SACRAMENTOS

INTRODUÇÃO

A Crise da Linguagem Simbólica Religiosa Convencional.

É fato que há na modernidade vários elementos que exercem poderosas criticas à celebração litúrgica, assim como todas as expressões religiosas e tendem levá-las ao desaparecimento. Tal crítica corrosiva se justifica na alegação de que religião é perder tempo, desviar para um mundo de símbolos as energias que precisam ser concentradas na ação histórica. Naturalmente que uma sociedade de produção só valoriza o trabalho e a ideologia do trabalho nega qualquer espaço de gratuidade, de festa.

A sociedade moderna é uma sociedade não-religiosa, não porque os homens e as mulheres já não crêem, mas porque que é instituíste e organizador da vida social não é mais religioso. Se na sociedade tradicional, a religião fora o princípio estruturante da vida material, social e mental, hoje ela apenas atua em experiências singulares e em sistema de convicção, não indo além das biografias pessoais. Portanto, uma sociedade não-religiosa não significa uma sociedade sem religião, mas sim uma sociedade que se constituiu nas suas articulações fundamentais, pela metabolização da função religiosa. Trata-se de uma crise dos fundamentos religiosos da sociedade.

A virada antropocêntrica implica no destronamento de Deus como centro e fundamento de toda a realidade e sua substituição pelos seres humanos. Somos filhos de nossa cultura. Nosso modo de ver, sentir e compreender a realidade é profundamente condicionada pelos valores e contravalores herdados de uma tradição racionalista de pensamento ocidental, da sociedade secularizada.

O simbolismo das religiões de modo geral, principalmente da judaico-cristã, é eminentemente agrário, ligado à natureza. O homem do campo sabe o que é a vida e talvez não saiba elaborar teorias teológicas, mas sabe experimentar a Deus, vivo e presente em sua vida e em tudo o que o cerca. E cria símbolos para celebrar essa presença.

Com o advento da industrialização e da urbanização esses símbolos agrários perdem sua força comunicativa.

Na sociedade agrária o trabalho era familiar. Neste contexto sócio-cultural, as celebrações podiam ser globais: a festa retomava o que foi vivido no trabalho e nas relações sociais. A sociedade industrial deslocou o trabalho do campo para a cidade e separou a vida privada das relações de trabalho.

O trabalho agrícola está sujeito aos caprichos e variações da natureza. Na pecuária, o ritmo dos animais tem que ser obedecido. Essa situação cria uma atitude de espera e de dependência, que propicia o sentimento de gratidão de gratuidade, fundamentais para a existência da festa. Ao contrário na industria, se planeja e se fabrica. Fabricar supõe submeter o material à vontade humana transformá-lo a atitude já não é de dependência, mas de domínio, o sentimento já não é de gratidão, mas de poder. A cidade já não é um meio natural, dado, mas um complexo artificial, criado pelo ser humano, funcionando segundo suas leis e regulamentos. Torna-se um material cuja função se mede pela utilidade. Já não se lida com sinais que poderiam orientar para Deus, mas realidades objetivas.

Na produção industrial, padronizada, especializada - realizada na fábrica e não na família - é impossível reunir a comunidade para celebrar a vida. Na sociedade agrícola, as relações de base da vida social são as relações primárias que organizam o encontro com o outro a partir de uma dimensão pessoal e afetiva. Esses modelos da sociedade tradicional onde a relação interpessoal estava na base da vida social continuam a ser operantes, mas encontram seu lugar privilegiado de expressão no plano do universo privado. Este só se pode compreender em oposição ao universo público que, sob muitos aspectos, aparece como um mundo onde se passam as coisas importantes, mas que é regido por mecanismo de autorregulamentação impessoal. Resulta daí uma oposição entre o mundo valorizado pela pessoa como lugar de sua criatividade e o mundo dos negócios importantes, regido pelo mercado, pelo controle coletivo, onde se corre o risco, cada vez maior de ser visto como uma máquina anônima. Numa sociedade em que as pessoas só se sentem livres no âmbito do privado, como celebrar coletivamente a existência e a vida do trabalho? Como fazer festa numa sociedade em que o público e - uso social estão dissociados do individual e do privado?

Com o surgimento da cidade moderna a concepção do espaço e do tempo se transformaram adquirindo nova configuração. "A cidade tricêntrica Igreja, praça e moradia - se orientava toda para o ponto alto em que se erguia a Igreja. Fisicamente ela comandava o espaço geográfico. Espiritualmente orientava o comportamento dos habitantes da cidade. As pessoas introjetavam esse esquema arquitetônico, como expressão de sua cultura rural ou semiurbana". A Igreja matriz era a expressão de destaque do Transcendente na vida das pessoas.

A cidade moderna é policêntrica. A importância física do espaço desloca para o interesse para a diversidade e para a qualidade de cada pedaço espacial. A comunicação deixa ser transmitida e obtida num lugar (praça), graças à telecomunicação e à informática. A Igreja matriz permanece com sua presença física, mas hoje o shopping center assume o seu lugar. A destruição do espaço sagrado afeta diretamente a liturgia. "O shopping desloca o Transcendente religioso para o interior das pessoas, para fora do campo visual, cercando o mercado, a mercadoria com o esplendor e a beleza que antes vestiam os ritos religiosos". Com isso, a estrutura própria do mundo religioso sagrado é transferido para as realidades profanas, dificultando a percepção do. Transcendente presente na realidade humana.

Os antigos ritos cedem lugar às ciências e às técnicas, perdem terreno e quando sobrevivem são lançados no mercado como bens consumo, caso típico é do carnaval.

A fuga da rotina cotidiana será realizada nos fins de semana nas férias mesmo assim, muitas vezes programada por empresas especializadas. O domingo outrora, dia do senhor dia ritual que marcava a ruptura com o cotidiano atualmente é o que permite distinguir o domínio do privado do âmbito do trabalho, anônimo e programado.

Todas essas mudanças desvirtuam o sentido dos ritos litúrgicos.

Numa sociedade religiosa é normal participar das celebrações litúrgicas onde a mesma fé é compartilhada pela maioria, onde as grandes forças institucionais são mobilizadas para sustentar e confirmar esse universo católico. Situação inversa, acontece hoje, quando se defronta continuamente com informações que contestam ou ignoram a doutrina católica. Portanto, participar da liturgia, já não é mais aquela espécie de automatismo que não se discute ir à missa, hoje, por exemplo, deixou de ser rotina. O fato de ir à missa entra em concorrência com as mil atividades às quais se poderia priorizar particularmente com os shows, com os espetáculos de televisão, centrados na comunicação da imagem, bem mais atraentes que nossas celebrações quase todas montadas em torno da palavra e da ideia. Além disso "os tempos antes dedicados ao mundo religioso, hoje se orientam para o lazer. Mais ainda. O religioso atrai à medida que ele participa mais do lazer que da obrigação, mais do gozo do que do valor objetivo e funcional".

A liturgia tende a mudar de função. Substituindo ao dever de prestar culto a Deus, passou a ser um sinal de pertença a um grupo social que se diferencia da massa; meio de compensar as frustrações sociais causadas pelas contingências da vida moderna; meio de matar a sede de sentir numa sociedade em que a técnica e o progresso acabam atrofiando a afetividade.

Apesar de toda essa crise, caracterizada pela diminuição da participação na liturgia católica, há, por outro lado o aumento dos novos movimentos religiosos. Isso nos leva a perguntar se devemos atribuir a crise somente ao impacto da modernidade na religião ou devemos procurar uma causa também na própria liturgia? Ou em outros termos, a diminuição da prática litúrgica está relacionada apenas com a perda da capacidade simbólica do homem moderno?

O que primeiro precisa ser constatado, para responder a essa questão, é se o homem moderno perdeu a sua capacidade simbólica. Se admitimos a teoria de C G. Jung da existência de símbolos universais transculturais chamados arquétipos coletivos a alegação de que a atual crise da liturgia deve-se apenas ao impacto da modernidade, não cobre toda a verdade, pois, nesse caso os símbolos estão para além de qualquer cultura. Além disso, "não é a sociedade quem produz o simbolismo, mas o simbolismo que produz a sociedade. Nesse sentido, acertadamente L. Boff escreve: Não cremos que o homem moderno tenha perdido o sentido pelo simbólico e pelo sacramental. Ele é também homem, como outros de outras quadras culturais, e por isso é também produtor de símbolos expressivos de sua interioridade e capaz de decifrar o sentido simbólico do mundo. Contudo, não podemos menosprezar a influência do racionalismo moderno na crise da liturgia cristã, muito menos absolutizar sua influência. A prática litúrgica também é, ela mesma, causa de sua crise.

Ainda com L. Boff podemos afirmar: "Talvez eu (o homem moderno) se tenha feito cego e surdo a um certo tipo de símbolos e ritos sacramentais que se esclerosaram ou se tornaram anacrônicos. A culpa é então dos ritos e não do homem moderno. Não podemos ocultar o fato de que no universo sacramental cristão se tenha operado um processo de mumificação ritual". Refletindo sobre a incapacidade de comunicação dos ritos, o autor em pauta, sentencia: "Os atuais ritos pouco falam por si mesmo. Precisam ser explicados. Sinal que deve ser explicado, não é sinal. O que deve ser explicado não é o sinal, mas o Mistério contido no sinal. Por causa desta mumificação ritual, o homem moderno secularizado suspeita do universo sacramental cristão".

G. Fourez, vê na teologia racionalista a causa do enrijecimento dos rituais litúrgicos. Ele escreve: "o que os esclerosa é muitas vezes o fato de se colocar em primeiro lugar o discurso teológico ou a razão e não a vivência dos cristãos e de suas comunidades animadas pelo sopro do Espírito Isso significa que se cumpriu unicamente o que ordena uma norma abstrata".

Devemos dar um passo à frente na configuração da prática litúrgica como causa de sua própria crise.


Para o sentido da festa e sua articulação com a práxis, para superar a ideologia do trabalho que destruiu a festa transformando-o em trabalho: veja-se F. Taborda. Sacramento. Práxis e Festa. Vozes, Petrópolis, 1987, pp 50-60.

Cf. A. Toffler. A Terceira Onda. A Morte do Industrialismo e o Nascimento de Uma Nova Civilização. Rio de Janeiro, Record, 1980, pp. 41-42. O autor mostra como a produção industrial atingiu em cheio a família tradicional, exigindo uma família nuclear que já não é centro de produção mas de consumo. Doravante o trabalho será realizado na fabrica, distanciando o local de moradia do local de trabalho.

J. B. Libano. Vida Religiosa e a Sociedade Moderna Urbana. In: Convergência 270 (1994), p. 86.

"O nosso inconsciente é feito de sons e cheiros, toques e gostos de visões e sentimentos percebidos e armazenados. E toda vez que uma tecla os provoca, brotam as experiências passadas. Ora, o inconsciente religioso forma-se, no campo e nas pequenas cidades com os incensos das igrejas o dobrar dos sinos, o corte majestoso da igreja paroquial, o murmúrio das preces o arrastar-se das procissões ap som estridente das bandas o soar dos órgãos ou a harmônios, a voz decidida e preceptiva do vigário. A grande cidade tem o cordão de silenciar-lhe todos esses estímulos". J. B. Libano. A Igreja na Cidade, In Perspectiva Teológica, 74 (1996), p. 20.

Ibidem, p. 21

Ibidem p. 25.

Jung baseado na análise dos sonhos, chega aos arquétipos que se distinguem dos instintos. Ele explica: Aqui devo aclarar as relações entre os instinto e os arquétipos: o que propriamente chamados instintos são necessidades fisiológicas e são percebidos pelos sentidos. Porém ao mesmo tempo também se manifestam em fantasias e com frequências revelam sua presença somente por meio de imagens simbólicas. Estas manifestações são as que eu chamo arquétipos. Não tem origem conhecida; e se produzem em qualquer tempo ou em qualquer parte do mundo, ainda quando haja que rechaçar a transmissão por descendência direta ou fertilização cruzada mediante migração: C. G. Jung. Acercamiento al inconsciente em El hombre y sus símbolos p. 69, citado por J. M. Castillo. Símbolos de Liberdad, p. 179 nota 19. Lembra Castillo que essa teoria não é aceita por todos os especialistas na matéria, porque Jung radica em que não sabemos, nem podemos saber, a ciência certa onde finaliza o instinto e onde começa a cultura. Cf. Ibidem, p. 180.

P. Ricouer. Poética y Simbólica, p. 48 citando CL Lévi-Strauss, Introcuction a l'oeuvro de Marcel Maus em Anthropologie structurale (Paris 1958), nota 5.

L. Boff. Os sacramnetos da Vida e a Vida dos Sacramentos - Mínima Sacramentalia. 3ªed., Vozes, Petrópolis, 1975, p. 10.

Ibidem.

Ibidem.

G. Fourez. Op. Cit., p.17.