosso servo". Enfim, o papel de um discípulo de Jesus em nada corresponde à função do responsável político: "Sabeis que os que são considerados governadores dos povos, têm-nos sob seu domínio, e sobre eles os seus maiores exercem autoridade. Mas entre vós não é assim; pelo contrário, quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva...Pois o próprio Filho do homem não veio para ser servido, mas para servi e dar a sua vida...".

 

Por conseguinte, o modelo a seguir não é nem o do chefe político, nem o do guardião da lei, nem o do sacerdote segregado: é o do escravo que serve à mesa. E, no dizer de São João, o próprio Jesus não encontra outro meio senão o de servir à mesa seus próprios discípulos para manifestar-lhes, na hora de seu supremo sacrifício, em que sentido o amor estava na raiz de sua intervenção messiânica entre os homens. E deste serviço da mesa, notemos bem, Jesus destaca o momento mais significativo: o lava-pés.

4.2.3. SERVIÇO MÚTUO E A  ORGANIZAÇÃO DA IGREJA

A diaconia e as representações que ela evoca vão exercer uma grande influência na organização das primeiras comunidades cristãs. Esta é a idéia-força que vai regular o conjunto das relações entre os membros da Igreja nascente e, especialmente, o exercícios das funções.

Devido à diversidade das pessoas, a diaconia pode apresentar aspectos muito variados. Mas, porque realiza o amor fraterno até o dom da vida, constrói necessariamente a comunhão, serve ao bem comum; e por esta mesma razão, supõe um dom de Deus, funda-se num apelo da graça, exprime no plano da comunidade a atividade carismática do espírito. "Cada um segundo a graça recebida, colocai-vos ao serviço uns dos outros, como bons administradores de uma múltipla graça de Deus". Entre a diaconia e o carisma a relação é bastante estreita: onde há serviço consciente e responsável da comunidade, há ação do Espírito; e onde há carisma há edificação do bem comum. "A cada um a manifestação do espírito é dada em vista do bem comum". Em outros termos, cada membro da comunidade é chamado pelo Espírito a dar o melhor de si mesmo, e este melhor sempre se inscreve num serviço do outro, num serviço da comunhão. É  nesta perspectiva, profundamente espiritual, que a Igreja primitiva se organiza e se desenvolve.

Esta estrutura diaconal da Instituição não é evidentemente, garantida uma vez por todas. Ela só pode manter-se na medida em que Cristo presente entre os seus continuar a ser percebido como aquele que serve, aquele que serve à mesa! Mas esta representação é de tal forma paradoxal, responde tão pouco às reações espontânea das pessoas, que somente pode recebê-la e compreendê-la uma comunidade crente cuja fé seja bastante viva para unir, em seu coração, uma das instituições mais profundas no Novo Testamento! Em contrapartida, basta que a fé se degrade - e ela sofre sempre uma força de degradação quando se implanta num solo pagão - para que a diaconia perca algo de seu poder regulador na organização da comunidade e das relações entre seus membros. As formas institucionais do judaísmo, e mesmo do paganismo, reaparecem na Igreja, sobretudo quando se tornam estreitas as relações com o poder. Os membros do povo de Deus não se comportam mais como irmãos, encarregados de um serviço, qualquer que seja o papel exercido.

Mas desde que os cristãos se reconheçam novamente como irmãos, chamados cada um a colocar ao serviço dos outros a graça recebida, automaticamente a instituição reencontra sua estrutura diaconal. Em todo caso é surpreendente constatar que, no Vaticano II a  explicitação do tema do serviço foi feita conjuntamente com a afirmação cada vez mais clara do elo primordial da fraternidade entre todos os membros do povo de Deus.

 

4.3. SERVIÇO DOS HOMENS E A IGREJA SERVA DO MUNDO

Na Igreja primitiva, o serviço do outro como realização do amor fraterno desvendou sua originalidade própria no dia em que começou a exercer-se com toda a lucidez em relação aos pagãos. Neste dia, nasceu a missão, expressão suprema da diaconia na Igreja. O serviço do outro não é mais um assunto interior à comunidade cristã: quando é apenas isso, corre sempre o risco de degradar-se. Os primeiros cristãos eram todos judeus convertidos, mas compreenderam a originalidade do cristianismo a partir do momento em que seu serviço do outro foi exercido em relação às Nações, e o serviço mútuo que judeus e pagãos se prestaram, engendrou a missão. O que se passou em Antioquia fornece-nos o testemunho mais eloqüente disso. Mas para que a missão permaneça autêntica, não é preciso que ela deixe de ser a expressão por excelência da diaconia na Igreja.

A história da Igreja aí está para nos convencer disso. A partir do século IV, a Instituição eclesial perde pouco a pouco sua estrutura diaconal, por motivos que a história explica facilmente. Com a conversão oficial do Império romano ao cristianismo, a Igreja pouco a pouco se vê repleta de homens e de mulheres que, na sua maioria, não tem nenhuma idéia das responsabilidades conferidas pelo batismo. De modo bastante natural, a Instituição religiosa substitui a Comunhão eclesial. Por outro lado, a profunda decadência das instituições civis leva a Igreja latina a assumir  a tutela do mundo ocidental e a organizar, pra isso, um grande número de instituições cristãs. Nestas condições, tornava-se impossível que a imagem do escravo que serve à mesa ainda pudesse regular a organização das relações entre os membros do povo de Deus, pelo menos, no plano das instituições. Mas durante todo esse período, a missão correu o risco de degradar-se em propaganda e em proselitismo. Não por causa das pessoas que não deixaram de dar testemunho da caridade de Cristo, mas por causa da Instituição que se pôs a organizar a missão como se organiza uma estratégia...

Hoje em dia, está em vias de processar-se uma reviravolta de importância capital. Não se trata mais, para a Igreja, de exercer sobre o destino da humanidade a tutela de outrora. A Igreja deve, ao contrário, retomar seu serviço próprio, que é o de ser serva do mundo: ser o fermento na massa, evitando cuidadosamente ser um instrumento de poder; aceitar ser vulnerável, amando resolutamente todos os homens sob o sinal daquele que serve à mesa!

 

4.3.1. A INICIAÇÃO LITÚRGICA A SERVIÇO DOS HOMENS

O serviço do outro, tal como no-lo propôs Jesus, é com toda evidência objeto de iniciação. Manifestamente, a reação espontânea do homem - tanto hoje como no tempo dos gregos - não o leva a conhecer a relação com o outro sob o sinal daquele que serve à mesa! A fidelidade ao mandamento novo é aprendida pouco a pouco, ao preço de incessantes conversões e de descobertas inesperadas. O que caracteriza toda congregação eclesial é contribuir para esta iniciação, e isto vale de modo todo especial para a assembléia eucarística... Mas é bastante claro que este objetivo não é atingido automaticamente. Já São João, nas origens da Igreja, havia preferido, como notamos acima, substituir em seu Evangelho o relato da Instituição da eucaristia pelo episódio do lava-pés, que nos revela seu conteúdo, sem nenhuma ambigüidade possível. E posto que Jesus, sempre conforme São João, pediu-nos que seguíssemos seu exemplo, temos o dever, em toda época, de interrogar-nos sobre as condições a serem preenchidas para que este exemplo seja, de fato, seguido.

 

4.4.  ESPERANÇA NA FÉ.

Os cristãos de nossa época que participam profundamente das legítimas ambições do homem moderno muitas vezes ficam desconcertados pela falta de horizonte de sua fé, pelo menos da fé que vivem. Eles quase se sentem constrangidos em ser crentes. Quer se acomodem ou não a isso, uma espécie de ruptura produziu-se neles entre suas atividades religiosas e suas atividades profanas. Se permanecem fiéis às primeiras, é porque conhecem em teoria toda a sua importância; mas seu interesse dirigiu-se, antes de tudo, às segundas e é através delas que eles avaliam a seriedade de sua existência aqui na terra. Este divórcio entre a fé e o engajamento na construção do mundo é evidentemente prejudicial à autenticidade de uma e do outro.

Eis um exemplo, entre outros. Diferindo de seu predecessor, o homem moderno tem o sentimento de ter sido o primeiro a valorizar a história. Opondo-se ao eterno retorno das coisas, ele utiliza seu prestigioso poder sobre as forças naturais para transformar o mundo e humanizar o cosmos. A história não é uma realidade acabada, um dado ao qual é preciso submeter-se e adaptar-se custe o que custar; ela se apresenta como uma tarefa a ser realiza, como uma vitória progressiva a ser obtida sobre os múltiplos obstáculos que se opõem à felicidade terrestre do homem. Os cristãos de nossa época partilham este sentido da história com seus irmãos incrédulos; mas, infelizmente, eles não se interrogam sobre o verdadeiro alcance da história a ser construída, nem sobre a sua ligação com a história da salvação.

Ora, a fé em Jesus Cristo nos convida a colocar uma questão fundamental: o homem moderno valorizou realmente a história? Qual  é exatamente o conteúdo de seu sentido da história? Seria algo diferente de uma nova tentativa do homem para anular a história, mas desta vez tornado-se senhor do próprio desenvolvimento temporal e não procurando mais escapar dele? Portanto, mais do que nunca, é necessário que o cristão aprofunde sua fé em Cristo e nele reconheça a fonte a partir da qual ele deve avaliar corretamente o sentido da história que deve promover hoje. Se é verdade que Jesus Cristo realmente desvendou a história no que ela tem de integralmente humano, a ignorância do cristão a esse respeito seria imperdoável.

Não podemos abstrair da esperança do paraíso, da sua necessidade. Mas essa necessidade é desespero se não há certeza de Deus e de uma promessa feita por Ele. Ela não existiu nem pode existir sem a encarnação de Deus, sem sua morte e ressurreição. Por este motivo diz São Paulo que "os outros" estão "sem esperança". Sendo essa certeza Jesus cristo, ser cristão é Esperança. Por essa razão tanto no Novo testamento como nos Padres apostólicos, os conceitos de Fé e Esperança são, de certo modo, permutáveis. Assim, na primeira epístola de São Pedro, fala-se da razão da nossa esperança, quando se descreve a transmissão da fé aos pagãos. A epístola aos Hebreus chama "confissão da esperança" a confissão da fé cristã.  Na epístola a Tito, a fé que recebemos é denominada "bem aventurada esperança". Em Efésios 4, 4-6, se diz que "fomos chamados a uma só esperança" e depois acrescenta-se a sentença fundamental: "um só Senhor, uma só Fé, um só Batismo, um só Deus e Pai de todos". As citações nesse sentido podem ser facilmente aumentadas. O mesmo ensinamento se encontra nos Padres apostólicos. Tanto na primeira epístola de São Clemente como em Inácio de Antioquia e em Barnabé pode-se encontrar esperança em lugar de fé. Inácio está "comprometido para o nome e para a esperança". Os cristãos são aqueles "que esperam no Senhor".

A esperança se baseia primeiramente numa indigência do homem e este espera sempre mais do que aquilo que alguma presença lhe pode dar. Quanto mais se deixa levar por essa esperança, tanto mais percebe que ela ultrapassa os limites do empírico.  Para ele, o impossível é o necessário. Contanto Esperança consiste na confiança de que esse desejo encontre resposta. Se a experiência da indigência, o paradoxo do desejo deve, por si mesmo, levar o homem à desesperança de si mesmo e da racionalidade do ser, essa confiança, ao contrário, será uma oculta alegria, acima de todas as alegrias empíricas e sofrimentos, de tal modo que o homem, precisamente por sua indigência, se torna rico e nela mesma (através da esperança) recebe uma felicidade que não poderia receber sem esse esforço. Sendo assim, pode-se definir a Esperança como a antecipação do que vem e nela já se encontra o que ainda não é e, precisamente por isso, é a dinâmica que impele sempre o homem a ultrapassar-se a si mesmo e o impele, a cada momento, de dizer: "Pára afinal, és tão belo!"

 

Assim integra a Esperança "a dinâmica do provisório", a ultrapassagem de toda efetuação empírica, de outro lado, também o fato de que por meio dela, o que "ainda não é", "já" se faz presente na nossa vida. Esperança é absoluta confiança. esta, porém, não pode basear-se senão em uma espécie de presença. É precisamente isto o que diz a definição de fé, segundo a epístola aos Hebreus: a fé é a "Hypóstasis" das coisas que se esperam, a certeza do que não se vê. Neste texto bíblico fundamental se revelam a ontologia e  a espiritualidade da esperança.  Até na exegese protestante, se reconhece que Lutero e os exegetas fiéis a ele erraram, quando procurando um cristianismo não-helenístico, traduziram a palavra "Hypóstasis".  Na introdução dessa epístola - 1, 3 - diz-se que Cristo é o esplendor da glória de Deus e a imagem da sua "Hypóstasis". Dois capítulos após, esta sentença fundamental da doutrina trinitária e cristológica é estendida à relação entre Cristo e os cristãos, criada pela fé. Pela fé os cristãos são incorporados a Cristo. Trata-se  agora de que mantenham firme aquela participação inicial na sua "hypóstasis". Os  três textos articulam-se entre si, dando uma visão perfeitamente clara. As coisas empíricas constituem o transitório. Deus mesmo, que se manifesta e revela em Cristo, é a realidade permanente, imutável, a única verdadeira "hypóstasis". Pela fé saímos do jogo de sombras das coisas corruptíveis e alcançamos o solo firme da verdadeira realidade, ou seja, a "hypóstasis", que literalmente significa: aquilo que está e sobre o qual se pode estar. Por outras palavras: fé é encontrar um terreno firme, é achegar-se à verdadeira substância de todas as coisas. Pela fé a esperança firmou pé. O barco de esperança que prorrompe do nosso ser, não se desfaz no vazio, mas encontram um firme apoio, que, da nossa parte, devemos manter com segurança. Aqui se passa da ontologia para a espiritualidade. Isto se evidencia se consideramos o contexto em que está a definição fé, na epístola aos Hebreus. Ela é preparada no capítulo 10, anterior, por uma espécie de jogo sutil de palavras. Há aí uma porção de conceitos, todos começando com o prefixo "hypó" (de baixo): hyparchein, hypárxis, hypomoné, hypostéllein, hypostolé. Afinal de que se trata? O autor lembra aos leitores que os cristãos, por amor da fé, perderam "tá hypárchonta", isto é,  o seu dinheiro, os seus bens, portanto, aquilo que na vida, em geral, é considerado a "substância", sobre a qual se pode edificar uma vida.

Agora começa o jogo de palavras  do texto: precisamente com a perda daquilo que, em geral, constitui a "substância", o terreno firme da vida, evidenciou-se que os cristãos possuíam uma "hypárxis" melhor, ou seja, a que permanece e que ninguém pode arrebatar. O sentido literal de "hypárxis" é "estar presente". Nessa passagem - 10, 34 - o seu significado é: nós, os cristãos, possuímos outro modo de ser, pousamos noutro solo, que ninguém nos pode arrebatar, nem mesmo a morte. Daí a admoestação que faz a epístola de não pormos de lado a fraqueza da confissão, para a qual, porém é necessária a "hypomoné". Esta expressão se traduz por "paciência". Nela intimamente ligados o aspecto objetivo e o espiritual. Possuímos um fundamento firme, mais sólido do que o sensível, do que os bens materiais. A firmeza desse fundamento corresponde a firmeza e a liberdade daquele que se tornou independente dos poderes que não podem dispor senão sobre as coisas sensíveis. Essa atitude é muitíssimo mais do que "paciência", no sentido corrente, é um novo modo de ser. A essência dessa ainda é mais explicitada pelo autor, quando evoca o contrário dela, ou seja, a "hypostolé" numa citação do profeta Habacuc. A "hypostolé" é atitude de acomodação, de quem se camufla ou se adapta a qualquer preço. É a de quem leva uma vida sem princípio nem verdades, não desejando senão salvar-se a si mesmo e, com isso, perdendo-se a si mesmo.


Sem dúvida formulada após o exílio.

Gn 1, 28.

Mc 10, 45

ver por exemplo, 1 Sm 2, 11, 18.

Mc 9,34; Lc 9, 46; 22, 24

Mc 9, 35

Lc 22, 27

Mt 23, 5-11

Mc 10, 42-45

Jo 13, 1-17

1Ped 4, 11

1 Cor 12, 7

Cf. 1Pd 3, 15.

Cf. Hb 10, 23.

Tt 2, 13.

Cf. 2Cor 2, 12; Gl 5, 5; Ef 1, 10; Cl 1, 23.

Santo Inácio, Efésios 1, 2; Baranabé 19, 7; Clemente 11, 1; 22, 8; 27, 1; Inácio, Magn 9, 1; Ef 21, 12.

Hb 11, 1.

Hb 3, 14