A ALMA HUMANA E A VALORIZAÇÃO DO HOMEM

 

Segundo a ordem descendente, Deus criou primeiro os anjos, cuja existência só pode ser conhecida pela fé, e a seguir os homens, compostos de duas substâncias distintas, corpo e alma.

Concorda com Platão quanto à superioridade da alma sobre o corpo discordando, porém, em alguns aspectos, conforme  mostra o quadro abaixo:

 

PLATÃO

SANTO AGOSTINHO

A alma preexiste e subsiste ao corpo e já esteve encarnada outras vezes.

A alma é criada por Deus ou dele gerada.  Também é imortal

A alma se compôs de três partes:

alma concupiscível, alma irascível e alma racional

A alma é una.  Ela penetra e vivifica todo o corpo, e está inteira em cada uma de suas partes.

A relação entre corpo e alma é de violência.  O corpo é uma cadeia da alma.

A relação entre corpo e alma é de unidade e harmonia.

 

 

A ORIGEM DA ALMA

Agostinho  trata amplamente da questão da origem da alma, mas confessa não encontrar uma solução satisfatória para todos os aspectos nela envolvidos.

 

Rechaça a ideia platônica da sua preexistência, mas vacila entre o criacionismo e o geracionismo.  Deus criou as almas, mas, como as criou?   Criou todas as almas  separadamente (criacionismo) ou as criou todas em Adão em forma de semente, que depois seria transmitida pelos pais (traducianismo geracionista) ? Criou uma alma modelo da qual vão se formando as almas  individuais?  Confiou os germes das almas aos anjos para que estes fossem, no momento propício, unido-as corpos?

Numa carta a Optato Milevi confessa não ter formado opinião definitiva sobre a questão.  Não aceita o traducianismo grosseiro de Tertuliano, embora não despreza a possibilidade de uma espécie de transmissão  mais ou menos espiritual da alma por parte dos pais.  Ao mesmo tempo confessa a São Jerônimo que não há nenhum inconveniente em aceitar a tese de uma criação individual da alma por Deus.

 

VONTADE, LIBERDADE E GRAÇA

A questão da vontade em Santo Agostinho reveste-se de uma importância especial.  Segundo alguns autores, a vontade é um dos pontos centrais de sua reflexão filosófica.  Nele a vontade tem uma importância especial, coisa que não tinha acontecido na filosofia grega.   Ele entende a  mensagem bíblica em sentido voluntarista.

Em suas meditações, torna claros os conflitos  da vontade: contrariando as convicções socrática de que é impossível conhecer  o bem e praticar o mal, Agostinho enfatiza a possibilidade de ocorrer o contrário.  Tal afirmação é possível na medida em que ele entende ser a liberdade própria da vontade.  Sendo a vontade uma faculdade diferente da razão, pode contrariá-la.  A razão conhece e a vontade escolhe e, ao escolher, pode inclusive preferir aquilo que é contrário à razão.

A partir disso fica fácil compreender a possibilidade do pecado.  A aversio a Deo e a Conversio ad creaturam são frutos do livre arbítrio.

A graça deve ser entendida como um dom divino que ajuda o homem a escolher o bem.  Não aula a vontade, mas, tornando-a boa, ajuda o homem a não pecar.  A marca da liberdade está no poder de não praticar o mal.  Quanto mais o homem se afirma diante da possibilidade do pecado não cometendo-o, tanto mais livre ele é.

O pecado original originou-se da soberba.  Depois do pecado, a vontade se enfraqueceu e tornou-se necessitada da graça divina.  O homem não pode ser autônomo em sua vida moral, pois depende da ajuda divina.  Assim, a  vontade se não for auxiliada pela graça divina, não é capaz de querer o bem.

 

Diz Gilson a respeito:

Duas condições (...) exigidas para fazer o bem: um dom de Deus, que é a graça, e o livre arbítrio.  Sem o livre arbítrio, não haveria problemas; sem a graça, o livre arbítrio (depois do pecado original) não iria querer o bem ou, se o quisesse, não poderia realizá-lo.  A graça, portanto, não tem o efeito de suprimir a vontade, mas sim de torná-la boa, pois que se havia transformado em má. Esse poder de usar o livre arbítrio é precisamente a liberdade. A possibilidade de fazer o mal é inseparável do livre arbítrio, mas o poder de não fazê-lo é a marca da liberdade - e encontrar-se confirmada na graça a ponto de não poder fazer mais o mal é o grau supremo da liberdade.  Assim, o homem que está mais completamente dominado pela graça  de Cristo é também o mais livre: LIBERTAS VERA EST CHRISTO SERVIRE."

 

 

TEMPO, HISTÓRIA E POLÍTICA

 

O tempo é criação divina.  Assim a pergunta inicial que introduz a meditação Agostiniana sobre o tempo:  "O que Deus fazia antes de criar o céu e aterra?" Não faz sentido.  Atribui-se a Deus uma categoria (tempo) que só vale para a criatura.  O tempo começou no exato momento em que o mundo começou a ser.  sendo o tempo a medida do movimento não poderia haver tempo antes das coisas mutáveis.

À pergunta; o que é o tempo?  Agostinho responde que, na realidade, o tempo existe no espírito.  Só  o espírito do homem mantém presentes o passado, o presente e o futuro.   Segundo ele, na verdade os tempos são três:  presente do mundo (memória); presentes do presente (intuição) e o presente do futuro (espera).  Embora tendo ligação  com o movimento o tempo não está no movimento ou nas coisas em movimento mas, na alma, como se fosse sua extensão.

Enfim, Agostinho considera o tempo como uma vivência interior (duração): o presente é um ponto na história, o longo passado é longa recordação do passado e o futuro  longo é a longa espera do futuro.

 

 

 

A CIDADE DE DEUS E A CIDADE DOS HOMENS

 

Agostinho vê a história da humanidade como sendo atravessada por  duas sociedades:  a Civitas Dei e a cidade terrena.  A primeira é construída pelo amor a Deus e a outra pelo amor a si próprio.  A cidade de Deus se encontra em exílio aqui em baixo chegando até  mesmo a confundir-se de fato  com a cidade terrena.  Tal acontecerá até o dia de seu eterno remate no céu.  As duas cidades na verdade amam, mas, distinguem-se quanto ao objeto de seu amor:   ambas desejam a a paz, uns procuram a paz para usufruir dos bens materiais, outros a procuram para repousar definitivamente em Deus.

A cidade verdadeira é a cidade composta pelos eleitos dos céus e pela Igreja lutando sobre a terra.  Quando Agostinho fala da Igreja a coloca como medida e instrumento celeste para a condução das almas individuais ao gozo da felicidade eterna.  Ela deve ser o parâmetro para as sociedades civis.  Não se  pode confundir cidade terrena com Estado Temporal, já que este pode pertencer à cidade celeste, caso persiga o amor a Deus.

 

POLÍTICA

A Igreja e o estado são duas sociedades  perfeitas:  a primeira na ordem espiritual e a segunda na ordem temporal.  O Estado deve se submeter à Igreja porque toda a prosperidade terrestre deve ajudar os cidadãos a obter a sua salvação.  O bom governante é o que presta obediência à Igreja. Porém, o domínio de ambos deve ser independente.  Em matéria mista deve haver leal colaboração entre as duas sociedades.

Por achar que a Igreja não deve intervir em assuntos puramente civis, Agostinho se opõe ferreamente à tradição de o bispo exercer os cargos de juiz e defensor da cidade.  Mesmo que não fosse o único tribunal, a maioria das pessoas submetiam as suas causas ao bispo, já que este normalmente era mais benigno e os custos menores.  Quanto à intervenção das forças militares do estado para a imposição do cristianismo, Agostinho sempre foi contra, já que a verdade cristã deve impor-se não pela força, mas por livre aceitação.

Quanto às leis, Agostinho entende que quando justas, mesmo que promulgadas por um mau governante, devem ser obedecidas e, diante da lei injusta, deve-se sempre resistir.  A resistência à lei injusta deve ser passiva, pela palavra e pelo sofrimento, não pela violência.

A guerra, segundo ele, é em si mesma um flagelo detestável.  Ela só se  justifica quando para corrigir uma injustiça  maior que ela mesma.  Às vezes, Deus permite a guerra para a punição dos injustos.

 

 

 

CONCLUSÃO

 

Santo Agostinho é sobretudo um PADRE DA IGREJA, ou seja, um teólogo que procura defender e explicar a sua fé  (Fides quaerens intellectum).  Neste esforço, ele constrói o primeiro grande sistema de filosofia cristã.  Raramente faz uso só da razão: é um filósofo apaixonado pela verdade que procura na fé  o lenitivo para as fraquezas da razão humana (Credo ut intelligam).  Do mesmo modo como Platão, é tão poeta como filósofo: entrega-se com toda alma para a verdade, isto é, para Deus.

Não podemos numa visão estrita falar que ele tenha alcançado Santo Tomás de Aquino, pois temos certeza que não, pois Santo Tomás é mais rigoroso e completo, enquanto estabelece nitidamente os limites entre a fé e a filosofia.

Criação de Santo Agostinho é a filosofia da História.  Na sua obra Dei Civitate Dei, mostra no progresso que preside a história da humanidade o desenvolvimento do plano divino, para cuja execução livremente concorrem bons  e maus como instrumentos nas mãos da providência.  "O homem se agita e Deus o conduz", dirá mais tarde Bossuet, que  nas Obras do bispo de Hipona se inspirou para a composição de seus Discursos sobre a história Universal.

Em suma, tentamos, numa visão geral, dar pinceladas dos pontos mais importantes da filosofia de Agostinho, vimos várias partes que comumente se interligam e, cada vez mais, podemos aprofundar e aprofundar, mas este não era aqui o nosso objetivo.  Que, deveras, o nosso coração sempre seja inquieto até repousar em Deus, como nos fala o mestre e bispo de Hipona ...

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

Abbagnano, N.  Dicionário de Filosofia.  São Paulo, Mestre Jou, 1960.

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Mora, J. F.  Dicionário de Filosofia. Madrid, Alianza Editorial, 1981.

Reale, G - Antiseri, D. História da Filosofia.  Rio de Janeiro, Paulus, 1990.

Vol. I.

Thonnard, F. J.  Compêndio de História da Filosofia. Paris, Desclée, 1952.