A EXISTÊNCIA DE DEUS

Nem  mesmo no momento em que vive a crise de ceticismo, Agostinho chega a duvidar da existência de Deus.

Ao tratar filosoficamente da questão de Deus e fornecer-lhe provas racionais não resulta de algum tipo de dúvida pessoal.  O seu objetivo é o de combater principalmente os novos acadêmicos e os outros cépticos, que  afirmam a impossibilidade de se falar com certeza de uma realidade sobrenatural.

Para Agostinho, a negação da existência de Deus é tão absurda do ponto de vista da razão, que  a ela se refere como uma "loucura de poucos".

Deus é o Ser, a verdade que torna possível o conhecimento humano.  Mas, tudo que Dele se disser é metáfora, a linguagem humana é incapaz de descrevê-lo.  Dele  só se pode dizer que é o fundamento de tudo.  Agostinho se refere a Deus sobretudo como "Aquele que é"  (Ex 3, 14).  Ele é a essência, aquilo que é sempre, não tem limites, não possui devir, é imóvel e eterno e, por isso, é a única Verdade Absoluta, é o Ser Real.  Vê nesse modo de conceber Deus um profundo acordo entre o Ser como é entendido pelos platônicos e o Deus do Êxodo.

Semeia no contexto de suas obras, uma variedades de provas de sua existência.

Para provar a existência de Deus, Agostinho toma o mesmo caminho que seguiu para  contestar o ceticismo do acadêmicos.  O Eu existo, certeza que decorre do ato de duvidar, é por si só uma prova.  A inteligência se reconhece naturalmente como intermediária entre Deus, por quem aspira, e o mundo material, para o qual é impulsionada pelos sentidos.

A inteligência humana, inserida no mundo material, é capaz de estabelecer uma hierarquia dos  seres mundanos: os minerais, os vegetais, os animais e as maravilhas da nossa vida consciente.  Ela põe-se claramente como um meio de acesso a uma realidade superior: Deus.

Esta prova geral da existência de Deus assenta-se sobre muitos outros argumentos, que podem ser designados de provas menores.  Eis algumas:

* PROVA PSICOLÓGICA:  a vida psicológica, com seus mistérios e riquezas, está voltada para Deus, em quem a alma procura  a cura para as misérias humanas.   A alma humana percebe que, somente em Deus, poderá preencher as lacunas de seu conhecimento e satisfazer o anseio de felicidade.

 

* PROVA MORAL:  a razão humana é de certo modo dominadora do universo, já que julga os seres e as forças nele contidas.  Ela, por sua vez, claramente se submete a uma realidade superior.   Esta realidade superior estabelece um conjunto de regras que a norteiam no ato de julgar o mundo.   Tal realidade ou se submete a outra ainda superior, que é Deus, ou é em si mesma superior e, por isso, é o próprio  Deus.

 

* PROVA COSMOLÓGICA:  em toda a natureza podem ser observados vários graus de perfeição das qualidades das coisas.  Essas qualidades são todas  insuficientes, pois, mutáveis, perecíveis e incompletas.  É caminho natural da razão descobrir que no processo ascendente das qualidades das coisas, haverá um ponto supremo, que é Deus.

 

É  interessante notar que Agostinho não dá muito valor à prova cosmológica, tão valorizada pelos escolásticos, pois percebe a possibilidade de tal causa ser identificada com a Anima Mundi de Plotino e, esta, não é Deus.

A seu ver, o caminho mais adequado para encontrar Deus é o indicado por Platão: é por meio do recolhimento e da purificação que a alma humana o descobre.  O processo de ascensão de nossa vida interior encaminha a alma até o cume das verdades eternas e fá-las atingir incontestavelmente Deus.

Ao assentar as provas da existência de Deus, sobretudo nas propriedades das nossas ideias, Agostinho não parece levar em conta que estas não são, por si sós, daquilo a que se referem.

 

A TRINDADE

A fé na Trindade pode ser racionalmente confirmada por meio de uma analogia com a alma humana.  A  alma, criada por Deus, traz em si a imagem do criador.  A essência da alma é una e trina enquanto é memória, inteligência e vontade: "memória, inteligência e vontade não são três mentes, mas uma mente, nem são três substâncias, mas uma só substância".    A analogia da alma com a Trindade leva Agostinho a negar uma distinção entre a alma e as suas faculdades.

 

A CRIAÇÃO: O EXEMPLARISMO E A PROVIDÊNCIA

 

A teoria da criação em Agostinho engloba três ideias principais:

 

* PARTICIPAÇÃO:  tudo aquilo que é belo, bom, verdadeiro ou uno, o é ou como ser  no estado puro ou por participação.  Todas as realidades do universo possuem o ser por participação da verdade Suprema.  As realidades do mundo terreno passaram a existir como fruto da vontade de Deus e o tempo é uma modalidade que segue o ser criado, para lhe medir o movimento.

 

* EMANAÇÃO: a participação é uma criação enquanto emanação das  coisas na totalidade do seu ser:  as perfeições das coisas do mundo emanam de Deus  e se fazem presentes em todos os níveis da realidade, desde os minerais até os homens.

 

* CONSERVAÇÃO: a criação é, num certo sentido, criação continuada, pela qual as coisas dependem de Deus não só no seu começo, mas também na sua duração e continuação.  Se a Verdade Primeira deixasse de comunicar seus reflexos aos seres criados, estes se extinguiriam.  "... assim, as formas e movimentos que constituem as coisas não passam de participações, imagens ou traços da Verdade que os mantém por uma criação incessante, fora do nada".

 

EXEMPLARISMO

Deus ao agir  e criar o mundo não pode fazê-lo senão sabendo aquilo que faz.  Ele possui Ideias ou imagens ideais de tudo aquilo que cria, tanto das suas perfeições genéricas, quanto das suas qualidades individuais.

O conhecimento ou Ideia divina daquilo que faz criador daquilo que representa.  As ideias são "as formas primeiras ou razões das coisas, estáveis e imutáveis, não tendo recebido a sua forma e permanecendo eternamente idênticas a si próprias"            (Questões  Diversas, 83, q. 46, nº 2).

Ao se identificarem com inteligência Divina, as Ideias não podem ser estáticas.  Ao contrário, são fecundas e criam pelo simples fato de existirem.

A Ideia tem, pois, muitas faces:

 

* É o meio para Deus conhecer a sua obra;

 

* É a fonte de perfeição para as criaturas;

 

* É a causa da origem e duração de todos os seres criados.

 

 

Em suma, o exemplarismo agostiniano consiste na ideia de que Deus deixou impressa um todas as coisas as marcas de sua criação.  Todos os seres, de maneira especial a alma humana,  são imagens em que Ele, de algum modo, se reflete.

A alma humana espelha em si a Trindade: ela é, se conhece e ama o seu ser e o seu conhecimento.

Outras manifestações trinitárias na alma humana são as suas potências: a memória, o entendimento e a vontade.

O exemplarismo é um meio de reconhecimento da existência de Deus: enquanto a alma se volta sobre si, descobre nela mesma as marcas de Deus.

É interessante notar que, além, a teoria das ideias, para explicar a criação, Agostinho também emprega a teoria das "Rationes seminales".  Segundo não cria a totalidade das coisas de forma já acabada.   No universo criado insere sementes ou germes de todas as coisas possíveis, que, com o passar do tempo, de acordo com as circunstâncias vão se desenvolvendo e tornando-se verdadeiramente concretas.

Num certo sentido, pode se falar de uma gravidez do mundo: o mundo está grávido de causas dos seres que nascem.  Essas causa foram, porém, criadas pela Essência Suprema.

Assim, a teoria da evolução, muito antes de ser formulada por Darwin, tem uma resposta de caráter metafísico:  a evolução é a concretização daquilo que já foi criado e fixado na espécie por Deus.

 

A PROVIDÊNCIA E O MAL

Para que Deus espalhar em todo o universo a ordem e o bem, é preciso que ele conheça perfeitamente a natureza e as necessidades do mesmo e, é também preciso que ele queira efetivamente o bem de sua obra. Sendo bondade suprema, Deus não pode senão espalhar o bem por toda a sua criação e também querer o seu bem.   Deus é, nesse sentido, providência ativa.

À providência ativa de Deus corresponde uma providência passiva de todas as criaturas.  Há uma capacidade inerente às próprias coisas de responderem a Deus.  A providência passiva pode ser notada, por exemplo, na harmonia e beleza que queiram em toda parte.

Mas, se toda criatura participa do Bem Absoluto, que é Deus, como conciliar a Providência  com o mal existente no mundo? Para Santo Agostinho, a resposta é evidente: enquanto participa do soberano Bem, toda criatura é boa, não pode, portanto, ser procurada em Deus a causa do mal.

Na perspectiva ontológica, a realidade do mal deve ser entendida como privação do bem ou, comparativamente, a posse do bem em grau inferior em relações ao Bem Absoluto.

Considerando o modo o mal aparece no mundo, Agostinho classifica-o em duas classes o mal físico e o mal moral.

O MAL MORAL é o pecado.   Santo Agostinho não deixa de considerar o mal moral como um mistério, mas, mesmo assim, apresenta uma explicação bastante interessante: o pecado é fruto da má vontade.  Se considerarmos a vontade em si mesma, ela deveria tender sempre para o bem.  De que forma ela pode então produzir o mal?   Deus ao criar o mundo, colocou neles bens finitos e a vontade pode preferi-los a bens superiores e eternos.  Deixando de preferir os bens superiores e o próprio Bem Supremo, a vontade faz uma escolha indevida e, com isso, peca.  O mal deriva, em última instância, da multiplicidade de bens.  Se existisse um ÚNICO  BEM ela não pecaria, pois não escolheria bens inferiores preferindo bens superiores.  Além, disso Agostinho vê no próprio pecado um lado positivo: ele é um meio de exercício para os bons enquanto alimenta neles o temor e serve como indicador daquilo que não deve ser praticado.  É nesse sentido que, também, deve ser entendida a célebre máxima Agostiniana: "Odeio o pecado, mas amo o pecador".

 

O MAL FÍSICO tem a sua origem na privação de um bem ou na limitação por parte das criaturas.  Em sua obra criadora, Deus deu realidades às criaturas por causas de sua extrema bondade, pois é melhor criar alguma coisa do que nada criar.   As criaturas, por seu turno, não podem ser iguais ao criador.  Mesmo sendo limitadamente, é melhor ser do que não ser.  Deus poderia criar somente seres indefectíveis, como os anjos, mas, criando os outros seres estendeu também a eles a sua bondade.  Agostinho considera também o mal físico na perspectiva positiva, Deus pode utilizá-lo para  propiciar condições de salvação para o indivíduo.  Mas o mal físico só pode ser realmente entendido na perspectiva da fé:  ele é  consequência do pecado original.  É portanto, fruto do mal moral.


[1] THONNARD, F. J. Compêndio de História da Filosofia. Tournai: Desclée, 1952. p. 219.