Gostaria de tecer alguns comentos a propósito do livro "A Relíquia", de Eça de Queiroz. O autor lança uma atroz diatribe contra os costumes rançosos dos burgueses de Lisboa.

A história é mais ou menos assim. Teodorico, a personagem principal, é um órfão, criado pela tia carola, dona Patrocínio; uma senhora amarga, de religiosidade supersticiosa e superficial. Vê ela o demônio e as más intenções em todas as coisas. Como nunca amara um homem, ou melhor, jamais permitira que tal evento ocorresse, fustigava quem experimentasse a paixão romântica e enxergava o pecado em atitudes que denominava simplesmente relaxações. Teodorico odiava a titi, contudo estava vivamente interessado na fortuna dela. Certa vez, conversando com Dr. Margaride, um dos poucos varões que freqüentavam a casa de dona Patrocínio, Teodorico foi alertado de que sua titi legaria todos os bens à Igreja, a menos que o sobrinho personificasse a santa instituição. Vale dizer: Teodorico precisaria de mostrar-se tão carola e piegas quanto a tia, ou mais ainda, se quisesse cair nas boas graças da vetusta e abastada dama.

Bem, para encurtar a deliciosa história, digo que Teodorico foi a Jerusalém, em romagem, a instâncias da velha titi. Prometeu trazer uma relíquia à catolicíssima senhora. Retornando à casa, depararam-se-lhe uns convidados, as pouquíssimas pessoas que visitavam dona Patrocínio, ansiosos por ver a dita relíquia. Antes de abrir o embrulho, Teodorico revelou o que era: a coroa de espinhos de Jesus Cristo! Pasmada, coube à titi o mister de desamarrar o pacote. Que horror! Cambiou-se o pacote acidentalmente. No lugar da antiquíssima coroa que malferiu o cérebro de nosso Senhor, surde uma camisa de mulher com um recado deste naipe: "Ao meu portuguesinho possante pelas noites que gozamos juntos". Resultado: Teodorico foi expulso de casa naquela mesma hora. Titi dirigiu-lhe uma única palavra, aliás a derradeira locução da personagem no livro: "Porcalhão"!

Na verdade, Teodorico vivia uma existência dúplex. Na frente de titi, era um mancebo assaz religioso, eu diria carola e supersticioso. Pelas costas da rica solteirona, Teodorico só pensava em relaxações e corria atrás de saias. O périplo pelo Oriente deu azo a bastantes aventuras, narradas no livro. De quando em vez, Teodorico redigia uma missiva à titi, discorrendo acerca dos terços que estava a rezar, das muitas genuflexões, das conversações pias com as melhores almas etc. Tudo uma grande mentira, é claro!

Na minha opinião, a melhor parte do livro consiste no colóquio que Tedorico trava com sua própria consciência. É um excerto de ingente profundidade teológica e filosófica. Infelizmente, não posso reproduzi-lo aqui, na íntegra, nem tampouco parcialmente. Rogo ao leitor que apanhe a obra de Eça de Queiroz e verifique por si próprio a beleza e substância do texto.

Teodorico, sem poder contar com o ajutório de titi, à custa de quem sobrevivia,  passou a vender as relíquias que trouxera da terra santa: pedaços da cruz, pregos da crucifixão... Só de pregos negociou setenta e seis! Mais tarde, Teodorico conhece uma moça, irmã de um amigo; zarolha, mas com dote e de corpo bonito. Casa com ela. Não era o amor da vida desse rapaz. Vale a pena ler o livro!

 

Edson Luiz Sampel