CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL

47a Assembleia Geral

Itaici - Indaiatuba - SP, 22 de abril a 1o de maio de 2009

SER COMUNIDADE HOJE: QUAL O MELHOR CAMINHO?

Alguns desafios atuais para a evangelização

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1. A ESPECIFICIDADE DESTA REFLEXÃO

Esta reflexão tem caráter pastoral e está muito ligada ao que foi apresentado no último Seminário do INP. Acolhe as reflexões de natureza teológica apresentadas anteriormente, busca compreender onde se localizam as dificuldades e indica pistas para a ação evangelizadora. Focaliza-se na relação entre Fé e Comunidade, com destaque para o papel das paróquias nesta relação. Procura compreender como tal relação acontece dentro da atual noção de espaço. Esta opção tem como justificativa o reconhecimento de que estamos passando por um contexto de mudança de época (DGAE 13). Em tal contexto, os fundamentos últimos, isto é, aqueles que fornecem compreensão à realidade tornam-se abalados, não possibilitando respostas hábeis a desafios novos. São tempos que trazem a indispensável tarefa do discernimento entre o que é essencial e, portanto, deve permanecer no novo momento, e o que é marca histórica, própria de momentos já vividos e que, por isso mesmo, não precisa necessariamente ingressar na nova etapa. Este desafio se aplica também à relação entre Fé e Comunidade.

Da teologia, aprendemos que a dimensão comunitária é essencial à vivência da Fé. Deve, portanto, ingressar na nova etapa da história da ação evangelizadora, afirmando-se contra toda tentativa de um cristianismo mais do que individualizado ou personalizado, na verdade, um cristianismo individualista, onde as relações com Deus tornam-se pontuais, consumistas e relativizadoras do envolvimento com o próximo. Destacar este aspecto é uma das tarefas indispensáveis para quem hoje tem nas mãos a missão evangelizadora. Quando a Conferência de Aparecida, já desde sua preparação e seu lema, mencionava as palavras discípulos e missionários, percebíamos que, além da dimensão missionária, é preciso investir também e com o mesmo vigor, na dimensão comunitária subjacente ao termo discipulado (DA 156). Missão e comunidade são duas dimensões de igual urgência em todos os tempos, na vivência

Pe. Joel Portella Amado

do Evangelho e, mais ainda, em nossos dias. Comunidades não missionárias e missões que não apontem para a vida em comunidade são incoerências em si mesmas (DGAE 48-50).

2. COMUNIDADE: UM TERMO COM MUITOS SENTIDOS

No caso do termo comunidade, sabemos que ele se liga a relacionamentos primários, onde a experiência do diuturno convívio informal e fraterno gera laços indispensáveis para o ser humano em geral e, mais ainda, para a experiência cristã. Comunidade não é integração funcional, união para determinado fim, como aponta a crescente realidade das chamadas tribos, encontradas principalmente nas grandes cidades (Fenômeno relativamente novo, tribos são microgrupos com o objetivo principal de estabelecer redes de amigos a partir de interesses comuns. Caracterízam-se por certa conformidade na visão de mundo, nos hábitos em geral e especialmente no vestir-se. São grupos que não possuem objetivos ou projetos fixos, a longo prazo. Interessam-se pelo compartilhar interesses no aqui-e-agora. São, por isso, marcados por mobilidade, fluidez de vínculos e objetivos. Este novo tipo de relação com o ambiente social tendem a reforçar o sentimento de pertença, em oposição ao anonimato característico das grandes cidades. cf MAFFESOLI, Michel. O Tempo das Tribos: O declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998, IDEM, A Contemplação do Mundo. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1995; McCALL, Tara. This Is Not A Rave: In the Shadow of a Subculture. New York: Thunder's Mouth Press, 2001). Quando falamos em comunidade, estamos nos referindo à capacidade de gerar e manter relações interpessoais, de sentir-se irmão e irmã, com laços às vezes mais fortes que os laços de sangue. São necessariamente laços baseados em gratuidade, amizade, cumplicidade e partilha de vida. E tudo isto só ocorre na efetiva vida de comunidade e, como hoje dizemos, nas pequenas comunidades, onde o número de membros é menor e a qualidade dos relacionamentos é diferenciada.

O interessante é observar que estamos precisando acrescentar um adjetivo, no caso, pequenas - pequenas comunidades - para expressar algo que, por si, já deveria manifestar o sentido original do termo comunidade. A adjetivação indica que estamos lidando com outras formas de o compreender.

Atualmente, diversos são os sentidos atribuídos a este termo. Alguns são bem conhecidos. Lembremo-nos das comunidades do Orkut e seus similares, grupos que mantêm relacionamentos (termo que também muda de sentido) não a partir do contato direto, imediato, face-a-face. As chamadas comunidades virtuais possibilitam o contato tela-a-tela, webcam-a-webcam, sempre com a possibilidade de se deletar o indesejável e deletar sem grandes angústias ou sentimentos de culpa. Para muita gente, em especial para boa parcela da juventude, notadamente da juventude urbana, o mundo virtual, o mundo dos orkuts e similares é o espaço onde acontecem as relações de identificação e compartilhamento (Em termos pastorais, é muito interessante comparar, por exemplo, um grupo de orkuteiros com um grupo de pais e padrinhos nem sempre muito dispostos a ouvir a palestra preparatória ao batismo de suas crianças. São dois mundos, no mínimo, distintos. Um padre amigo, que trabalha em cidade com aproximadamente 8.000 habitantes disse que, ao lado das farmácias, as lan-houses são o negócio que ele mais vê crescer em sua jurisdição paroquial. O crescimento é tanto que os jovens já não participam, como antes, tão ativamente do grupo jovem)..

Hoje em dia, fala-se também de Comunidade Internacional. A expressão comunidade européia é um bom exemplo deste alargamento do sentido do termo comunidade. Somam-se ainda expressões como comunidade científica, comunidade acadêmica, comunidades alternativas e tantas outras comunidades. Em inúmeros destes exemplos, o termo comunidade identifica-se tão somente com grupo, conjunto de pessoas que fisicamente se juntam para uma finalidade específica, sem que gratuidade, cumplicidade de vida e afeto venham a fazer parte indispensável das razões de adesão. Fala-se ainda em comunidade(s) terapêutica(s), nas quais o indivíduo (re)encontra o ponto de equilíbrio, ponto já não mais fornecido por um mundo dilacerado, tal como é nosso tempo pós-moderno, fragmentado, sem grandes sínteses. Estamos diante, pois, de uma polissemia que precisa ser reconhecida e, na hora das decisões, dissecada, para que se fique com o que, à luz do Evangelho significa o termo comunidade. Essa é uma tarefa que, por sua vez, nos levará a uma das indagações pastorais mais urgentes hoje: o que, afinal, está acontecendo com a dimensão comunitária no âmbito católico?

3. AS PARÓQUIAS E SUA CRISE ATUAL

No âmbito especificamente católico, quando falamos de vida em comunidade, tendemos a nos referir às paróquias. Elas são o rosto mais conhecido da Igreja católica. O Documento de Aparecida, na linha de documentos anteriores, chega a fazer uma afirmação muito clara neste sentido (DAp 170) ("Entre as comunidades eclesiais nas quais vivem e se formam os discípulos e missionários de Jesus Cristo as Paróquias sobressaem. Elas são células vivas da Igreja e o lugar privilegiado no qual a maioria dos fiéis tem uma experiência concreta de Cristo e a comunhão eclesial. São chamadas a ser casas e escolas de comunhão"): O reconhecimento do valor das paróquias não nos exime, porém, de reconhecer os atuais limites das mesmas. Quando prestamos um pouco mais de atenção ao cotidiano de nossas paróquias, percebemos certo mal estar, acompanhado de crescente dificuldade no lidar com questões que, no dia-a-dia vão surgindo (Os católicos do bairro não freqüentam a paróquia; as pessoas não sabem a que paróquia pertencem; o pessoal circula de paróquia em paróquia, atrás de certo tipo de celebração ou melhor atendimento; as missas das segundas-feiras, ligadas ao culto dos mortos, às vezes estão mais cheias que as de domingo, Dia do Senhor; as missas de cura e libertação, independentemente de onde e quando ocorram, mostram-se proporcionalmente mais cheias que muitas missas dominicais; as pessoas estão migrando para as seitas; freqüentar a paróquia, estaríamos perdidos; não temos como atendê-los; chegamos ao nosso limite").

São muitos os exemplos que apontam para uma espécie de ambigüidade pastoral. De um lado, trabalha-se muito nas paróquias. Os níveis de dedicação, empenho e acerto são grandes. De outro, constata-se que as atuais paróquias, por mais que se esforcem, não conseguem atingir um número maior de pessoas (DAp 173). Existe como que um teto para a atuação. Alguns sacerdotes, marcados por grande realismo, ao contemplarem suas igrejas cheias, dizem, numa mistura de tristeza e alívio: "se todos que moram nas redondezas resolvessem

Trata-se de considerar que, organizadas preponderantemente em grupos e pastorais, reunidos num mesmo prédio, muitas das atuais paróquias conseguem possibilitar a dinâmica comunitária apenas para o grupo mais próximo do padre, nos conselhos e nas coordenações dos grupos. Com estes, é possível conseguir algum tipo de relacionamento mais comunitário.

O fato é que muitas de nossas paróquias não conseguem mais integrar plenamente em si a concepção stricto sensu de comunidade. Não se trata de considerar que, nelas, não se trabalhe, não se invista na vida comunitária, nem se fale sobre o tema. A questão não se coloca na inércia pastoral, que até existe, mas não se consubstancia em situação majoritária nem relevante para o que estamos refletindo. A questão é estrutural e diz respeito às mudanças no lidar com o espaço e com a dimensão comunitária.

É interessante observar como as palavras revelam situações para as quais nem sempre estamos atentos. Em alguns lugares, o termo paróquia vem sendo substituído por comunidade paroquial, num esforço para que se compreenda a importância e a urgência de se viver a dimensão comunitária stricto sensu em nossas paróquias. Não basta, porém, mudar o nome para que a realidade se transforme. A mudança de nome vale como elemento primeiramente indicador de que existe um problema e, em segundo lugar, como provocador para a busca de soluções.

A solução implica separar, no conceito paróquia, duas dimensões que, na prática, se confundem. De um lado, podemos ver uma realidade teológico-pastoral. De outro, encontramos a concretização histórico-social. No sentido teológico-pastoral, paróquia é, como o próprio termo indica, a experiência de Igreja que acontece ao redor da casa. Trata-se de uma igreja que está onde as pessoas se encontram, independentemente dos vínculos territoriais, das indicações de residência e outras questões ligadas ao espaço e à territorialidade. Este ponto, nem sempre destacado, é de vital importância porque uma das características centrais da mudança de época pela qual passamos encontra-se na transformação dos conteúdos atribuídos às noções que dão sentido, significado, à realidade. Entre tais noções, encontra-se a de espaço, que, em nossos dias, despregou-se do chão fisicamente considerado. É o espaço virtual ou virtualizado, do qual as comunidades formadas na internet são o exemplo mais interessante a se analisar.

Assim, as paróquias atuais experimentam o descompasso entre as noções de espaço e comunidade. Isto acontece por que a tendência maior na organização das paróquias ainda repousa sobre um pressuposto cuja força sociocultural já não é tão grande quanto imaginamos. O referido pressuposto identifica experiência comunitária com territorialidade. Ora, é exatamente esse pressuposto que se encontra em crise, principalmente naqueles locais onde globalização, urbanização, informatização agem de forma violenta e virulenta. Como, pois, dizer a uma pessoa que a paróquia dela é aquela na qual reside, se, para ela, a noção de espaço não é centripetamente constituída? Num espaço fragmentado e em movimento, não podemos nos apoiar única e exclusivamente em modelos pastorais que se baseiam em espaços unificados e estáticos.

Esquece-se de que, nesta pós-modernidade, o fato de se residir num território não implica necessariamente laços de vizinhança, cumplicidade de vida e relacionamento. Tomando o exemplo dos grandes prédios, chamados de condomínios verticais, temos às vezes o fato de que o vizinho meu pode equivaler e muitas vezes equivale ao desconhecido meu. Contemplemos esta realidade acontecendo em paróquias com grande número de habitantes e poucos núcleos além da igreja-matriz. Nestes casos, as dinâmicas antropológicas indispensáveis a uma comunidade têm, no mínimo, grande dificuldade para se concretizar. Este me parece ser um dos pontos centrais pela qual passa a dimensão comunitária, atingindo diretamente as paróquias (Constata-se ainda a tendência a uma relação de cunho individual e de consumo com Deus. É o que acontece nos grupos religiosos que oferecem prodígios, curas, milagres e afins. Não se nega aqui a importância da dimensão terapêutica da fé. Questiona-se a exclusividade que é dada a esta dimensão e o caminho escolhido para sua concretização. Na medida em que se exclusivisa a dimensão terapêutica e a mesma é colocada no prodígio, no miraculoso, cria-se no mínimo um obstáculo à dimensão comunitária. No dizer mais simples, a exacerbação do terapêutico e a exclusividade do miraculoso geram fregueses e, no máximo, clientes. Não geram irmãos de comunidade. Nunca é demais ressaltar que tal fenômeno não é exclusividade dos novos grupos religiosos, que costumamos chamar de seitas. Trata-se, na verdade, de um fenômeno transconfessional, que perpassa os grupos cristãos e não cristãos).

Este cenário faz emergir a questão pelo futuro da dimensão comunitária da experiência cristã. Os mais afoitos chegam a dizer que o cristianismo precisará assumir formas não tão insistentemente comunitárias. Tratar-se-ia muito mais de abrir espaço para convívios sazonais, esporádicos, dependentes da vontade e das necessidades do sujeito que crê. Seria um cristianismo ao estilo das mencionadas tribos. Teríamos, assim, por exemplo, o grupo (ou a tribo) dos cristãos pela ecologia. Vivem seu cristianismo de modo não institucional- comunitário, juntando-se, no entanto, para as ações específicas ligadas, no caso, à ecologia. Outros, na medida em que não negam o caráter imprescindível da dimensão comunitária, afirmam que o problema está na concretização e que, por isso, as paróquias se encontram com os dias contados. O futuro da Igreja está, pra estes, na revitalização e expansão das pequenas comunidades. Dependendo da história pessoal e das opções pastorais, estas pequenas comunidades poderão ser, por exemplo, as CEBs, os movimentos ou as chamadas novas comunidades.

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4. AS PARÓQUIAS E O PROGNÓSTICO

Quando voltamos às fontes de nossa fé, percebemos que as comunidades primitivas evangelizavam com base no fascínio por Jesus Cristo, traduzido num estilo próprio de vida, estilo que, por sua vez, também fascinava. Para além de qualquer outro laço, o encontro com Jesus na comunidade dos discípulos era o fato gerador da dimensão comunitária. Não bastava estar no espaço. Era preciso dar o passo do fascínio e se unir aos irmãos e irmãs que tinham feito a mesma experiência.

A questão se alterou quando, por volta do séc. IV, o cristianismo assumiu nova posição no cenário sociocultural, passando a se articular de outro modo com a cultura da época. Uma das conseqüências foi a identificação do espaço de fé com o espaço físico, com a territorialidade geograficamente concebida. Passou-se, deste modo, a identificar o ambiente sociocultural com o ambiente de fé. Este processo foi acompanhado pela reconfiguração espacial na vivência do cristianismo. Com o crescimento no número de cristãos, o espaço de fé se alargou. Na verdade, sabemos que ele se tornou praticamente toda a sociedade. A solução foi a passagem para as diversas comunidades em torno dos locais onde a população se encontrava. Surgiram as paróquias, isto é, a comunidade cristã, que está ao redor de um grupamento humano-social, considerado cristão (cf.: VINCENZO. B. Storia della parrocchia, Bologna, EDB. Coleção em cinco volumes (última publicação 2004) dos quais se destacam os dois primeiros: Origens (sec. IV-V) e primeiros desenvolvimentos (sec. VI-XI). MACCHIONI, G., L'Évangelization dans l'oikos, em: Évangelizer em Paroisse, Nouan-le-Fuzelier, Pneumathèque, 1996, pp 53-65). Gerou-se, então, um estilo pastoral, uma concepção comunitária com as seguintes características: um território fisicamente concebido igual a uma comunidade em termos socioculturais e, consequentemente, igual ao âmbito de atuação de uma comunidade de fé.

Esta concepção nos marcou até o presente. O modelo de comunidade que temos em nosso inconsciente pastoral é este. Afinal, são praticamente 16 séculos. O problema deste modelo está no fato de que são seus pressupostos que se encontram em crise. E, apesar de repousar sobre pressupostos em crise, este modelo ainda tem força suficiente para ser utilizado como critério para a compreensão e a avaliação dos problemas que vão surgindo.

Constatamos, em nossos dias, o descompasso entre o critério pastoral usual de compreensão da dimensão comunitária e os atuais ritmos de vida das pessoas e dos grupos. O final do séc. XX foi marcado por um conjunto de rupturas. Uma destas rupturas é a que ocorre com o modelo de simples identificação entre o espaço territorial, o espaço sociocultural e o espaço de fé. Esta ruptura pede a reconfiguração da experiência comunitária em todos os níveis, inclusive no religioso. Se, em outros momentos da história, pertença e territorialidade

 

se identificaram sem mais em nossos dias, tal identificação vai deixando de ser tão imediata, tão automática. Pertença comunitária é conceito teológico, indispensável, portanto. Territorialidade física, tópica, geográfica, é uma das possíveis concretizações históricas do conceito de pertença. Esta pertença pode se concretizar na identificação com o território físico. Pode também transcender este mesmo território e se construir a partir de outros referenciais, desde que se atenda ao indispensável para a existência de uma comunidade, conforme já antes observado.

Neste sentido, tudo indica que estejamos ingressando em um novo momento da história da experiência comunitária cristã. No primeiro momento, o da Igreja Primitiva, eram comunidades de adesão. Do séc IV em diante, vemos nascer outro período. As paróquias representaram um salto pastoral bastante significativo. Sua criação significou uma ação evangelizadora que se encarna nas diversas realidades existenciais de pessoas e povos. Era a igreja junto às pessoas onde as pessoas efetivamente estão. Se estas se deslocam, a pastoral também se desloca.

Na medida, porém, que as relações com o espaço permitiam a identificação entre comunidade territorial e comunidade sociocultural, a territorialidade foi assumida quase como critério único e mesmo intocável (cf.: THOMAS, P., Que devient la paroisse? Mort annoncée ou nouveau visage?, Paris, Desclée de Brouwer, 1996, p. 55-89), esquecendo-se de que a redivisão das comunidades cristãs em muitas comunidades menores tinha - e sempre tem - como intenção manter relações interpessoais importantes para a evangelização.

Nosso séc. XXI aponta para o fato de que, para ser paróquia, no sentido original do termo, a experiência comunitária cristã precisará dar um outro salto. Precisará passar por um novo choque de renucleação, reparoquialização. Precisará gerar comunidade onde as pessoas se encontram. A redivisão do século IV se ateve ao espaço fisicamente considerado. A do século XXI não poderá dar exclusividade a uma configuração específica, seja a territorial, seja a não-territorial (cf DAp 307-310) (DAp 99e, 170ss; DGAE 2008-2010, 154-158; MARADIAGA, O. R., Una conversión pastoral: el desafio, em: CELAM, Testigos de Aparecida, vol. 1, Bogotá, Publicaciones Celam, 2008, p. 419ss; PARDO, J. E., La convesión pastoral como cambio de paradigmas, métodos y lenguajes, em Medellín 134, junho 2008, p. 277-308; FRANÇA MIRANDA, M., O desafio de Aparecida. Uma configuração eclesial para a América Latina,, em; REB 273, janeiro 2009, p. 77-102.). As pequenas comunidades, formadoras da rede, podem ser territoriais, isto é, organizadas a partir da identificação entre laços sociais e laços territoriais, tópicos. Podem ser também afetivas, carismáticas, transcendendo, os limites do espaço físico, e se organizando em torno de espaços de interesse. As características ou condições para os dois tipos de comunidade são descritas, por exemplo, no Documento de Aparecida (DAp 179) (Ter a Palavra de Deus como fonte; compromisso evangelizador e missionário entre os mais simples e afastados; opção preferencial pelos pobres; variados serviços e ministérios; vínculo efetivo com a Igreja local. Ver também: DGAE 2008-2010, no 159).

 

 

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5. MÚLTIPLAS FORMAS NUMA ESTRUTURA ARTICULADA

A tendência hoje é a de acolher os diversos modos de concretizar a dimensão comunitária: comunidades territoriais e comunidades não-territoriais. O que permanece, como princípio historicamente inevitável, é a configuração em pequenas comunidades. É tempo de intensificar ainda mais a capilarização ou nucleação comunitária, ultrapassando os limites das relações burocráticas, da prestação de serviços, da efetiva experiência comunitária apenas para alguns.

Onde a territorialidade ainda for significativa, a sensibilidade pastoral, tão marcada pelo princípio da encarnação, haverá de investir em pequenas comunidades territorialmente estabelecidas, com laços de vizinhança geográfica. É neste sentido de comunidade territorialmente estabelecida, que alguns acenam para a riqueza das CEBs. Não deixam de destacar, na identidade das Comunidades Eclesiais de Base, o elemento missionário, muito ligado ao compromisso sócio-transformador. Chamam, porém, a atenção para o fato de que este compromisso, embora às vezes muito destacado, tem subjacente a si uma forte dimensão comunitária, que precisa ser cada vez mais explicitada.

Nas situações em que o impacto pós-moderno, globalizador e urbanizador já tenha afetado a noção de espaço, reconfigurando-o para além da territorialidade geograficamente concebida, o caminho é o das comunidades não-territoriais, ambientais, cuja atuação é, na linguagem de Santo Domingo, trans, supra ou inter paroquiais-territoriais (SD 257). Neste campo, a criatividade pastoral não encontra limites.

É neste sentido transterritorial que se aponta para o potencial evangelizador dos movimentos. Estes, quando vistos à luz da relação entre o espaço e a dimensão comunitária, nos apresentam duas questões. A primeira consiste em definir o que se entende por movimento. A segunda diz respeito à relação dos movimentos com as Igrejas locais. As duas questões são, na verdade, parcelas de uma única questão: a relação entre eclesialidade e espaço. Movimentos são, sem dúvida, escolas ou linhas de espiritualidade. Organizam-se em torno de carismas específicos, frutos da ação do Espírito, o mesmo Espírito que também sopra nas paróquias, nas CEBs e em outras formas de organização comunitária. O problema não se coloca em termos de carisma. A Igreja sempre acolheu a diversidade de carismas. Esta é, por exemplo, a leitura que Aparecida faz dos movimentos (DAp 312). A questão de fundo é - voltando ao cerne desta reflexão - a relação com o espaço (Isto se torna mais claro quando observamos, por exemplo, que, alguns movimentos que só atuam dentro das paróquias territoriais. Será que a estes também se aplica o que aqui estamos refletindo?).

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Tal questão se torna relevante na medida em que a atuação dos movimentos ultrapassa, os limites territoriais das paróquias e se organiza a partir de outra noção de espaço. É sob este prisma que podemos mais facilmente compreender porque os movimentos se tornam um desafio. Na medida em que sua atuação não se encaixa nos parâmetros usuais da territorialidade, manifestando outro jeito de se organizar que não o paroquial-geográfico, acabam por nem sempre se encaixar nos projetos específicos das paróquias e, algumas vezes, das dioceses. Este descompasso entre as opções pastorais de alguns movimentos em relação às paróquias e dioceses chama a atenção para o fato da configuração espacial diferenciada. De um lado, temos a espacialidade territorial. De outro, uma concepção que se liberta da fixação territorial e concretiza o princípio de que o espaço sociocultural e eclesial não é necessariamente o físico, o geográfico.

Quanto às nossas tradicionais paróquias, algumas urgências se impõem. São urgências bastante conhecidas e tantas vezes mencionadas. Como, todavia, mudanças de hábitos não se resolvem com palestras e artigos, cabe ressaltar mais uma vez algumas destas urgências. Valem como os primeiros passos no processo de transformação.

  1. Adequação aos ritmos de tempo, nas secretarias, nos serviços de escuta, aconselhamento, direção espiritual, confissões, missas. Os horários são cada vez mais diversificados. O tempo não pára. Não mais dia nem noite na pós- modernidade.
  2. Recuperação e intensificação da postura missionária com destaque para atividades de visitação, formação de grupos de rua, círculos bíblicos, catequese nas casas etc.
  3. Transformação das paróquias centralizadas em prédios, com muitos grupos, em paróquias organizadas em pequenas comunidades espalhadas por todo o território (DAp 172). Neste sentido, acolhendo as observações do último Sínodo, convém lembrar a importância dos grupos que se reúnem ao redor da Palavra de Deus, transformando-se em sementes de comunidade.

O fato é que precisamos intensificar nosso aprendizado na vivência com diversas formas de organização comunitário-espacial. Num mundo marcado pelo pluralismo e pela mobilidade, não há como se fazer presente se não for pela diversidade de formas. É o mesmo Evangelho, o mesmo princípio eclesial, porém, com configurações adequadas ao momento histórico. Configurações eclesiais uniformes, ou seja, um único tipo de oferta comunitária, seja ela qual for, não correspondem às expectativas de espaço, mobilidade e pluralismo, expectativas estas que compõem o horizonte cultural predominante em nossos dias.

 

É claro que transformações nas referências sempre causam instabilidade. Na medida em que nenhuma concretização comunitária tem o monopólio do Espírito, todas precisa conviver harmoniosamente, cada uma com suas qualidades e também com suas limitações.

  1. As paróquias territoriais sofrem as limitações da amplitude, da redução dos vínculos humanos mais imediatos e assim por diante.
  2. As CEBs recebem a queixa de se preocuparem mais com a dimensão sócio- transformadora do que com a dimensão comunitária, com as relações interpessoais.
  3. Os movimentos recebem a queixa de que não se articulam adequadamente com a pastoral paroquial e diocesana.
  4. As novas comunidades recebem a mesma queixa de baixa articulação com a paróquia e a diocese. Algumas destas novas comunidades recebem ainda a queixa de que estariam realizando pesca de aquário, ou seja, retirando pessoas das paróquias. Outras, quando criadas dentro das paróquias tradicionais, recebem a queixa de que estariam contribuindo para a criação de duas classes de católicos, os da nova comunidade e os demais.

O fato é que queixas nós sempre temos muitas. O importante é não olhar para elas com olhos moralizantes. O desafio é mais amplo do que a humana incapacidade de convivência com o diferente. Trata-se, como tão repetido, de rearrumação no jeito de ser comunidade. Plasticamente falando, estamos redecorando a casa. Os móveis estão sendo arrastados de lugar. Os que estavam no centro da sala - no caso as paróquias territoriais - estão passando por reformas, sofrendo restauração - isto é, estão sendo transformadas em comunidades de comunidades - e até mudam de lugar dentro da sala para abrir espaço a outros móveis que chegam - outras configurações comunitárias.

O grande dom que vamos precisar, pelo menos por algum tempo, é o da paciência pastoral para conviver com diversas formas de configuração comunitária e administrar os conflitos decorrentes. Sabemos que o convívio entre as duas grandes tendências - territoriais e não-territoriais - nem sempre é tranqüilo. As comunidades territoriais costumam ser mais apegadas à força do território, cobrando adesão em virtude da geografia. As comunidades ambientais tendem a não se articular adequadamente com a pastoral de conjunto, voltando-se mais para seus próprios interesses e, projetos. Estes conflitos aparecem, na maioria das vezes, na ponta da capilaridade pastoral, isto é, na paróquia territorial tradicional. Muitas vezes, porém, só em nível diocesano, quando não interdiocesano, é possível encontrar solução para uma caminhada em comum. Em nossos dias, há contextos que não podem ser abraçados por uma paróquia sozinha. Só uma estrutura paroquial em rede será capaz de acolher estes dois modelos de vida comunitária, aliada a estruturas trans ou supraparoquiais, estruturas, portanto, diocesanas ou até mesmo interdiocesanas.

Trata-se, no entanto, de uma paciência que não é simples espera. Assim como precisamos dar alguns passos junto às paróquias tradicionalmente organizadas, também podemos dar alguns passos para a renucleação de que tanto se falou aqui. Tais passos constituem o conjunto de instrumentos que ajudem a fazer a passagem para uma estrutura comunitária plural, diversificada. Os quatro instrumentos que mais têm recebido destaque são:

  1. O elemento humano. Na medida em que surgem novos núcleos, surge também, de imediato, a pergunta por quem vai acompanhar tais núcleos. Referindo-se aos presbíteros, Aparecida indicava como uma das dificuldades que os presbíteros encontram a existência de paróquias muito grandes (DAp 305). São paróquias já agora com um grande número de comunidades, localizadas às vezes em distâncias impercorríveis em um único dia. Estas comunidades já vivem o que Aparecida indica como o ministério do animador de pequenas comunidades (DAp 99e). O Ano Sacerdotal, que estamos para começar, haverá de, entre outras coisas, nos ajudar a perceber, ainda mais, os melhores caminhos para o trabalho do presbítero com os diversos ministérios confiados a leigos, sem descuidar, por certo, da Pastoral Vocacional.

  2. Objetivos aptos a permitir que as diversas vivências de fé (paróquias, pastorais, cebs, movimentos, novas comunidades...) sintam-se com possibilidade de participar. Neste caso, o problema será sempre o do equilíbrio entre a universalidade e a concretude dos objetivos. Penso, por exemplo, nos temas da Campanha da Fraternidade, ou na Missão Continental. Nos dois casos, penso ser impossível dizer "eu não me encaixo; nossa experiência de Fé segue por outros caminhos, tem outros projetos". É, a meu ver, impossível não se encaixar no enfrentamento evangélico das questões ligadas à pobreza, à violência e às ameaças à vida. O importante, no atual momento da história, em que as grandes sínteses, os grandes sonhos e causas não encontram plausibilidade, é não deixar sem metas visíveis a serem assumidas, cumpridas. Este é um tempo de explicitação de metas, pois as categorias meta, sonho, causa, utopia, grandes objetivos, nós sabemos, não estão internalizadas. Foram colocadas de lado, na repaginação da existência.

  1. Experiências concretas de convívio, articulação e ação, com força testemunhal interpeladora. O cristianismo sempre se fez presente na história através da força do testemunho. Em nosso tempo, porém, tempo em que tudo passa rapidamente, em que as possibilidades são imensas, o testemunho adquire força ainda maior. Basta olhar a acolhida que as atividades testemunhais recebem. As pessoas, descrentes de grandes sonhos e resultados que não vêem e talvez nunca verão, desejam a os resultados de imediato. O testemunho se encaixa nesta exigência pós-moderna. Por que, devemos nos perguntar, determinados empórios de milagres, fazem tanto sucesso se sua liturgia consiste apenas no testemunho de possíveis curas? Não estaria aí a força do testemunho? Voltando ao nosso tema, o testemunho que é possível conviver com diversas formas de organização comunitária, a partir de diferentes destaques na vivência da fé não foge da identidade cristã, que é também comunhão de carismas, e fala bastante ao mundo de hoje.

  2. 4)  Material específico para animação das pequenas comunidades, de modo especial ajuda no contato com a Palavra de Deus. Aparecida e também último Sínodo insistiram muito na lectio divina. Nossas dioceses têm uma grande riqueza de materiais que precisariam ser até mais divulgados e intercambiados. Também aqui se insere a questão da ausência de referências. As tradicionais referências já não se encontram tão à mão das pessoas. Hoje temos muito mais a literatura de auto-ajuda, com todos os riscos que sua exacerbação traz no sentido de não reconhecer a Deus como Deus, como transcendente, imanipulável.

Nesta mudança de época, em que os papéis de pessoas, grupos e instituições se desestabilizam e se alteram, emerge o que a literatura especializada tem chamado de novo perfil de crente (HERVIEU-LÈGER, D., Lê pèlerin et le converti. La religion en mouvement, Paris: Flammarion, 1999, p. 157-200). Não é mais o crente que acolhe o que lhe é apresentado com a força da tradição ou da instituição. Estes dois processos se encontram em baixa, nos últimos anos. O novo crente quer e precisa escolher. Daí a importância de se apresentar bem, com clareza e com força testemunhal a mensagem que nos define e distingue num cenário pluriforme e mutante.

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6. TESTEMUNHO PARA A ÉPOCA QUE ESTÁ SURGINDO

Por tudo isso, fica o desafio de anunciar o Evangelho a esta cultura globalizada, com suas concepções referidas aqui a respeito de espaço, relacionamento humano e vida comunitária. Ao lado do testemunho do amor pela vida, ao lado da presença solidária junto aos mais pobres, outra contribuição indispensável que podemos dar para o novo momento histórico que está surgindo é a capacidade de acolher o diferente, de conviver sob diversas formas, afastando-nos seja do pluralismo não relacional, onde o convívio perde sua força interpeladora, seja do fundamentalismo excludente.

Para mencionar dois exemplos tão próximos da ação da Igreja do Brasil nos últimos tempos, a defesa da vida (CF 2008) e as questões ligadas à segurança pública (CF 2009) trazem subjacente a si a mesma questão que se manifesta também na capacidade ou incapacidade de convivência de distintas formas de vida comunitária. Trata-se da tendência de nosso tempo à destruição do que interpela, do que incomoda, seja, numa ponta da vida, o nascituro, seja, ao longo de toda a vida, o que saiu das margens sociais, seja quem se empenha por viver sua fé num estilo de ser comunidade, que não é o nosso. É, sem dúvida, uma questão de valorização da alteridade. Testemunhar isto me parece ser uma das grandes contribuições que podemos dar neste momento histórico.