A prática Eclesial no sentido estrito.

Frequentemente ouve-se esta pergunta: para que servem os sacramentos, se, em fim de contas, podemos unir-nos a Cristo sem eles? Distingue-se, então, o caminho normal da graça e os caminhos extraordinários de Deus. apresentam-se, na maioria das vezes, as coisas como se em um caso de falta, quer por inocência, quer por ignorância do sacramentalismo eclesial, a graça operasse do mesmo modo as mesmas maravilhas de santidade que a graça sacramental, embora de modo extraordinário. Ora, isto é inexato.

Em primeiro plano encontra-se, de qualquer modo, o elemento primordial do sacramentalismo eclesial, o ato de redenção eternamente atual de Cristo, que se dirige a todos pessoalmente, e isto através de sua Igreja, que é a manifestação no mundo dessa vontade de redenção. já dissemos que o ato celeste de salvação pode se apoderar de nós e nos influenciar, fora dos sacramentos, embora nesse caso não possa tornar-se presente diante de nós e para nós. Nesse sentido, a graça extra-sacramental é um fato, embora a própria Igreja esteja implicada nela, mesmo que fosse apenas por sua cotidiana súplica eucarística em favor de todos os homens.

A graça extra-sacramental permanece, em todo caso, como uma graça que Cristo nos comunica no sacramento terrestre e primordial que é a Igreja e por seu intermédio.

A partir disto, precisamos, agora, estudar a relação entre a graça sacramental e a extra-sacramental. E, primeiramente, a antropologia moderna ensina-nos que há na vida humana, ao lado dos atos vitais decisivos ou privilegiados, nos quais a pessoa se exprime de modo mais intenso, ações de todos os dias, em que a intenção pessoal se manifesta de modo mais ou menos atenuado. Há, assim, também, ações cristãs decisivas e ações cotidianas.

Precisamos considerar ainda outro aspecto antropológico da ação humana. O corpo humano e seus contatos com o mundo exterior são aquilo em que e por que a alma se desenvolve em uma personalidade. Da mesma forma o corpo é aquilo em que a alma exprime o seu devir pessoal. Na atividade humana, a corporeidade própria é um aspecto do sujeito que age. A expressão corporal não é apenas a manifestação posterior de um ato espiritual livre, que, antes, era realizado se não encarnado. Por esta razão, precisamente, o ato exterior, que por seu caráter velado é apenas um sinal do ato interior da pessoa. A relação é dialética: trata-se de ato indiviso, em que o interior se torna visível e recebe, ao mesmo tempo, de seu correspondente corporal, sua perfeita personalidade humana.

O mesmo acontece com o ato vital não-sacramental com relação ao ato sacramental. O que é vivido diariamente fora dos sacramentos alcança, por estes (esta é, ao menos, a intenção dessa economia de salvação) a maturidade perfeita.

Do ponto de vista do Cristo, os sacramentos, por serem a manifestação terrestre de seu ato celeste de salvação, são a tomada eficaz por Cristo do homem que os recebe. Do ponto de vista do sujeito receptor, a resposta à vontade de encontro de Cristo deve, por conseguinte, desenvolver-se até um ponto culminante que se torna antropologicamente possível pelo fato de o sujeito dever encarnar seu desejo da graça na visibilidade da Igreja, ela mesma cheia de graça.

O desejo da graça recebe uma formulação sensível expressa e a pessoa humana entra em ação, por assim dizer, tensa e concentrada, tomada que está por um ato perceptível de Cristo. A partir anônima de vida cristã cotidiana é arrastada pela força doa to simbólico expressivo de Cristo, em sua Igreja e por ela.

O fato de que os sacramentos devem ser os pontos culminantes não repousa unicamente em bases antropológicas (o ponto de vista seria, então, possivelmente relativo), mas sobre o fato de que, em base igualmente antropológica, dão a visibilidade eclesial a nosso desejo de graça. Daí esse desejo de redenção se inserir de modo eminente no poder de redenção do corpo místico e sua unidade com Cristo.

Além disto, os sacramentos são pontos culminantes porque são uma tomada especial, divina, do homem, em um momento da vida, que é decisivo do ponto de vista cristão. Cada um segundo o seu significado próprio, os sacramentos realizam o encontro com Cristo, precisamente em um desse momentos distribuídos de modo septiforme, em que temos necessidade particular desse encontro, por causa d uma necessidade ou de uma situação cristã especial.

Os sacramentos são o ato de salvação do próprio Deus, aparecendo visivelmente n espaço sacral da Igreja viva, dirigindo-se concretamente ao homem e apoderando-se dele tão manifestamente como a mãe abraça e beija o filho. E, embora a criança saiba que a mãe a ame , o abraço que ela lhe dá é a manifestação perfeita desse amor.

Por outro lado, contudo, esses momentos privilegiados são preparados, intensificados, ou eventualmente paralisados, pela evolução mais ou menos ardente que a alma realiza diariamente. Não se pode, portanto, isolar os sacramentos do conjunto orgânico de uma perseverança cristã. Pode também acontecer que experiências religiosas extra-sacramentais sejam mais interiores que as experiências sacramentais.

Os sacramentos significam momentos objetivamente importantes da vida, a que devemos pessoalmente conferir toda a importância em nossa vida religiosa. Mas, ao lado dessas articulações principais em nossa vida interior, podem existir momentos pessoais muito importantes que, sob a ação da graça extra-sacramental, podem elevar o cristão mais alto que a própria graça sacramental.

É exatamente para que  toda a vida cristã possa elevar-se cada vez mais alto que os sacramentos lhe são necessários como ponto de referência distintos. E, em fim de contas, não podemos esquecer que todas as graças recebidas pelo fiel referem-se à sua condição sacramental de batizado. O batismo é uma bênção para toda a vida. da mesma forma, para o cristão casado, os momentos difíceis e decisivos de sua vida conjugal estão sob a influência da graça sacramental do matrimônio. a prática eclesial, isto é, a recepção regular dos sacramentos é, por esta razão, uma condição fundamental da vida religiosa.

 

A própria vida cristã como sacramento do encontro com Deus

Ao lado da prática ligada aos sacramentos  como atos oficiais da Igreja, instituição de salvação, os fiéis tem ainda o dever de praticar em um sentido mais amplo, dever este que se prende, contudo, intimamente, ao mistério ou sacramento primordial da Igreja.

Algumas obras, como a do Pe. Rosier e do Pe. Loew colocaram com acuidade o problema da prática eclesial. o Pe. Rosier não  quer colocar no mesmo nível a não-eclesialidade das pessoas que não recebem mais os sacramentos rituais e a descristianização. Atribui o que chama essa não-eclesialidade entre outras causas, principalmente, ao esoterismo com que a Igreja se apresenta a nós em sua liturgia, seus sacramentos e toda a sua aparição terrestre.

Afirma a respeito dos operários pretensamente descristianizados: "O mundo dos trabalhadores pertence, ainda, realmente, à Igreja, como a comunidade dos que são resgatados pelo Cristo, mas encontra-se fora dos quadros que se desenvolveram historicamente". Como há um núcleo de verdade nessa tese, devemos refletir nós também sobre ela, a fim de não deduzir o sentido da prática eclesial, e, portanto, da "eclesialidade" a uma "assistência à missa e uma confissão regular".

Dissemos acima que a Igreja, como presença visível da graça entre nós, compreende tanto a hierarquia sacerdotal quanto o povo fiel. A própria comunidade fiel pertence ao "grande sinal elevado entre as nações".

É, portanto, eclesial, isto é realiza uma presença de graça sacramental visível não apenas pelo que emana da hierarquia eclesial e do caráter do batismo e da confirmação nos fiéis, mas também de tudo o que se origina em visibilidade da união interna de graça dos fiéis com Cristo Senhor.

Muitos fiéis nesse domínio possuem uma espécie de concepção totalitária da Igreja, e confundem a sua pretensão absoluta, em que a hierarquia é, realmente, detentora da graça visível de Cristo, com uma espécie de onipotência estatal da Igreja, em que os fiéis não seriam senão órgãos executivos daquilo que a hierarquia propõe e impõe. Tal atitude não é apenas inexata, mas "ineclesial" e herética.

O Espírito de Cristo, Princípio ativo de toda a Igreja, não conduz apenas esta Igreja por mão da hierarquia, isto é do alto, mas também por intermédio dos fiéis, portanto, de baixo. A função e o carisma são essenciais a toda a Igreja, e se colocam ambos sob a direção de Cristo Senhor.

Ambos são Igreja. Sendo  esta um sinal elevado entre as nações a fim de lhes indicar a vitória de Cristo, não devemos apenas procurar esse sinal na atividade do magistério docente e do governo pastoral, mas também, e tão essencialmente, na própria vida cristã dos fiéis em sua fidelidade, sua abnegação, sua bondade e caridade, na humildade e confiança cheia de fé com que carregam as tribulações da vida, em seus costumes cristãos e o sentido de responsabilidade de um pai e de uma mãe de família, na pureza de coração e espírito que se manifesta pelo comportamento, na pureza dos que se consagram inteiramente a Cristo no celibato voluntário da mulher que não ficou amargurada pelo seu destino e que lhe sabe dar um sentido em nova vocação.

Temos em tudo isto verdadeira manifestação de eclesialidade, verdadeira e visível presença da graça entre nós.

As aspirações à graça, as manifestações de desejos cristãos, a eclosão no seio da comunidade leiga de toda espécie de movimentos cristãos, de aspirações e proposições de novas fórmulas, em tudo isso também por tudo isso o Espírito de cristo conduz e dirige a Igreja.

Tudo aquilo que os artistas e pensadores cristãos, que vivem da comunhão de graça eucarística exprimem da mentalidade e do espírito dos cristãos constitui um setor de autêntica eclesialidade, isto é, um efeito visível da graça no mundo, um sacramento da benevolência divina. O que os escritores e poetas exprimiram e movimentaram na vida da Igreja ultrapassou, em certos períodos, aquilo que o governo eclesial proporcionava, em presença de graça visível.

Importa à nossa época colocar em relevo essas atividades  carismáticas variadas, sempre novas e inesperadas, da comunidade fiel eclesial. a vida eclesial não significa apenas não significa apenas a prática no sentido estrito da palavra, mas também, e não menos essencialmente, a visibilidade cotidiana de nossa fé, de nossa esperança e de nossa caridade; nossa própria santidade.

O Espírito de Cristo sopra onde quer, não apenas entre os bispos e os papas, mas também entre os padres e os fiéis. A assistência do espírito que Cristo prometeu a sua Igreja não é apenas uma assistência para o exercício da função hierárquica, mas uma assistência para a vida eclesial de toda a comunidade dos fiéis.

Sem dúvida, esta eclesialidade permanece sob o controle de uma autoridade diante da qual nenhum apelo é possível. Mas é da essência da eclesialidade hierárquica deixar uma oportunidade à verdadeira eclesialidade dos fiéis. Esse duplo aspecto, naquilo a que chamamos de eclesialidade, pode acarretar toda espécie de tensões. Não temos aqui que analisá-las, mas queremos apenas dizer que é precisamente nessa Igreja concreta que acreditamos, tal como é, e não em uma Igreja ideal, abstrata, mas na Igreja viva de Cristo, na presença visível da graça entre nós, na qual vamos encontrar também o pecado.

É esta Igreja o objeto de nossa fé. Sempre houve, na história da Igreja, homens que se escandalizaram com sua fraqueza, a ponto de se tornarem cegos à visibilidade da presença indefectível da graça em seu interior.

Esses homens recaem sempre na heresia que considera a Igreja como a comunidade invisível dos que vivem realmente em comunhão de graça com Cristo. Eles desencarnam a Igreja. suprimem, assim, não apenas suas fraquezas e seus pecados, mas, ainda a presença visível da graça, e, portanto, a própria graça.

Devemos ter a força de crer na Igreja, tal como ela é, isto é, crer na Igreja como manifestação visível da graça de redenção de Cristo e, ao mesmo tempo, admitir, no abandono da fé, que tudo ainda não é verdadeiramente eclesial na Igreja, tanto em seus chefes como em seus membros, que há ainda manifestações de fraqueza humana, incompreenções, rotina, formalismo impessoal e, principalmente, outrora, por que esconder a verdade histórica? Ambição terrestre e baixa concupiscência.

A Igreja como Igreja é santa e essa é sua essência. E é nesse sentido, porque a Igreja não é uma entidade fictícia, mas realidade concreta, que São João diz: "Tudo aquilo que nasceu de Deus não pode pecar porque nasceu de Deus". e: "Sabemos que tudo o que nasceu de Deus não peca".

Entretanto, o mesmo São João, falando dos cristãos, diz: "Se dizemos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos". Que significa esta contradição? Significa que nem tudo, na Igreja, é ainda plenamente Igreja. A Igreja é a salvação em forma visível, o sinal portador da realidade que significa. Os seus membros não podem pecar, portanto, senão na medida em que se subtraem à influência santificadora da Igreja. pecamos na medida em que somos "ineclesiais" e introduzimos em nós mesmo (portanto, membros da Igreja) contradição entre o sinal e a realidade significada.

Tudo isto significa que a Igreja não entrou ainda em sua face final. Não quer isto dizer que deixará de existir no fim dos tempos e que dará lugar a uma comunidade puramente espiritual dos santos na graça. Com base na encarnação de Cristo, a visibilidade corporal da graça não é realidade transitória, mas realidade definitiva. Só no céu a Igreja, mesmo como instituição exterior de salvação, atingirá seu pleno crescimento. A ressurreição da carne dará acabamento e eternização, sob modo de glorificação, à história terrestre da Igreja, do mesmo modo que será visível no próprio corpo dos santos ressuscitados a santidade adquirida nesta vida.

A miséria, as fraquezas e o escândalo terão desaparecido da Igreja celeste, mas ela mostrará sempre e plenamente, em visibilidade corporal, a sua face de santidade.

Se a Igreja, sinal terrestre do triunfo de graça de Cristo, permanece em estado de inanição e impotência, é porque sua graça está ainda velada, ou que, ao lado dessa glória, há ainda grande margem para os defeitos e fraquezas. Isto nos mostra, contudo, que por essa fraqueza da Igreja, manifesta-se o poder de Deus. a Igreja é grande e bela, não por causa da força de suas obras terrestres, mas porque nela triunfa a graça redentora de Cristo, apesar das fraquezas humanas, porque o poder divino faz-se perceber, exatamente, nessas fraquezas, e isso de modo visível. Eis por que a Igreja já não é apenas objeto, mas provação de nossa fé. Ela pode tornar-se obstáculo e perigo para a fé.

A fé não é uma convicção forçada por uma evidência ou experiência da glória da Igreja. ao contrário, ela permanece envolta em trevas. Assim, a fraqueza da Igreja permanece também como uma felix culpa, a fim de que glorifiquemos unicamente a glória e o poder de Deus.

Da mesma forma que Cristo era para os judeus escândalo porque, segundo as concepções judaicas, opunha-se a Deus-Iavé, assim também a Igreja realiza sua peregrinação na fraqueza, mas em uma fraqueza em que triunfa a graça redentora de Cristo. É nisto que se acha a força de nossa fé na Igreja.

Ela não é, apenas a eclesialidade em que acreditamos, mas também, o motivo sobre que justificamos moral e racionalmente esta fé. O Concílio do Vaticano I insistiu sobre este motivo da fé: "A Igreja é o sinal elevado entre as nações que convida todos aqueles que ainda não crêem". Na  Igreja, não apenas a Igreja hierárquica, mas também as manifestações carismáticas do povo de Deus, o homem pode experimentar o que dizia São Paulo: "Deus está realmente no meio dos cristãos". Vejamos este fato um pouco mais de perto.

A fé sobrenatural inclui dois elementos de testemunho: em primeiro lugar, o apelo interior à fé pela graça preventiva de Deus, e, segundo, a realização histórica desta graça, o "apelo exterior", a realidade historicamente tocável por nossa experiência humana. Essa realidade, em sua unidade com o apelo interno de Deus, é, em uma vida concretamente situada, a encarnação da graça de Deus que convida.

Deus concretizou exteriormente o convite interior e silencioso à comunhão pessoal com Ele. Isto nos faz pensar imediatamente e com pleno direito na história da salvação de Israel e na história do homem Jesus. Tudo isto, contudo está historicamente longe. Para os homens que vivem hoje, a história da salvação e a Igreja são concretamente os padres e os fiéis que encontram em seu caminho.

Eis por que nossa vida cristã deve ser concretamente a manifestação histórica, a figura exterior do apelo interior da graça no coração dos homens. A vida cristã, o fato de encontrarmos santos ao nosso redor, eis o argumento apologético concreto de nossa fé.

A santidade pessoal dos cristãos e dos padres deve tornar os homens atentos à voz interior da graça, à qual responde aquilo que há de melhor em nós. O encontro com os homens torna-se, assim, para os homens, o sacramento do encontro com Deus.

Deste modo verificamos como determinada heresia, manifestando-se não de maneira isolada e única, mas sob formas diferentes, a cada momento da história da Igreja, deve encerrar uma parcela de verdade. Esta é a heresia que se escandaliza com a falta de santidade dos membros da Igreja e nega, por este fato, a visibilidade da Igreja. isto nos prova que a credibilidade da Igreja não fala plenamente aos homens, senão quando estes encontram nos cristãos uma verdadeira santidade encarnada.

A caridade encarnada, ou a transposição de nosso amor por Deus para o plano de nossas relações com os homens, é o grande e irresistível motivo de credibilidade da fé cristã. Por ele, os homens confrontam-se com a realidade de salvação que aparece no meio de sua vida. os homens encontram, então, parecença visível da graça em seu caminho, e não podem escapar a ela. são obrigados, pois, a tomar posição.

Mas, para isto, é necessário que a santidade da Igreja se torne realmente visível para os homens. E aqui se situa, em minha opinião, o nó da crise atual no apostolado católico. Muitos homens cansaram-se da Igreja porque sua aparição exterior é demasiado pobre. Já Santo Agostinho queixava-se disto: "Os que se aproximavam de mim para crer... ficaram espantados com a má vida daqueles cristãos tíbios e falsos. Quantos há deles, ficais a imaginar, irmãos, que desejariam ser cristãos, mas que ficariam feridos pelos maus costumes dos próprios cristãs?"

É típico ver no mundo ocidental, onde a Igreja está implantada há séculos, que a massa dos homens não mais percebe o seu testemunho. Estes passam à margem do cristianismo. O que significa que, sob um ou outro aspecto, a visibilidade expressiva da graça de Cristo está velada, camuflada.

É-nos impossível dizer que o nível de santidade da Igreja baixou. Esta situação só pode ser atribuída a um destes dois fatores:

Ou o encontro eficaz com os homens como sacramento concreto de nosso amor para com deus não está mais presente, e os cristãos santificam-se cada um em seu pequeno círculo fechado, sem contato com o mundo; em outras palavras: a santidade que existe realmente não está suficientemente implantada entre os homens. Ou um novo método de propaganda restaurou o contacto vivo com os homens, mas esse encontro não era suficientemente a tradução do encontro interior com Deus. era, talvez, um método de apostolado, mas não um sacramento do amor divino.

Creio que ambos os fatores estão em ação. Saber que a força de propaganda do cristianismo consiste na presença visível da graça, isto é, concretamente, na atitude prática ante os homens como tradução da atitude para com deus, não é nova tática ou novo método de apostolado, mas uma questão de amor fraterno, real e sincero.

Empregar esta estrutura como método técnico de eficiência religiosa é rebaixar a santidade a um meio de propaganda, o que seria a destruição da verdadeira santidade, e, portanto, da força de apostolado que possui a presença da graça. Nossa época  não gosta do reclame e da supervalorização dos valores superiores. Os homens tenhamos a coragem de dizê-lo cruamente estão fartos das nossas pregações. Procuram uma força para suas vidas, e um significado que lhe de essa força.

Só se pode fazer estimar os valores e a força superiores, tornando-os presentes pela ação. Os cristãos devem mostrar aos homens que o cristianismo é uma força que transforma a vida. muitas vezes é a nós que atinge a queixa do profeta. Amós: "Não olho vossa oferendas pacíficas e vossos vitelos gordos. Longe de mim o ruído de vossos cânticos, não quero ouvir o som de vossas harpas (... nossos órgãos). Fazei correr a retidão como água e a justiça como uma torrente que não seca nunca"

Nosso ser e nossa ação de cristãos no mundo são, as mais das vezes, uma expressão bem medíocre da visibilidade de uma vida resgatada em Cristo. Ora, nisto consiste especificamente a eclesialidade própria da Igreja católica e de todos os fiéis. Mesmo que vamos à Igreja todos os domingos e não comamos carne às sextas-feiras, não implantamos suficientemente nossa santidade no meio do mundo e, portanto, obscurecemos o sinal que deve ser a Igreja nesta terra.

O que deve existir é um amor real pelos homens, e isto como sacramento do amor de Deus. e esta própria sacramentalidade reage outra vez sobre o amor dos homens. Em qualquer medida que nós, cristãos, tivermos que seguir, na  vida, o mesmo caminho que os não-cristãos, que tivermos que viver lado a lado e solidariamente com eles a experiência humana da vida. não podemos segui-los em sua não-redenção. A "presença do mundo" de um cristão como grande motivo de credibilidade da fé cristã é sempre uma presença a partir da redenção, uma presença redentora com  e em Deus vivo.

Não só não podemos seguir os homens em suas situações de vida pecadora, como os "padres dos pobres' do penoso romance de Cocciolli, Le ciel et la terre, mas devemos viver de outra forma, do interior, as trágicas situações da irredenção humana. Não com menos sofrimento e tensão, mas em companhia de Deus que alegra nossa juventude. Eis em que consiste a força expressiva, atraente e conquistadora, da Igreja visível.

Os milagres que brotam de tempos, como exceções bastante regulares na vida da Igreja, são, em última análise, como o  acompanhamento quase normal da presença dos santos no mundo. Em si mesmos, não são motivos de credibilidade, mas, sim, como referência à presença visível da graça no mundo, presença a partir da qual surgem por si mesmos, como centelhas.

Se alguns esperaram toda salvação do encontro humano, embora muitas vezes vivendo bem pouco esse encontro como sacramento, é porque experimentaram ao vivo que o cristianismo possuía a verdade, o dogma e a salvação, mas que tudo isso estava encerrado em um escrínio cuja chave se perdera. Esta chave é uma atitude real ante os homens, mas como expressão de nosso amor de Deus.

Não são dogmas que devemos apresentar a homens que se contorcem de dor. O preço do dogma é o preço pessoal de nossa vida dada por nossos semelhantes. Nossa vida deve ser o dogma encarnado. Nossa vida cristã é o dogma no próprio ato de seu exercício. O dogma como valor atrativo de vida. porque esta presença de graça nos cristãos, ao menos como fato coletivo, não é mais muito clara no cristianismo ocidental, explica-se, precisamente, que, em sua maioria, os ocidentais passem ao lado do cristianismo, sem prestar atenção a ele.

Este testemunho coletivo é de novo necessário para que o cristianismo se imponha realmente à atenção vital dos homens. Por esse testemunho, o ministério visível a Igreja encontrar-se-á de novo no centro da vida cotidiana e os outros não poderão mais ignorá-la.

O confronto tornar-se-ia, então, irresistível. Tantos homens são arrastados pela torrente do mundo, sem nunca ter encontrado em seu ambiente de vida alguém cuja vida os colocasse de repente ante o fato de que existe algo mais elevado! O homem não descobre o que há de mais profundo em si, senão nos olhos de outrem. Da mesma forma que o ladrão crucificado com Cristo tornou-se bom quando descobriu nos olhos do Salvador as mais profundas possibilidades de seu coração.

Aos homens arrastados pelas vagas, nós, cristãos, devemos tornar presente a Igreja pela eloqüência natural! De nossa atitude cristã, dar-lhe, assim, o desejo de salvação, tornar-lhes possível a fé. Isto pertence à eclesialidade de nosso cristianismo. Em um mundo em que freqüentemente se diz que os  homens só procuram criar dificuldades uns aos outros, um raio de amor desinteressado e generoso atrai sempre a atenção, como uma realidade vinda de um mundo diferente e superior e transparecendo em nosso mundo humano. É algo ante que nos encontramos desarmados e a que nos rendemos. Nisso consiste, também, a essência da Igreja como presença de graça visível nesse mundo. É o núcleo do motivo concreto de credibilidade da fé cristã.

Quando a santidade e os santos não aparecem, o mundo fica imerso na neblina. Mas, por mais penoso que isto seja, devemos também considerar que, apesar deste defeito de presença visível da graça, em um cristianismo plenamente lógico, e através dele, esta presença de graça está, entretanto, sempre dentro dele e, como dissemos, pode desenvolver sua força na importância e na miséria.

A Igreja é também p sinal sacramental humilde e fraco do Cristo triunfante. Esta prova da fé pode atrair a atenção dos homens sobre o fato de que a Igreja não é obra dos homens, mas obra salutar de Deus e tornar-se, assim, um convite a nela entrar.

Em resposta ao problema levantado, demos as indicações seguintes: não há senão sete sacramentos oficiais mas há muito mais expressões sacramentais da vida cristã. Não podemos identificar a vida eclesial com a vida sacramental ou a vida sacerdotal. Haurimos a graça não apenas nos sacramentos, mas, ainda, por exemplo, na atitude fraterna que nos testemunha um cristão.

Tais atitudes são, igualmente, uma "prática eclesial" e "sacramental". Podemos conduzir a uma verdadeira conversão ou "penitência". Os sacramentos nos são, precisamente, dados, para que esta sacramentalidade eclesial mais larga possa tornar-se plena realidade na vida cotidiana. Uma vida cristã no meio do mundo é, para os homens, um aporte exterior e expressivo de graça, de dogma e de pregação.

Mesmo os descristianizados que entram em contato com os verdadeiros cristãos encontram a Igreja na presença da graça visível e eficaz neste mundo. E por eles, podem ser levados a uma plena prática sacramental, cujo centro e o ponto mais, alto é a eucaristia. Em certo sentido, esta presença de graça de uma vida cristã no meio dos homens é, em nossos dias, uma necessidade mais urgente que a outra não menos real de uma liturgia que prendesse os homens por formas mais modernas e mais sóbrias.

Penso, por minha parte, que uma adaptação da liturgia seguiria espontaneamente o dinamismo interior de uma presença de graça real. Uma liturgia não se constrói, decorre organicamente de um espírito. E assim os próprios sacramentos poderiam, de novo, exercer sua significação plena e central.

Pois, após haver de propósito e fortemente insistido sobre um aspecto da eclesialidade muito esquecido, não podemos duvidar, também, que a prática sacramental, a prática cristã, no sentido estrito, é central no cristianismo. Os sacramentos permanecem sempre como os pontos mais altos em que a vida cristã diária recebe todo o seu relevo, a partir do quais seu nível se torna cada vez mais elevado, e os quais deve referir-se sempre se não quiser baixar a um tíbio anonimato que, abandonando a prática sacramental, abandona, finalmente também, o cristianismo e toda e qualquer religiosidade.

Há, portanto, um profundo núcleo de verdade na expressão um pouco incolor pela qual se designa o cristão como "alguém que ainda pratica". O sacramento, possibilidade de vida intensa do cristianismo e ponto culminante do encontro com Deus sob a forma de um encontro com o sacerdote (ninguém administra um sacramento a si mesmo; alguém dá o sacramento a outro), é o ponto culminante do encontro, na graça de Cristo celeste, sempre presente na Igreja.

A presença de um cristão no mundo, o encontro com o cristianismo vivo de um homem, em outras palavras, a eclesialidade no sentido amplo, mas também essencial da palavra, faz crescer nos homens o desejo da plenitude do contato sacramental com a Igreja. Em  outros termos: a eclesialidade do leigo e do sacerdote como fiel em seu contato humano é a entrada na eclesialidade hierárquica e litúrgica da vida sacramental.

Não temos o direito de nos queixar do "ineclesialidade" dos homens neste último sentido, se nós mesmos formos culpados de que a eclesialidade, no sentido largo, não se manifeste e não seja experimentada pelos homens em sua vida cotidiana. Tudo isto decorre do fato de que a Igreja é algo mais que a hierarquia, que os simples cristãos em sua vida e seus atos devem torná-la presente, que eles fazem também parte do signus levantum in nationes

E nesse sentido, é verdade que os batizados que não praticam mais, porém conservaram de seu contato com a Igreja uma caridade autêntica e certo senso religioso, são ainda sob esses aspectos não apenas religiosos, não apenas cristãos, mas, ainda, filhos da Igreja.

Isto vale também para os não-batizados que se encontraram desde o início de sua vida fora da Igreja. na verdade, nunca estiveram inteiramente fora dessa Igreja, realidade tão ampla como o mundo. Na medida em que possuem alguma religiosidade, praticam certa eclesialidade, mas estão separados (ou se separam) da revelação plena e comunicativa da Igreja. sua falta de contato pleno com a Igreja corre o risco de asfixiar essa porção de eclesialidade. Entretanto, a eclesialidade presente pode também tornar-se, principalmente em contato com cristãos autênticos e vivos a ocasiões de unir-se à Igreja em sua forma verídica e plena.

Tudo isto mostra que a liturgia sacramental é, sem dúvida, um ponto culminante da vida eclesial, mas não podemos identificar a eclesialidade com o mistério do culto litúrgico ou com a atividade hierárquica. Os sacramentos são os núcleos de uma vida cristã que, entretanto, é muito mais ampla do que eles.

Uma fuga para dentro da liturgia seria um desconhecimento da plena eclesialidade da Igreja. a fuga para fora da liturgia seria desconhecimento do caráter escatológico da Igreja, e certa convivência com um mundo unicamente profano. A vida cristã oscila, por assim dizer, entre esses dois pólos da eclesialidade: a Igreja que mostra sua face oficial ou institucional, e a Igreja que manifesta sua santidade na própria missão dos fiéis na profissão, na família e em todo encontro humano.

Porque a Igreja é sinal de graça orientado para a Escatologia, um apelo à nossa verdadeira morada, ela nos mostra, acima deste mundo, o "mundo futuro". Lembra-nos também, entretanto, que estamos neste mundo o que temos que nele viver como cristãos. A referência ao futuro nos lembra que ele ainda não está presente, que não devemos, como os apóstolos, ficar com os olhos fixos nas nuvens atrás das quais sumiu o Cristo, e de onde Ele tornará a vir, mas ir a todo mundo e dar-lhe testemunho visível de santidade.

Em nosso encontro com os homens, em qualquer plano que se passe, deve aparecer que somos resgatados. Não é esse o grande sinal da Igreja no mundo? Ela é o convite visível ao amor. o amor fraterno torna-se o sacramento do encontro com Deus. nos cristãos, e através deles, aparecem visivelmente no mundo a humanidade e a misericórdia de nosso Deus Redentor. Na administração dos sacramentos e na pregação, este encontro humano, sacramento do encontro com Deus, não recebe senão uma expressão fecunda e oficial. No rito sacramental o dom de Deus está presente de maneira concentrada.

 

Tudo é Graça em Visibilidade

A presença visível e eficaz da graça de Cristo na Igreja e no mundo faz-nos pensar nos círculos concêntricos da água em que atirou uma pedra: as ondas se espalham em todas as direções a partir de um só ponto. A Igreja constitui o ponto central da presença de Cristo sobre a terra, por uma graça visível, e desse ponto partem todos os desenvolvimentos posteriores.

Nesse centro, encontra-se a Eucaristia, o próprio centro da presença real de Cristo entre nós. Desse núcleo partem os primeiros raios luminosos, os seis outros sacramentos. A pregação na Igreja desvenda-se esse mistério central. Iluminados por esse sacramento da pregação, vemos, a seguir, como ampla sacramentalidade desenvolve-se em todas as direções. Na própria vida cristã dos fiéis, a graça se nos torna visível e apresenta-se-nos como um oferecimento. As vagas sacramentais espalham-se mais longe ainda, mas de forma menos pronunciada e enfraquecendo-se progressivamente nos sacramentais, na realidade do mundo humano material e histórico, todo ele sob a ação do Kyrios vitorioso.

Em Cristo, Deus dirige tudo para o bem daqueles que O amam. O sacramento, a palavra, o  comportamento cristão a partir da graça, o mundo inteiro, tudo é, à sua maneira, uma realidade terrestre e visível de que se serve o Senhor de maneira visível e ricamente para operar nos homens uma orientação existencial para Deus em Cristo Jesus. Tudo isto significa que a graça de Cristo não nos atnge apenas do interior. Aproxima-nos visivelmente, conseqüência permanente da encarnação do Filho de Deus, mistério que o martirológio do  Natal nos descobre: Voluit consecrare mundum.

Pela encarnação do Filho, o mundo foi assumido na relação pessoal de Deus para com o homem e do homem para com Deus. em união com a graça interior, todo o mundo criado torna-se uma graça exterior, um oferecimento de graça sob forma sacramental. A palavra eclesial e os sacramentos eclesiais não são senão os focos ardentes desta manifestação do Senhor que engloba o mundo inteiro, na concentração desta presença de graça visível que é a Igreja, onde Cristo está realmente presente, somatihós "corporalmente", e portanto, pessoalmente.

 

A Mística dos Sacamentos

No capítulo anterior expusemos como os sacramentos são os pontos culminantes da sacramentalidade geral da vida cristã. Aqui, entretanto, coloca-se um problema.

Se quisermos sondar o fundo do drama que pode conhecer a vida religiosa, esbarraremos com a experiência de que o desejo da graça, embora sincero e baseado em real confiança em Deus, e apesar das experiências reconfortantes, não se desenvolve, inteiramente, em uma prática lógica da vida cristã. O pleno desabrochar da vida cristã não parece, de forma alguma apesar da recepção freqüente dos sacramentos ser o resultado vivido da vida sacramental. E é isso justamente, o que esperamos do poder da graça dos sacramentos, isto é, que, mais fortes que nossas intenções, eles se manifestem em todos os atos de nossa vida. esse problema nos conduz à mística sacramental.

O sacramento frutífero é o encontro com o próprio Deus. nesse encontro, o dom da graça e a resposta do homem interpenetram-se intimamente. Mas, não de tal forma, que os atos de nossa vida sacramental pessoal dêem ao dom da graça a sua medida. Eles dão apenas a medida do dom da graça assimilado pessoalmente. É o que vamos considerar agora, mais de perto.

O Concílio de Trento definiu que a graça da justificação nos é dada "segundo a medida que o Espírito Santo confere a cada um, de acordo com o seu beneplácito e segundo a disposição e a colaboração próprias de cada um". Não podemos, portanto, dizer, como o faz certa teologia "quantitativa", que um sacramento suposta a mesma disposição em dois sujeitos diferentes dá a ambos a mesma dose de graça e que a diversidade deve ser atribuída apenas às disposições do homem. Despreza-se, assim, a unicidade e o caráter pessoal do amor de Deus por cada homem em particular. e desse amor especial e pessoal de Deus para com o sujeito receptor, o sacramento é, em fim de contas, a sacramentalização eclesial. o próprio amor de Deus distribui seus dons segundo seu beneplácito.

Por outro lado, a receptividade do homem desempenha, aqui, um papel incontestavelmente limitador, pela simples razão de que a graça santificante já é uma comunhão pessoal com Deus, uma intimidade entre dois associados: o homem finito e Deus infinito. E não de tal forma que nossas disposição indiquem e determinem a própria medida da graça. Sem dúvida, nosso ato não é estranho a essa limitação, mas o coração de Deus é sempre mais largo que o nosso. A graça transcende nosso desenvolvimento religioso pessoal. É mais ampla e abundante que o que dela nos apropriamos pessoalmente ou do que interiorizamos dela nos atos de nossa vida exterior.

Aqui intervém a mística da vida sacramental. Nossa fraqueza significa que, apesar do nosso desejo profundo da graça e nossa intenção religiosa sincera, não somos lógicos em nossa vida. ora a graça sacramental que é como já dissemos, também, uma "graça d cura" tem ainda, exatamente, o efeito de que, suposta disposição religiosa sincera de nossa parte, ela cura realmente o que nos resta de impotência, pelo Espírito do Cristo, "o Espírito que vem em socorro de nossa fraqueza"

A graça sacramental tem uma função acessória que é a de remediar a deficiência que subsiste em nós, apesar de nossos esforços sinceros. A santificação sacramental penetra em nós mais profundamente do que faz supor nossa vida ativa. O puro beneplácito e a gratuidade da redenção atingem aí o seu ponto culminante místico.

Sem dúvida, não se pode admitir que, por uma atitude quietista, realizemos uma ruptura entre a vida teologal e a vida moral. Mas existe entre ambas uma tensão. Encontram-se homens dotados de vida teologal profunda e que são, entretanto, marcados por inferioridades morais manifestas. Encontram-se, também, homens de grande integridade moral a quem a vida teologal de um cristianismo sobrenatural inexiste. Para quem faz sinceramente tudo o que pode, a graça opera mais do que ele pode assimilar. Por sua prática sacramental, o cristão introduz no poder da graça uma atitude religiosa determinada.

Em outras palavras: existe extenso domínio em que o cristão responde à graça e a pede converter em atividade cristã. É no entanto, apesar de sua vontade sincera, é incapaz de seguir a graça: esta o precede sempre, e corrige nele o que há de fraco e imperfeito. A tradição dá a este belo aspecto da graça o nome de gratia praveniens, a graça que, não só previne e impede nossas faltas, mas que nos precede sempre de alguns passos de forma que, sem cessar, experimentemos hoje de novo que  a graça de Deus nos é mais íntima que o era ontem.

Poder-se-á objetar que, por causa disso, se menospreze ainda o caráter personalista da graça. Porque, nesse caso, a graça nos santificaria ao menos em parte, acima da pessoa como pessoa. Ora, isto é exato. Sem dúvida, é uma realidade que escapa à apropriação pessoal considerada como intenção. Mas esta realidade não escapa ao nosso abandono pessoal teologal de fé à graça preventiva.

Em abandono confiante a Deus, deixamo-lo corrigir o que está em nós ainda defeituoso e, assim, o núcleo transcendente da graça, que ultrapassa a nossa intenção, é interiorizado em nossa vida religiosa pessoal.

Aliás, as experiências da vida espiritual confirmam este ponto de vista. Nossa inconseqüência, que cria certa margem entre a graça e nossa participação pessoal, será, precisamente, preenchida, se nosso esforço religioso for sincero (não em sacramentos recebidos por rotina), pela confiança na fé, na ação santificadora e retificadora do Espírito de Cristo que age nos sacramentos. E assim podemos dizer que o que sugere em nós a medida da graça é também nossa parte religiosa, mas considerada como abandono confiante.

E devemos, então, encarar esse abandono menos como ação que como docilidade ante a ação da graça, isto é, como o ato confiante da fé no momento inicial em que Deus se apropria do espírito ao qual Ele se entrega. O aperfeiçoamento trazido pela vida sacramental sincera é, em primeiro lugar, o aperfeiçoamento do abandono teologal a Cristo Redentor. A realização moral fica, sempre, mais ou menos atrasada. E é assim que podemos ver, mesmo nos casos de comunhão freqüente, de cristão de quem não se pode dizer que o fazem apenas por rotina, visto que consagram a este ato um real esforço que o contato sacramental com Deus não age de modo muito nítido por sensível melhora da vida, mas age, contudo, em maturação profunda da vida da alma, em uma espécie de atuação teologal da vida íntima. Assim, dia a dia, o homem vai adquirindo consciência mais viva de que permanece sempre a quem da riqueza da graça.

Muitas vezes pode contratar-se esta experiência íntima nas pessoas idosas. Sem dúvida, apresentam elas, ainda, muitas deficiências! Mas a longa prática sacramental deu-lhes uma espécie de maturidade. No sacramentalismo, trata-se, sem dúvida de uma intenção religiosa. Mas esta seria, antes, uma extensão, o desenvolvimento da graça gratuita agindo sempre antes do homem, que só pode balbuciar: "non nobis,non nobis, Domine, sed nomini tuo da gloriam!"

É a partir dessa profundidade mística da vida teologal que a graça transformará, progressivamente, todo o teor da vida moral. Aqui o homem da graça sacramental percebe como toda a sua vida é envolta e levada pela graça. Sua vida interior religiosa aparece-lhe como uma realidade surpreendente e sempre nova, como uma riqueza que não pode compreender a partir de sua psicologia pessoal. Experimenta que outro age nele. "Assim se passa com todo aquele que nasceu do Espírito" "Não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim".

Conclusão:

Assim, penetramos progressivamente na essência do sacramento eclesial. Só o conjunto visto globalmente constitui uma definição do sacramento: o signum efficax gratiae. O sinal eficaz da graça não dá senão pálida esquematização disto, embora não inexata. Aqui permanecemos igualmente longe do fisicismo e da magia. Temos uma só e mesma manifestação objetiva, expressa por atos simbólicos sacramentais velados: o mistério do culto santificante de Cristo por sua Igreja, e através dela, expressão do Ágape ou amor benevolente de Deus em Cristo Jesus, e do amor conjugal da Igreja, do homem fiel se desapegando de seu eu e tendendo a uma realidade que o ultrapassa.

O sacrifício é o ponto de interseção de todos esses pontos de vista, mas o seu encontro se faz apenas na glória do Senhor! "Mostrastes-vos a mim, face a face, ó Cristo, e eu vos encontro em vossos sacramentos!".

Os sacramentos são a nossa peregrinação de Emaús, sob o véu, rumo ao Eschaton. Estamos andando ao lado do Senhor. E mesmo que não o vejamos, sabemos que está a nosso lado, pois quando se dirigiu a nós, sacramentalmente, nosso coração estava ardendo, ouvia avidamente  e passou à ação cristã vital. "Nosso coração não ardia de desejo, quando ele se dirija a nós, no caminho"?


Ver entre outros G. Gusdorf, La decouverte de soi, Paris 1948, p 504.

Ver K. Rahner, personale und sakramentale Frommigkeit, em Schriften zur theologie, II, pp. 115-141. Devemos, entretanto, expressar nossa reserva ante várias afirmações do autor, que faz depender a constituição do ato pessoal não apenas do caráter humana deste mas, também, do elemento corporal.

Ik Zocht Gods afwezigheid, 2 vol, Haia, 1956 e 57. Ver também I. Gadourek Cultuuraanvaarding en cultuurooonnnntwwikkeeling, Groningen 1958, e P Smits, OP zoek naar nihilisme, Assen 1859. O Pe. Rosier, carmelita holandês, permaneceu incógnito, em meios proletários de países europeus, não como padre-operário, mas como estagiário, com o fim de estudar psicologicamente as situações religiosas e sociais do mundo operário. Os dois volumes por ele publicados o primeiro sobre a França e a Espanha e a Espanha, o segundo sobre a Itália e a Áustria não são, como o autor o desejaria uma tese mas um diário dos seus contatos humanos com esses meios. Ao contrário de inúmeras obras sobre o mesmo tema, o Pe. Rosier afirma que um cristianismo autêntico manteve-se nos meios operários, enquanto o cristianismo sistemático (ou praticado) não seria, na maioria das vezes, senão uma caricatura de cristianismo

Journal d'une mission ouvriere, Paris 1959.

Id. Ibid., p 218

1Jo, 3,9.

1 Jo 5,18.

1 Jo 1,8

1 Cor 14,25.

Enarrrationes in Psalmos, ps 60, sermos II, 6; P.L. 36, col 243.

Amós, 5,21-25.

Completamos, assim, em certa medida o que sugerimos em nossa crônica op zork naar Gods afwezigheid em Kultuuleven, XXIV, 1957, pp 276-291. Esta crônica é um relatório e uma crítica teológica da citada obra do Pe. Rosier.

Ver De sacramentele heilseconomie, pp 575-577. No contexto das páginas já citadas à p 138, n.º 7, sobre o papel das disposições pessoais na recepção da graça sacramental, o autor indica aqui como essas disposições (a fides et devotio de Santo Tomás), aliás, efeitos da graça divina, são a medida do dom da graça sacramental.

Denzinger, n.º 799.

Rm 8,26

Jo 3,5-8

Gl 2,20

Facie ad faciem te mihi, Christe, demonstrasti, in tuis te invenio sacramentis (Santo Ambrósio, Apologia prophetae David. XII, 58, P.L 14, col. 875).

Lc 24,32.