O cristão é chamado a partilhar a tribulação e apuro do outro, no qual o próprio Deus se esconde e este abertura às deficiências do irmão tem como conseqüência um acolher sincero, que só é possível numa disposição pessoal de pobreza de espírito. Não há só pobreza com sentido negativo, existe uma que é abençoada por Deus e é este que no Evangelho é dita de Bem-aventurada. Graças a ela. O cristão reconhece que a soteriologia é exclusivamente de Deus e torna-se disponível para acolher e servir o irmão, considerando-o superior a si mesmo. Esta atitude de pobreza é resultado da mudança radical provocada por Deus em nossos corações, visto que isto nos leva a um grande  desafio: o acolhimento que não pode deixar de se sentir empenhado em fazer com que cada homem possa encontrar condições de vida condizentes com a sua dignidade de filho de Deus.

 

Vale a pena lembrarmos o pensamento do Bispo Dom Pedro Casaldáliga, em sua obra " Com Deus no meio do Povo":

 

"O que é, para mim a experiência de Deus?  Vocês me fazem algumas perguntas vitais, que me obrigam a responder, porque nós cristãos temos o dever e a graça de dar testemunho de nossa esperança.

Pedem-me este pequeno testemunho pessoal para as comunidades cristãs do povo basco. Isto me obriga ainda mais. Creio cada dia mais no poder do fermento das pequenas comunidades. Creio cada dia mais no direito sagrado das minorias que têm, todas, a seu modo, uma especial característica evangélica: são um "resto", são "os pobres". O contato com os povos indígenas, sua luta, seu martírio, vão desenvolvendo em mim agudamente esta consciência. Sou catalão, o que já pode significar também certa experiência de minoria, vivida em carne própria.

Joseba diz que estão descobrindo cada dia mais que nossa fé tem muito de identificação com uma mensagem. Também minha fé partiu daí; a de quase todos, de uma forma ou de outra. A fé entrou em nós pelos ouvidos. Isto já foi constatado por São Paulo, canonicamente, digamos.

(...)

Faltou-nos "ver" o mensageiro desta mensagem. Faltou-nos encontrar-nos com Jesus Cristo. Conhece-lo, ama-lo, segui-lo.

(...)

Penso que cada um tem sua hora. Deus dá a cada um oportunidades.

Para mim foram estas: minha família, "nossa" guerra, o seminário - apesar de todas as suas aberrações de formação. Apesar das aberrações, de "nossa" guerra. Recordo alguns momentos fortes que me marcaram: o estudo de São Paulo, por exemplo; as vidas de Jesus Cristo e outros livros cristológicos que li com proveito. E uma obsessiva petição que eu fazia, naqueles bons tempos, para conhecer Jesus Cristo.

Foram sempre os pobres. O pobre é o melhor Evangelho de Jesus. Foi e é o contato com o próprio Jesus Cristo, vive presente na oração, na eucaristia, nos compromissos concretos por sua causa.

(...)

Penso que somente a vida nos faz viver. Só buscando Cristo se encontra a Cristo. Só buscando onde está, é claro ...

Eu disse que nos falou "ver" o mensageiro, enviado do Pai, misteriosamente igual a Ele e misteriosamente e igual a nós. Mensageiro feito mensagem de   carne, de pobreza, de liberdade, de morte, de vida nova.

Faltou-nos   também sentir e viver o para que da mensagem, para quem ia, com quem devíamos compartilhar. Faltou-nos conviver a menagem; nossa fé foi raivosamente privada. Capitalizadora, e, por isso mesmo, condenada a esterilidade, ao tédio radical, a morte.

Faltou-nos sentir o reino pelo qual o Verbo de Deus se fez homem. Posso assegurar-vos que somente nestes últimos anos descobrir com certa lucidez libertadora, a verdade do Reino; que é  maior do que a Igreja; do qual a Igreja é um sinal, para o qual  tudo deve tender; que se constrói com tudo que há de verdade, de justiça, de fraternidade, nas lutas, nas aspirações dos homens.

Faltou-nos sentir-nos Igreja, antes de mais nada. Que talvez não seja o que vínhamos pensando ser, contrapelo e com razão. Que é, deve ser, outra coisa, a comunidade fraterna, livre, jubilosa, serviçal, daqueles que receberam o mesmo Dom de crer em Jesus Cristo, de viver conscientemente de seu Espírito e de anunciar o seu reino, fazendo-o com a palavra, com a vida, hic et nunc, para um amanhã melhor e eterno..

(...)

Penso também que se trata voltar sempre a Deus , de dar voltas a Deus. É preciso experimentar a Deus, porque é possível. Porque esta experiência - de fé, de confiança de serviço no serviço aos irmãos  - é o mais vital de nossa própria vida. É claro que Deus não pode ser demonstrado nem se consegue experimenta-lo com receitas, mas vivendo justamente.

Devo reconhecer que Deus foi fácil para mim. Graças a Deus, nuca duvidei de Deus. Graças a Deus, sempre tive a impressão de que só Deus resolve, em última análise, o insolúvel da vida. E sempre me senti criança diante de Deus. Reconheço que esta fé é uma Dom. creio também que é resultado gratuito de uma certa "certa simplicidade" interior. Os ricos, os grandes, os grosseiros, não poderão ver a Deus. Não sou eu quem o diz, é o Evangelho. O problema não é ser pecador, mas ser presumido. Só há pecado radicalmente tal: o orgulho exagerado.

Não sei se tudo isso parecera uma simples receita, embora eu esteja condenando as receitas. Nem sei, Joseba, se é isto mesmo que você queria.

Seja como for, quero dizer-lhe mais três palavras: a pobreza, a esperança e a "caridade" (esta entre aspas, a pobre, porque foi prostituída, durante séculos, como uma mulherzinha portuária).

Creio que a pobreza se nos impões, aqui e ali. Uma pobreza que nos liberte de nós mesmos, das coisas como cobiças, como manuseadas, do consumismo, da artificialidade da vida, toda ela eletrodomesticada. Uma pobreza que nos liberte da competição, do deus lucro, do capitalismo (e capitalismo é pecado, digo eu... e não vejo como absolve-lo, amigos). Para entrar em sua luta - que é clássica, naturalmente, porque as classes estão aí e são a constituição iníqua da nossa sociedade - para ajuda-los a vencer a miséria, a submissão, a dependência, a exploração. Uma pobreza que nos devolva comunitariamente a simplicidade da vida.

Sei que estou falando utopicamente, ou seja, evangelicamente. Creio que estou recordando apenas o verdadeiro plano de Deus e a verdadeira não se acredita nisto e não o pretendemos, arriscando-nos por isso até as        últimas conseqüências,

maldita a graça de nossa vida humana.

A esperança, dizia Péguy, é a melhor das três - as três virtudes teologais - e deve ser a mais apaixonadamente vivida , talves mais ainda em nossos tempos desesperados e auto-suficientes. Uma esperança invencível, apesar de todos os pesares, contra toda esperança. Ali nos encontraremos com todos os utópicos e todos os verdadeiramente revolucionários. Ali nos encontramos com Jesus Cristo ressuscitado, que é a nossa Páscoa e por isso mesmo a nossa esperança.

Uma esperança que nos falta vencer o tédio, a rotina, a decepção, o desespero, as falhas da família, da sociedade e da Igreja, nossa própria impenitentes falhas...

Nestes rudes anos de Mato Grosso, com tanta injustiça, tanta a morte absurda e com problemas de  repressão político-policial  ou de incompreensão,  eclesiástica, com a morte rondando qual assas para o bote, eu cresci, sobretudo em esperança. Raivosamente. Agora parece-me até que só se espera na medida que se vivem circunstâncias concretas desesperados. Só se espera, dirimais na medida que se desespera. A esperança, penso agora, também é pobreza. Ninguém vai esperar se já esta farto como seu eu, com o seu agora, com seu mundo presente. Só espera quem vive o futuro.

(...)

Façam a prova: dêem-se ao próximo, ao pobre, ao oprimido. Façam-se marginalizados com os marginalizados. Na pobreza marginalizada, compartilhada a partir do Evangelho, sempre se encontra a Deus."

 

 

 

O que podemos deduzir deste texto de Dom Pedro Casaldáliga é o atualizar da esperança em nossa realidade, em nosso Brasil. O tema do trabalho visa a realidade brasileira, contudo vimos na necessidade de primeiro apresentar a visão da Esperança e das esperanças, apresentar alguns enfoques, a fim de que ao falarmos da perspectiva de esperança a partir do pobre de hoje no Brasil, não se tornasse pesada e enfadonha.

 

O " modo pelo qual o capitalismo se institucionalizou, difundiu-se e desenvolveu-se na América Latina" fez com que as sociedades de classes neste contexto, aqui está a realidade brasileira, se constituíssem como formações socieconômicas  com  características peculiares onde "umas classes são mais classes que as outras".

 

O Brasil é um espelho claro de invocação capitalista que se incrusta numa realidade social, cuja integração na socialização das conquistas da revolução burguesa dá-se apenas de forma superficial e minoritária. Como todas as sociedades latino-americanas, também no Brasil é enorme a massa dos assim chamados "condenados do sistema".

 

Darcy Ribeiro nos discorre o seguinte:

 

"No caso do Brasil, cujas classes dominantes se formaram no escravismo, com uma postura socialmente irresponsável com respeito às classes subalternas, e sobretudo, às oprimidas, cristalizou-se uma estrutura social cruamente desigualitária que gera enormes tensões, dificultando ao extremo a conciliação de classes. Embora os conflitos raciais sejam memores que em outras partes, a distância social que separa ricos e remediados dos pobres e, principalmente, dos miseráveis, não podia ser maior. Não cabe aqui nenhuma instituição democrática ou dignificadora. Todos os bem  que a igualdade perante a lei é uma igualdade dos pares , que são os patrões e os patrícios e, no máximo, a "gente boa" dos setores intermediários; que ela dificilmente se aplica à subgente subalterna e jamais à não gente oprimida".

 

A Igreja no Brasil, ao longo de toda sua história, foi sempre nitidamente uma grande parceira das classes dominantes. Formada quase exclusivamente de católicos tradicionais e caracteristicamente portadora de ideologias conservadoras, mostrou-se até tempos recentes como força institucional conivente com as estratégias de defesa dos interesses das classes dominantes e estranha à incipientes estratégias de afirmação dos interesses dominadas, na medida de que estas foram se constituindo. Assim pensam muitos inclusive dentro da Igreja, contudo é bom lembrarmos que algumas pessoas da Igreja se afastaram do ideal da própria Igreja que nunca se afastou do pobre e muito menos dos ricos, pois a Igreja, é uma assembléia de todos, principalmente dos pecadores, pois foi para eles que Cristo veio e não aos sãos. A Igreja sempre se preocupou com o povo de Deus, os pobres, os escravos, os proletários; houve paternalismo, com certeza. Mas a Igreja, principalmente pelo Vaticano II é colocado ao homem de hoje, com todas as suas angústias, digo e repito ao homem de hoje, não a este ou aquele, mas ao homem, a todos que sejam pobres de espírito, a todos que estejam abertos, conscientes da própria história da salvação que se dá na história de cada um. Sejamos críticos na questão do pobre hoje e principalmente no Brasil, vejamos em nosso seguimento justamente esta "opção pelos pobres".

 

 

9.1. "OPÇÃO PELOS POBRES"

 

O texto provisório, tal como saiu da assembléia dos bispos em Puebla, referia-se ao anúncio da palavra da palavra "como um dos sinais messiânicos do reino de Cristo aos pobres". O  Santo Padre corrigiu a frase deste modo: anúncio da palavra de Deus "aos pobres, como um dos sinais messiânicos do reino de Cristo".

 

A  mudança deixa entrever duas versões diferentes da redenção cristã: a primeira significando que Jesus veio ao mundo para salvar os pobres; a segunda pondo em relevo que ele veio para salvar a todos, também os pobres. A interpretação progressista do documento fixou-se no texto provisório e erigiu  o pobre em novo ídolo. A opção preferencial pelos pobres e a solidariedade humana e cristã que os devem beneficiar corromperam-se na mente de muitos, até receberem de um eminente membro do Episcopado brasileiro uma interpretação inimaginável: "Quando a Igreja tem que decidir entre um e outro, tem de fazer como Cristo, ir ao encontro dos pobres!".

 

Numa secção informativa a cargo das regiões episcopais da cidade de São Paulo publicou-se um artigo no qual, aos que justamente criticavam a coleção de slides preparados pela equipe de Paulo Freire e projetados em todas as paróquias para orientar a avaliação do plano de pastoral da arquidiocese por envolverem excessivamente a Igreja nos conflitos sociais, dizia-se:

 

"A Igreja, em geral, não gosta de conflitos. Prefere elevar-se a um nível de abstração e pregar o amor universal. Não sabe como aliar o amor com uma posição partidária. Porém, o pensamento teológico atual e o espírito de Puebla nos ensinam que o amor é universal quando passa pelo amor particular e preferencial pelos pobres.

Fazer uma opção partidária implica viver em permanente conflito, isto é, aceitar ser sinal de contradição, como Cristo foi e previu para a sua Igreja.".

 

A opção pelos pobres apresenta-se aqui, inequivocamente, como opção partidária e conflitiva, contra o sentir comum da Igreja, que não teria ainda descoberto, antes de Puebla, a verdadeira essência do amor universal.

 

Uma outra publicação eclesiástica definia a prática pastoral dos militares cristãos junto às comunidades pobres como opção classista orientada para formação de blocos de ação política que exprimam os interesses objetivos das camadas populares.

 

Com semelhantes mestres a opção pelos pobres tornava-se mero disfarce da luta de classes, e um cristianismo enlouquecido apoderou-se de muitos espíritos pela confusão do sentido material da pobreza como o da pobreza evangélica.  Nem mesmo os folhetos das novenas do natal em Família, impressos, em profusão por todo o Brasil desde que a iniciativa foi lançada em começos da década de 60 pelos dois primeiros bispos de São João da Boa Vista, São Paulo, escaparam da incrível mistificação. Um texto de 33 páginas, "Natal, celebração da Esperança", editado em 1979 pela arquidiocese de Goiânia, não hesitou em traduzir  assim, para gáudio da esquerda clerical, o espírito natalino:

 

" Há mais de 2.000 anos Maria já pensava ser a vontade de Deus derrubar os poderosos de cima e mandar embora os ricos de mãos vazias. O  poderoso, o rico, é difícil de se converter, por isso é mister derrubar e mandar embora!"

 

E  rejubilava com a esperança do novo Natal:

 

"Ainda hoje são os pobres organizados que vão encontrar a solução para os problemas do mundo ... O povo trabalhador também está pensando em organizar seu partido".

 

Um folheto semelhante, "Natal em família: 1980", sob responsabilidade dos missionários redentoristas de Brasília e valorizando com uma apresentação do secretário-geral da CNBB, abria o primeiro dia da novena com uma clara discriminação:

 

"Jesus veio à Terra! Não enviou comunicados aos grandes do mundo! Não informou os poderosos! Nem mesmo os sacerdotes foram avisados! Mas ele queria que alguém ficasse sabendo! Alguém tinha direito à notícia! Foi por isso que enviou seus mensageiros aos pastores ... pessoas humildes que cuidavam do rebanho!"

 

Estes são apenas dois exemplos de trechos de novenas que, à sombra da "opção preferencial pelos pobres", pregam o anti-Natal de Jesus Cristo e por conseqüência uma anti-Esperança.

 

A conclusão mais palpável que se tira dos Evangelhos é que Jesus não se decidiu entre uns e outros. Ele sempre evangelizou a todos, sem complexos nem partidarismos de qualquer espécie. Se pareceu repelir uma pobres mulher que era estrangeira, foi para propô-la como modelo de fé a seus discípulos. Logo que nasceu, foram adorá-lo, por chamamento divino, pastores e magos, que  eram sábios astrólogos. É contrário à fé cristã dizer que só os pastores foram avisados. Até Herodes o foi, assim como os sumos sacerdotes e os doutores da lei, por meio dos magos. A primeira manifestação pública de Jesus, ainda adolescente, como evangelizador aconteceu no Templo junto aos doutores da lei. E constantemente ele se dedicava a instruir os escribas e fariseus e a acolher homens como José de Arimatéia, assim como cobradores de impostos e centuriões. Jesus foi especialmente amigo de Lázaro e de Marta e Maria, de Betânia, que não constituíram uma família pobre.

 

O documento de Puebla apresenta no n. 1.142 uma tendenciosa montagem de citações bíblicas, com reflexos em outros lugares do texto, que é uma conseqüência da demagogia que procura transformar a Igreja de Deus em um clube fechado ou sindicato de pobres, e confundir o particular desvelo que estes merecem com luta de classes. Podia, com o mesmo desprezo pela verdade total, fazer-se outra montagem de citações provocando o oposto.

 

Tornou-se moda exaltar a pobreza dos bispos e dos padres do nosso tempo, em confronto com os dos tempos passados, mas, se tudo olharmos com atenção, talvez não custe muito descobrir que o testemunho atual de pobreza, e portanto a "opção dos pobres", é menos convincente do que parece. A única maneira de levar a bom termo esta opção é o recurso ao "testemunho silencioso de  pobreza e desprendimento e transparência, de abandono na obediência", virtudes que não são apanágio dos cristãos de hoj e que é preciso aprender na escola dos santos de todas as épocas.

 

A pobreza foi um dos grandes temas do Concílio Vaticano II. De tudo que ali se disse ensinamentos e da prática da Igreja em dois mil anos, concluiu-se que a virtude da pobreza tem dois graus distintos: o primeiro consiste em fazer bom uso das coisas materiais, e neste sentido pode  ser tão pobre um rico capitalista como um indigente; o segundo grau, que não é obrigatório, pois trata-se de conselho evangélico, provém da renúncia à possa legítima dos bens terrenos e aos prazeres e comodidades que esses bens propiciam.

 

Como parte essencial da pobreza, no primeiro grau, situa-se a eqüidade, isto é, a ausência de privilégios injustos dentro dos vários grupos e categorias de pessoas. A injustiça social consiste, não na desigualdade, mas no uso da riqueza de uns em prejuízo de outros. Tanto no primeiro como no segundo grau, a pobreza cristã inclui o desapego interior, que significa a disposição de antepor a tudo a vontade de Deus.

 

No grau mais excelente de conselho evangélico, a pobreza é uma virtude complexa, irmão da castidade perfeita; em ambas, na pobreza e na castidade, encontramos um renúncia  total, impossível sem a força do amor e da graça divina. Como todas as virtudes morais, a pobreza  é progressiva, nunca existindo o segundo grau sem o primeiro, na mesma pessoa.

 

É a Igreja Católica uma sociedade pobre?

 

Na proporção em que nela subsistirem desigualdades injustificáveis, a Igreja não pode ser considerada senão imperfeitamente pobre, tomada a pobreza no primeiro grau. Com razão o arcebispo de Konakry, Guiné, Raymond-Marie Tchidimbo, advertiu os Padres conciliares, em 23 de outubro de 1964, de que a Igreja não será pobre se os bispos e outros eclesiásticos não seguirem os caminhos da eqüidade, que ele designou pela palavra "socialização". É, de fato, pouco abonatório que se pretenda impor a socialização à vida civil e se fuja de estabelecê-la suficientemente entre as dioceses e as paróquias.

 

Depois que cresceu como instituição, jamais a Igreja deixou de possuir bens materiais, que são indispensáveis a todas as grandes instituições. Por isso, a Igreja, enquanto sociedade, não pode ser pobre no grau total da virtude da pobreza, que inclui a renúncia à possa de bens, embora muitos de seus membros, em pequenos grupos e individualmente, o sejam.

 

A Igreja sempre deu e continua dando provas heróicas de amor aos pobres. A Madre Teresa de Calcutá fora um exemplo. Todavia, também a mesma Igreja, que não deixa de ser humana e pecadora, muitas vezes se contagiou do espírito mundano de riqueza. Não deturpemos o testemunho dos fatos num ou noutro sentido. No sentido presente da Igreja também não existe perfeição completa. Por conseguinte, a Igreja deve ser humilde na pregação da pobreza. A falta de humildade tem sido um dos pontos fracos da "opção pelos pobres", depois de Puebla.

 

Apesar dos defeitos que ostenta, o documento de Puebla, que é um documento hídrico, onde duas linhas divergentes de pensamento correm a par, oferece o remédio para suas próprias imperfeições. O conceito de que a salvação em Cristo é para todos tornar-se tão monótono como o da "opção pelos pobres".  O estudo de todas estas passagens em que se explica o significado desta opção leva a concluir que não se trata de alinhar num dos lados, de decidir-se entre uns e outros, mas antes, de um propósito, uma preocupação, uma atenção. Só assim se entende que os bispos falem de muitas outras opções e prioridades, nem falando a dos ambientes universitários e a dos meios de comunicação, nem falando a dos ambientes universitários e a dos meios de comunicação, opções voltadas manifestamente para os ricos.

 

No capítulo III da quarta parte documento percebe-se um maior interesse pelo rigor de critérios pastorais, os autores advogam "a superação da distinção entre pastoral de elites e pastoral popular"; e declaram que "a pastoral é uma só".  O n. 1134 contém um acréscimo, de autoria do Papa, que é muito significativo: "afirmamos a necessidade de conversão de toda a Igreja para uma opção preferencial pelos pobres, no intuito de sua integral libertação". Vê-se que a "opção pelos pobres" na América Latina não é diferente do que deve ser em toda a parte, como seria se o Evangelho pudesse sofrer mutações originadas em situações econômicas e sociais; vê-se também que essa opção não está a serviço da promoção meramente econômica dos pobres, mas de sua libertação integral, que inclui a renúncia ao egoísmo e ao espírito de luta de classes, conforme insistiu em dizer o Papa em seus discursos no Brasil. afinal, a opção cristã pelos pobres não é senão um aspecto da intenção divina e da missão conferida à Igreja de promover o bem de todos e de cada um dos homens.

 

 

9.2. POBREZA RICA.

 

Seria impossível meditar sem a compreensão real do que significa pobreza e do que está envolvido na expressão pobreza espiritual, principalmente para que não tenhamos, como anteriormente apresentamos, dúvidas ou direcionamentos de ideologias e de partidos que não é o caso da Igreja, pois a Igreja não é partido, mas é comunhão, mesmo na diversidade é unidade.

 

O conhecimento do fato de que somos pobres é uma das mais abençoadas e surpreendentes experiências para as quais a meditação nos desperta. Trata-se de um confirmação precisa de que não pretendemos o rumo da viagem; muito mais do que oferecer sucesso espiritual, a experiência da pobreza confirma que continuamos no percurso certo. Conhecemos a pobreza de espírito, conhecemos a nós mesmos. Vamos progressivamente atingindo autoconhecimento de tal natureza e de tal profundidade que, freqüentemente, nos surpreendemos.

 

A realidade é sempre surpreendente. Embora não tenhamos consciência clara deste fato, a surpresa permanece em nós como crescente sensação de admiração. A princípio a experiência da pobreza parece estranha, pouco familiar e até mesmo hostil. Todavia, temos que aprender, através da perseverança na pobreza, a reconhecê-la pelo que ela é, ver que esta profunda experiência, que marca tão intensamente nossa vida, é exatamente aquilo de que Jesus falava nas bem-aventuranças: "Bem-aventurados os pobres de espírito, pois é o Reino dos Céus". O reconhecimento de que as palavras de Jesus se aplicam a nós constitui a grande transformação de nossa vida. No entanto, é preciso que, primeiro, aprendamos a reconhecer a pobreza, para então aprender a sermos pobres, de facto.

 

Pobreza de espírito é experiência essencial e pela qual é importante passar. Se não passamos por ela, não nos abrimos para a realidade. Isto significa dizer que não nos abrimos para a nossa própria realidade e não descobrimos o destino que cada um de nós tem em Deus. Tal estado é chamado de pobreza apenas porque material é metáfora que nos ajuda a compreender esta condição espiritual. Empregamos a palavra pobreza, porque é um estado em que tocamos o fundo do nosso ser, onde esgotamos nossos recursos próprios, mas, ao mesmo tempo, continuamos dependentes do Criador. Teórica ou teologicamente não há nada de muito especial a este respeito. Mas viver esta experi6encia é verdadeiro cataclismo. É conhecer quem somos. É ser simplesmente realista. Pobreza é quase outro termo que pode ser aplicado à realidade. Quando estamos genuinamente puros, conseguimos ver a nós mesmos, ver nossa vida e nossas relações com as pessoas sob luz límpida e clara. Acontece, entretanto, que resistimos instintivamente à pobreza; uma espécie de força gravitacional afasta-nos dela pois preferimos a ilusão de nos vermos independentes do Criador. Sob a falsa luz de um status de independência, acabamos por desenvolver egoísta noção luciferiana de termos com Deus um relacionamento de igual para igual. Perdemos o humilde realismo de compreender que, devido à suprema generosidade divina, estamos em comunhão com Deus, que é algo bem mais amplo que relacionamento. Vivemos, movemo-nos e temos nosso ser nele. A ilusão de independência custa-nos a realidade da liberdade de sermos criança em Deus.

 

Enquanto resistimos à luz límpida da pobreza, nossa visão estará embaraçada. A visão clara que a pobreza nos oferece é aquela que dilata os limite do nosso ser, mas só revela seu significado real quando aceitamos conservá-la por tempo suficiente. O problema é que, ao vislumbrar fronteiras de nosso ser, temos vontade de fugir delas. A perspectiva é muito ampla e resistimos a ela. Sem dúvida, este processo ocorre,  ou pelo menos intensifica-se, devido à nossa condição social. Uma sociedade realista nos ensina a negar a realidade das limitações humanas, a evitar a pobreza e a encará-la como fracasso. Fracasso em uma sociedade dirigida e orientada para o sucesso é um demônio, é algo que sempre nega ou diminui a vida, uma doença que corrói a vida aos poucos.

 

A visão cristã da pobreza desafia a imagem da visão envolta em névoa de que falamos, porque se origina na perspectiva  de Cristo, tem seu foco na cruz e na ressurreição. Sob este foco passamos a encarar o fracasso de maneira bem diferente. Não é que procuremos intencionalmente fracassar, mas conseguimos ver a pobreza do fracasso como parte, mas parte essencial, do mistério de desdobramento da vida, parte do próprio desenvolvimento e expansão da vida. A ressurreição mostra-nos que a cruz já foi um fracasso e lembra-nos que não há vida plena que possa deixar de ter falhas. Não nos é suficiente ver tal idéia exposta de forma teológica e então admiti-la através de dissertação ou de debate. Se ela vai assumir sentido redentor, então temos que penetrar nela de maneira pessoal. É só através de participação pessoal que nossa visão poderá ser límpida e dilatada. A cruz mostra-nos que a pobreza é em si, uma espécie de fracasso, mas ela nos ensina a não opor resistência ao fracasso, uma vez que revela o fracasso como fracasso que leva o espírito humano a superar a si mesmo e vencer as fronteiras mortais através de seus próprios recursos. Se quisermos entender pobreza cristã, teremos que aceitá-la como enriquecimento dos limites de nosso ser e de nossa capacidade, assim como teremos que descobrir que não temos capacidade de ultrapassar certo ponto por nós mesmos. Entretanto, sabemos que vamos mais longe; sabemos que a cruz se dilata para a expansão sem limites da ressurreição; além da fronteira o domínio de Deus.

 

Pobreza é grande pobreza, porque ao tocarmos a fronteira do ser, que é a cruz: tocá-la, ela surpreendentemente recua e, de forma maravilhosa, nosso ser expande-se. Eis o que é ressurreição. Não reconhecemos necessariamente o que significa o poder da expansão. Demora para que o reconheçamos como o poder pessoal de Jesus, de seu ser, no qual não existe fronteiras; demora para que o novo ser da ressurreição  preencha nossa consciência limitada e nela se expanda.

 

Não vamos reconhecer tudo isso imediatamente. Mas toda vez que passarmos por uma cruz, toda vez que tocamos uma fronteira, nossos limites serão empurrados para frente. A cada vez a pessoa de Jesus será vista sob luz mais nítida e pura. É processo que ocorre a cada vez que meditamos e oramos na mesma esperança e na mesma fé. A oração nos oferece um significado supremo para a experiência de pobreza em cada situação da vida.

 

Sentimos a tentação de recuar a partir do próprio limite. Sentimos a tentação de parar de repetir esta esperança, de resistir à experiência de pobreza naquele que se fez pobre, para nos tornar ricos.  Ou, o que seria quase a mesma coisa, queremos tentar fazer, do fracasso, sucesso pela posse da pobreza. É o que fazemos quando sonhamos acordados, numa esperança no futuro, mas numa visão no presente. A trivialidade e o adiamento também são formas de resistência. A contínua fidelidade, a nossa esperança é que nos leva a superar a trivialidade, a divagação, o purgatório sem fim, que é o nosso finis quo, em Deus, o nosso encontro definitivo, a nossa plena felicidade naquele é toda a plenitude. A cruz ensina-nos não a fugir, mas a abraçar a pobreza e a assumi-la de forma crescente, para que possamos viver dentro das riquezas de Cristo. O segredo do evangelho tem sido proclamado tantas e tantas vezes, como se cada geração devesse redescobri-lo por si. É o segredo que se vem escondendo por longos séculos, como Paulo nos fala:

 

".... o mistério escondido desde os séculos e desde as gerações, mas agora manifestado aos seus santos. A estes quis Deus tomar conhecida qual é entre os gentios a riqueza da glória deste mistério, que é Cristo em vós, a esperança da glória! ... para que sejam confortados os seus corações, unidos no amor, e para que eles cheguem à riqueza da plenitude do entendimento e à compreensão do mistério de Deus, no qual se acham todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento!".

 

Vale por último fazermos uma abordagem específica colocando num estudo perspectivo, apresentando os pontos marcantes da visão escatológica Católica, Protestante, Islâmica e judaica, para que possamos concluir, que a perspectiva de esperança se dá de formas diversas, mas que naquele que se faz pobre se realiza a plenitude da sua própria esperança, que não é só temporal, possuidora de finis qui, mas plena no Supremo Bem a que todos somos convidados a abraçar.


Cf. Mt 5, 3.

Cf. Fl 2, 3.

CASALDÁLIGA, P. Com Deus no meio do Povo. Paulinas, 1985, pp. 11-18.

FLORESTA, F. Capitalismo dependente e Classes Sociais na América latina. Zahar, 1975, p. 39.

Idem, p. 40.

 

RIBEIRO, D. Os Brasileiros - Teoria  do Brasil. Vozes, 1978, 105.

Puebla, n. 488.

Cardeal Arns.

In O São Paulo, de 22 a 30 de Outubro de 1980.

Cf. Revista Arquidiocesana, de Goiânia, julho de 1980.

Puebla, n. 750.

Cl 1, 26-27; 2, 2-3.