5.1. ESPERANÇA E POSSE.

 

A primeira vista, poderia parecer que, nas palavras da epístola aos Hebreus, se trata de uma concepção totalmente  platônica do mundo. Ao mundo visível dos fenômenos contrapor-se-ia a substância invisível como sendo o que existe propriamente, ou a única realidade na qual o homem se deve apoiar. Mas a quem examina todo o curso das idéias, torna-se evidente que esse esquema é útil a uma dinâmica da Esperança que não podia provir senão, única e exclusivamente, do encontro com o Cristo Ressuscitado ou com a promessa que Ele não só fez, mas é. Dessa dinâmica da esperança faz parte o pobre, o despojado, o aberto, o qual se liberta da ditadura da posse, daquela procura fundamental falsa, dos bens materiais, que vê na posse destes a substância propriamente dita da vida. Quando a posse se apresenta como garantia do futuro, nasce uma falsa esperança, que não pode senão levar o homem a uma desilusão final. As leis da posse obrigam-no à  "hypostolé", ao jogo das acomodações, através das quais as pessoas querem garantir a simpatia dos poderosos e das autonomias em função, e manter estável a sua ‘substância'.  Quem procura, através de mentiras, a própria segurança, pode talvez salvar a sua situação, a sua posição - tá hypárchonta -, mas é muito alto o preço que deve pagar. Destruir-se-á a si mesmo e perderá a sua verdadeira base - a hypóstasis. A esperança degenera em cinismo. Devemos saber perder para "aceitar com alegria", perda do estado, da posição, dos bens e de tudo que nos prende de forma escrazivadora. Somente assim vemos aparecer por trás das falsas esperanças, a verdadeira, a que ninguém pode tirar ou destruir.  Vale sublinharmos neste ponto a oração final retirada do "Gelasianum Vetus",  a qual está indicada, no Missal de Paulo VI, para a festa da Ascensão do Senhor. Pedimos aí com a Igreja que os nossos pensamentos  se voltem para onde está a nossa substância, junto do Pai de Jesus Cristo, nosso Deus. Realmente nenhuma festa do ano litúrgico exprime talvez tanto a essência da Esperança cristã como a Ascensão do Cristo. Com Cristo está junto de Deus a nossa substância. Importa agora que transfiramos para junto da nossa substância a nossa vida atual, que não vivamos deixando de lado a nossa própria substância, não permitamos que a nossa vida real permaneça fora da sua substância, mergulhamos no nada desta forma, no contigente, no "acidental". Muito facilmente pode alguém chegar ao ponto de viver a sua vida, deixando-se de lado, alienado e emaranhado no acidental. No fim, tal vida está "sem substância" e por isso sem esperança. A esperança em que nos apoiamos é a de que a nossa substância já está no Paraíso. Assim viver na Esperança é viver do corpo e no corpo de Cristo. Isto é "hypomoné", paciência no permanecer, ao passo que "hypostolé" é mergulhar no contigente, furtar-se à realidade e assim lançar fora de si a própria vida.

 

 

5.2. ESPERANÇA E RECOLHIMENTO INTERIOR DO SER.

 

No âmbito Franciscano temos esta dimensão da esperança muito presente e podemos exemplificá-la apresentando um texto dos sermões de Avento de São Boaventura, que poderíamos chamá-lo de antologia teológica e espiritual da Esperança. O Santo explica a sentença do Cântico dos Cânticos, importante na tradição mística: "Sentei-me à sombra daquele que o meu coração procura".

 

A sombra de Cristo é a graça, diz Boaventura, a qual, no ardor crescente do mundo, é para nós um espaço de proteção e refrescante acolhimento. O "sentar-se" ao repousar do espírito, ao recolhimento, o contrário da inquietude do pensamento, acomodatícia e sem finalidade. Para essa entrada no espaço onde está o objeto do nosso interior anseio, é portanto, necessário que "o cristão não esteja voltado para as coisas exteriores, mas, em vez disto, totalmente recolhido interiormente. É indispensável que nada venha colocar-se de permeio e, assim, possa deixar em si, imediatamente, o gosto dos bens eternos". Estas palavras, talvez um pouco abstratas, tornam-se perfeitamente claras quando as relacionamos com as legendas de Francisco de Assis, no que se refere à origem do Santo Sol. Em meio às dores quase insuportáveis da sua enfermidade e num alojamento pouco confortável, percebe Francisco o tesouro que já lhe foi dado. A voz do Senhor diz-lhe: "vive desde já na alegria, como se já estivesse no meu meio".

 

Outro exemplo mais tarde é o de Santo Inácio Loyola, que é desarmado pelo amor de Jesus também num leito de convalescença, devido um combate e uma "pseuda-esperança". Inácio é homem forte, vaidoso, orgulhoso por ser um cavaleiro, um soldado, tudo bem para a sua época. Porém nesta mesma época depois de uma experiência  com Deus. Experiência também de esperança, ele, jovem guerreiro deposita no altar de sua nova donzela, Nossa Senhora de Monserrat, sua espada, sua armadura e se reveste da armadura da fé e do amor-esperança em Deus, que não é um simples Deus, mas um que doa seu Filho unigênito e este assume os pecados de todos, este que não tinha pecado.

 

Tendo sido libertado das muitas esperanças, estes dois santos da Igreja tornaram-se testemunhas de que o homem tem "Esperança", é um ser da Esperança. Digamo-lo de modo mais prático: não corremos todos nós o risco de perder, com os dissabores quotidianos, a graça da esperança? Quanto mais nos entregamos só às coisas exteriores, tanto menos pode a verdadeira, a real e grande Esperança compensar a ação destruidora da labuta diária. Esta se torna a única realidade, a vida toma um aspecto pardo, as esperanças se transforma em desilusões, gasta-se o otimismo original e a melancolia torna-se uma espécie traiçoeira de desespero. Só podemos ser portadores da esperança se não nos limitarmos ao empírico, ao quotidiano, mas se fixarmos realmente na "substância". Quanto mais aí nos concentrarmos, tanto mais real será a Esperança, tanto mais iluminada por ela a fadiga. Somente assim teremos visão para a claridade do mundo, a qual, do contrário, sempre mais se retrai do nosso olhar.

 

 

5.3. DIMENSÃO SOCIAL E CÓSMICA.

 

Será que tudo mira a fuga para a interioridade e que o mundo como acidente fica entregue ao desespero?

 

Na realidade, trata-se precisamente de criar condições de vida nas quais não seja mais necessária a fuga para a interioridade, uma vez que o sofrimento é excluído e o próprio mundo se torna o paraíso. Evidentemente não queremos suscitar uma polêmica com os marxistas e evolucionistas sobre suas teorias da esperança. Basta citar duas questões para colocar o todo na devida luz. Em primeiro lugar, o paraíso começa a cintilar aos olhos dos homens, do modo mais seguro, quando são libertados da cobiça e a sua liberdade interior, a sua independência frente aos ricos desperta, ao mesmo tempo, neles, grande a alegria e bondade. Onde deveria começar propriamente a mudança do mundo, a não ser na mudança dos homens? Que mudança poderia ser mais libertadora do que a que cria um clima de alegria?  A Segunda questão começa por uma constatação seguindo os exemplos dos santos citados acima - Francisco e Inácio. A esperança deles não eram um recuo para a pura interioridade e para o individualismo. Ela lhes deu coragem para aceitarem a pobreza e a capacidade de vida em comunidade.

 

A esperança , a qual segue Hebreus, trata-se de superar a cobiça, é uma posse como base, apoio do ser é ultrapassada por um elemento novo, de tal modo que o homem fica livre perante ela. É precisamente a avidez de possuir que fecha ao homem o paraíso. Nisto se encontra a solução tanto para a questão econômica como para a ecológica. Ambas se tornam insolúveis, se o homem não é libertado por uma nova "Esperança fundamental".  Por esta razão a busca da interioridade, como no-la apresenta o Novo testamento, é também o único meio que nos leva para fora, para liberdade.

Aqui a temática da esperança se amplia englobando a questão das relações entre o homem e a criação. O homem está tão profundamente ligado à criação, que para ele não pode haver salvação que não seja também salvação da criação. Esta interdependência é exposta por Paulo em Rm 8, 1ss. a criação também aguarda. É importante aí que, segundo o apóstolo, a esperança da criação não é o sentido de afinal poder alcançar fora o homem. Ela aguarda o homem transfigurado, o homem que se tornou filho de Deus. Este homem que restituirá também a liberdade, a dignidade e a beleza. Por meio dele, ela mesma a torna divina. Heirinch Schlier comenta:

 

"Toda criatura está preparada e tensa, esperando esse acontecimento. Com isto é imposta ao homem uma imensa responsabilidade, ou seja, ser a realização de todo o anseio da terra e do céu ..."

 

No entanto, a criação por ora experimenta o contrário. Ela

 

"... está sujeita à vaidade, não por própria vontade, mas por aquele que a sujeitou".

 

Quem a sujeitou foi Adão e este representa o homem que se entrega completamente à cobiça e à mentira. A criação é escravizada por Adão, ela geme e aguarda o verdadeiro homem, que a trará de volta a si mesma. Ele está sujeita à vaidade, isto é, está agora emaranhada nas mentiras do homem, apresenta-se como deus, em vez de testemunhar o Criador. Não se encontra mais como deve ser segundo a verdade, "não corresponde mais ao que é, ou seja, criação".

 

Participa, pois, da queda do homem. Somente o novo homem pode restaurá-la. Nele  está a sua esperança. A criatura mesma aguarda o novo homem e onde este se apresenta, ela se torna novamente reconhecível como criação e como livre. A relação entre o homem e a natureza não pode ser salva senão pela "Esperança fundamental", a qual constitui o objeto da fé.


Hb 10, 34.

 

Cf. J. Pascher. Die Orationen des Missale Romanum Ppst Paul VI. Vol. 3 Tempo Pascal. Ottilien, 1982, pp 117 ss.

Ct 2, 3.

Doming I do Adv. Sermão II, in Op. Omnia IX, 29. A.

ESSER. Opuscula Sancti patris Francisci Assisiensis. Biblioteca Franciscana Medieval, Grottaferrata, 1978, p. 47.

SCHLIER, H. Das Ende der Zeit. Freiburg, 1971, pp. 250-70.

Ibidem, p. 255.

Idem. Roemerbrief. Freiburg, 1971, pp. 260.