Resumo

O objetivo deste artigo é demonstrar a limitação que o uso do latim representa no código canônico. De fato, a opinião sustentada no presente texto é no sentido de que uma língua moderna, como o inglês, qual meio internacional de comunicação, poderia ser mais idônea para o código, já que, hoje em dia, poucos indivíduos conhecem o latim, mesmo entre os especialistas e o código está destinado à integralidade do povo de Deus (leigos e clérigos), sendo um instrumento jurídico de implementação do Concílio Vaticano II.

Palavras-chave: Código. Latim. Inglês. Tradução.

 

Abstract

The purpose of this article is to demonstrate the limitation that the Latin language represents in the Code of Canon Law. In fact, the opinion advocated in the present text is that a modern tongue, like English, an international means of communication, could be more proper for the Code, since, nowadays few persons know Latin, even among the experts, and the Code is addressed to the entire people of God (lay and clergy), being the juridical instrument to put into practice the Vatican II.

Keywords: Code. Latin. English. Translation.

Resumen

El objetivo de este trabajo es demostrar la limitación de que el uso del latín es el código de derecho canónico. De hecho, el punto de vista sostenido en este texto es en el sentido de que una lengua moderna como el Inglés, medio internacional de comunicación, podría ser más adecuado para el código, ya que, hoy en día, pocas personas saben latín, aunque entre los expertos y el código es por la integridad del pueblo de Dios (laicos y clérigos), siendo un instrumento jurídico para la aplicación del Concilio Vaticano II.

Palabras-Claves: Código. Latim. Inglés. Traducción.

 

 

Introdução

Antes de tudo, gostaria de dizer que este artigo nasce de um desabafo, em virtude de uma situação que me tem atormentado ultimamente. Também representa o presente texto um clamor para que os peritos em direito canônico aprofundem a reflexão sobre o problema ora discorrido, visceral para a efetividade do direito canônico.

Diz-se que uma das principais características da lei em geral é ser compreendida por todos que têm de obedecê-la, pois "(...) os indivíduos na sociedade têm a necessidade de obter informações sobre a existência da lei e de conhecer seu conteúdo." Neste diapasão, a lei na Espanha está escrita em espanhol; a lei em Portugal e no Brasil está escrita em português; a lei na Alemanha está escrita em alemão e assim por diante.

A lei da Igreja, entretanto, está escrita em latim, vale dizer, a principal norma jurídica da Igreja, o código de direito canônico, ou, simplesmente, o código canônico, é expresso em latim. A língua de Cícero é tida como uma espécie de idioma oficial da Igreja católica. De fato, há muitas vantagens em se expressar uma regra jurídica em latim, que é  conciso e simples; extremamente objetivo e elegante. Sem embargo, o latim padece de um defeito sério: ele é compreendido por poucas pessoas ao redor do mundo, quase exclusivamente pelos canonistas. O leigo, ou católico corrente, geralmente não sabe nada de latim. A propósito, no Brasil, desafortunadamente, faz decênios que o latim fora extirpado da grade curricular do ensino médio.  Para os leigos, 90% dos católicos, torna-se simplesmente impossível manter um contato natural com o direito canônico, tal qual qualquer pessoa de cultura mediana estabelece com as normas civis do seu país, sendo capaz de ler e interpretar certas leis, especialmente a constituição, vivenciando, desse modo, uma cidadania saudável, exercendo direitos e cumprindo deveres. Em suma, esta parece ser a regra genérica na maioria dos países. No Brasil, se tomarmos o exemplo do conhecido Código de Defesa do Consumidor Brasileiro, vemos que o próprio consumidor se defende; procura a lei, lê-a, interpreta-a e toma a iniciativa, sem depender de jurisperitos.  Isto é um lídimo exercício da cidadania.

 

Somente o texto latino possui valor oficial

No Brasil, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) deixa claro que tão só o texto latino tem valor oficial: "Para a exata compreensão da edição brasileira, é necessário levar em conta os seguintes avisos: ‘1.º Só o texto latino do Código tem valor oficial.'". Na apresentação da segunda edição do código, a conferência episcopal brasileira reforça a norma de que apenas o texto latino do código goza de valor oficial: "É uma grande satisfação apresentar a segunda edição revisada do Código de Direito Canônico, a versão brasileira, com o texto oficial latino."

Em muitos países, as traduções são submetidas à aprovação e ao controle da conferência episcopal, todavia, isto não significa que a tradução seja equivalente ao latim, no que tange à oficialidade. O latim permanece sempre a única língua do código canônico! Diferentemente da atitude baseada no código ab-rogado de 1917, o legislador atual permite as traduções, mas "(...) o texto autêntico de ambos os códigos (do rito latino e do rito oriental) é o grafado em língua latina."

É interessante, por exemplo, observar como o "New Commentary on the Code of Canon Law", organizado pela Sociedade de Direito Canônico dos Estados Unidos, mostra um gravíssimo problema na tradução do código para o inglês. "O fato de o inglês traduzir tanto lex e ius pelo vocábulo "law" (lei) causa a perda da precisão técnica e cometem-se erros de interpretação."

Obviamente, na hipótese de um processo judicial chegar a Roma em segundo ou terceiro grau de jurisdição, os juízes decidirão o caso concreto sempre com fulcro no texto latino.

 

Dificuldades do dia a dia

Na condição de professor de direito canônico, sinto-me assaz apreensivo em ter de recorrer constantemente à tradução. Às vezes, passa pela minha cabeça a ideia de que meus alunos e eu estamos lidando com algo irreal, porque a lei não é a tradução. As várias versões do código canônico têm a restrita função de auxiliar a compreensão da letra da lei; funcionam como um tipo de referência para o católico. Nada mais! Por este motivo, faço questão de pedir aos alunos em sala de aula: por favor, leia a tradução de tal cânon. Eu jamais digo: leia este ou aquele cânon. De fato, a tradução é uma reles sombra da lei!

Infelizmente, alguns colegas, ao darem aula, reportam-se somente à tradução, manipulam-na como se fosse a lei canônica, olvidando cabalmente o latim. Algo de pior aconteceu no Brasil: certa editora católica publicou um código apenas em português, isto é, só com a tradução, talvez para tornar a obra menos onerosa, mas, esta atitude é algo equiparável a jogar fora a água suja da banheira com o bebê que estava dentro dela!

Nem é necessário arrolar neste artigo os variegados problemas seriíssimos que surgiram nas minhas aulas, ou melhor, as dúvidas que medram na mente de meus alunos, devido à confiança cega na tradução. É claro que ao lecionar direito canônico nas faculdades de teologia, tenho meus olhos dirigidos ao texto latino. No entanto, não posso transformar uma aula de direito numa aula de latim. Assim, o uso da tradução é inevitável, mas não apenas a tradução, como soem proceder equivocadamente alguns colegas, conforme escrevi linhas atrás.

Vou mencionar algumas dificuldades de tradução relacionadas com minha experiência docente. De qualquer modo - é bom que se diga - a questão é bem outra, porquanto uma tradução, mesmo uma excelente, ainda não é o código. Ela sempre será - enfatizemos este ponto! - um simulacro do código canônico.

Existem muitas situações nas quais a tradução confunde o interprete. Citarei somente dois exemplos, afirmando de novo que, mesmo que houvesse traduções perfeitas (não as há), elas ainda assim seriam simples versões e não a lei real.

1.º exemplo. Cânon 777, 4.º. Esta parte o mencionado cânon estabelece que a formação catequética deve ser dada aos deficientes mentais e físicos. Em latim: qui corpore vel mente sint praepedit. A tradução elaborada em Portugal é a seguinte: deficientes espirituais e físicos. Ter um problema mental, tal como indicado no cânon, e ter um problema espiritual, segundo o tradutor, são coisas totalmente distintas. Ao elaborar o cânon, o legislador não pensou, por exemplo, nas pessoas moralmente desordenadas, que eventualmente podem estar afligidas por um infortúnio espiritual. A atenção da lei está concentrada exclusivamente nos deficientes mentais.

2.º exemplo. Cânon 998. O aludido cânon determina que o sacramento da unção dos enfermos seja conferido ao fiel que se encontra perigosamente doente. Em latim: periculose aegrotantes. O Código de Direito Canônico editado pela Loyola fornece esta tradução: gravemente doentes. Bem, trata-se de situações totalmente diferentes. Figuremos a hipótese de um irmão que sofre de aids. Tal pessoa está decerto gravemente doente, mas não perigosamente doente. A aids, por si só, não satisfaria a condição imposta pelo legislador canônico para a recepção do sacramento. Ora, é notório que a aids, hoje em dia, está sob um completo controle e os que são soro-positivos não correm mais o risco de morrer a qualquer momento, em razão da referida patologia.

 

Inglês: uma língua exímia para um novo código

O escopo deste artigo é tentar demonstrar que seria bastante útil e realista se o código canônico fosse escrito numa língua moderna, como inglês e espanhol, os idiomas mais falados do planeta. Um católico do Japão, exemplificando, que está sob a jurisdição do rito latino, tanto quanto um brasileiro, provavelmente terá maiores condições de compreender o código em inglês. O código canônico não será mais um mistério para esse irmão nipônico, mas normas, regras a serem postas em prática, a fim de se viver como um bom cristão. A mesma sensação de liberdade experimentaria um pároco da Índia, ao compulsar o código canônico. Estabelecer-se-ia um contato estrito e vital, uma familiaridade genuína com a lei da Igreja de Cristo.

Em minha opinião, a língua a ser utilizada no novo código é sem sombra de dúvida o inglês. Por quê? Porque o inglês é a língua internacional da contemporaneidade. Em muitos países, como Alemanha e Áustria, por exemplo, o inglês já surge como a segunda língua. Até na Itália, o inglês é muito usado. Veem-se placas de trânsito em inglês nas ruas de Roma. Em diversos países da África, donde advém parte dos seminaristas com quem eu trabalho, o inglês é outrossim uma língua oficial.

Nas aulas, conforme disse linhas atrás, pelo fato de ninguém saber latim, a tradução parece ser a solução. Desta feita, o ensino do direito canônico adentra uma espécie de fantasia, pois o objeto do ensino está assaz distante; oculta-se no latim. O inglês, é claro, não é tão bem conhecido por um brasileiro quanto por um americano nativo. Isto é verídico. Sem embargo, com a internacionalização do idioma inglês, até mesmo os sul-americanos estão adquirindo um conhecimento maior desta esplêndida língua. Por outro lado, ninguém mais, nem sequer os seminaristas, demonstra interesse pelo latim, sendo que um curso de seis meses, com uma aula por semana, ministrado normalmente nas faculdades de teologia, é insuficiente ao extremo para o aprendizado de um idioma tão difícil quanto o latim.

 

Conclusão

Que ninguém venha me dizer que o código canônico é para os padres e este fato  justificaria o uso do latim! Esta é uma asserção falsa, uma vez que o código em questão está dirigido ao povo de Deus (leigos e clérigos). Porém, mesmo que pudéssemos concordar com esta assertiva tão anticonciliar, teríamos de enfrentar a vicissitude de que 99% dos padres atuais também não sabem latim. Sabiam-no bem nos idos do código ab-rogado de 1917.

Que ninguém me diga também que o código canônico não é tão relevante para o dia a dia de um bom católico. Bem, sem este código, o Concílio Vaticano II praticamente não sairia do papel, permanecendo um compêndio de boas intenções dos bispos e do papa. Na Igreja católica, o suporte jurídico é essencial; na realidade, a base canônica identifica a verdadeira Igreja de Jesus, porque nosso Senhor em pessoa proveu a Igreja de algumas instituições jurídicas, como o primado, sendo elas reguladas pelo código canônico.

O bem-aventurado papa João Paulo II, ao promulgar o código canônico em 1983, afirmou na constituição Sacrae Disciplinae Leges: "Devemos lembrar que este código tem origem numa única intenção: a renovação da vida cristã."

É fácil achar no "diário oficial da Igreja", Acta Apostolicae Sedis, várias leis importantíssimas redigidas em línguas modernas, como o italiano, o francês, o espanhol e o inglês.

Se o código canônico não for expresso numa língua acessível a todos os súditos, o povo de Deus, máxime os leigos, que têm de amar e obedecer a lei eclesiástica, jamais alcançará o assim chamado espírito da lei. Em vez disso, os católicos serão perseguidos pelo fantasma da lei, pois apenas alguns iluminados especialistas dirão que possuem a chave do direito eclesial, qual seja, o conhecimento da língua latina. Os italianos possuem um adágio famoso acerca do assunto deste artigo: "Tradutore traditore". Em português: "Todo tradutor é um traidor."

 

Prof. dr. Edson Luiz Sampel

Doutor em direito canônico pela Pontifícia Universidade Lateranense, do  Vaticano.

Professor de direito canônico no Instituto de Teologia Pio XI (Unisal) e na Escola Dominicana de Teologia (EDT), em São Paulo, SP.

Membro da Sociedade Brasileira de Canonistas (SBC)

Endereço do autor: Rua Emílio de Sousa Docca, 834, ap. 53, São Paulo, SP CEP 04379-028 (Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.)

Bibliografia

 

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PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, Vol. I. 6.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1982

 

Código de Direito Canônico, 18.ª ed. São Paulo: Loyola, 2008.

Diccionario Enciclopédico de Derecho Canónico. Barcelona: Herder, 2008.


PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil.Vol. I, 6.ª ed.. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 48.

Código de Direito Canônico, 18.ª ed. São Paulo: Loyola, 2008, p. 20. Apresentação à primeira edição brasileira

Código de Direito Canônico, 18.ª ed. São Paulo: Loyola, 2008, p. 21. Apresentação à segunda edição brasileira.

Diccionário Enciclopédico de Derecho Canónico. Barcelona: Herder, 2008, verbete "Latim", p. 154.

BEAL, John P. et allii. New Commentary on the Code of Canon Law. New York: Paulist Press, p. 47.

 

Constituição apostólica Sacrae Disciplinae Leges, apud Código de Direito Canônico, 18.ª ed. São Paulo: Loyola, 2008, p. 9.