A prática litúrgica: causa de sua própria crise

Iniciemos pela ambiguidade inerente à prática religiosa. A  religião esconde uma ambiguidade que é moral para o cristianismo. A religião tem como seu fim, seu termo, Deus (a divindade). A Ele se referem as crenças, os dogmas e as mediações. Essas mediações, são os cultos ou práticas religiosas, que dão acesso à comunicação com Ele. Esta distinção entre o fim (Deus) e as mediações (práticas religiosas) tem sua razão de ser pelo fato de Deus, por definição ser transcendentes, o que significa que o ser humano na sua existência atual, não tem acesso direto e imediato a Ele. As mediações tornam-se imprescindíveis para estabelecer a comunicação. Isso vale não só para os ritos, mas também para os dogmas. As afirmações dogmáticas e bíblicas por mais sublimes que sejam, são criações humanas através das quais procura-se aceder a Deus, mas não conseguem expressá-l'O em sua totalidade. Doutrina e prática é, pois, dois elementos constitutivos da religião. Daí que a experiência religiosa não se situa no nível do racional, mas no nível mais profundo da experiência humana, donde emergem as experiências preconceituais e atemáticas.

Na distância entre as mediações religiosas, sempre necessárias, e o seu fim (Deus) se instala a ambiguidade da religião. Deus, ao aceder ao ser humano e entrar no campo imanente da consciência humana, tende a objetivar, ou seja, a converter-se em objeto de nosso conhecimento (dogma) ou de coisa realizada (prática cultural). Disto resulta que quando o ser humano crê estar relacionando-se com Deus, muitas vezes, na verdade, relaciona-se com aquilo que ele mesmo constituiu, quer dizer, as objetivações de Deus que  permanece ilusoriamente cativo nas mediações.

O que significa para a liturgia cristã? Os sacramentos são as práticas religiosas fundamentais da Igreja, embora, como veremos na sequência de nossa reflexão, a grande maioria dos católicos, sobretudo, no mundo dos pobres, dá mais importância aos sacramentais.

Sendo a doutrina e a prática religiosa, constitutivos da religião, inseparavelmente interligados, para que haja uma renovação profunda na religião é insuficiente renovar apenas a doutrina. De igual importância é a renovação das práticas religiosas.

Aplicando esse princípio geral das religiões à Igreja católica, percebemos que depois do Vaticano II houve uma grande evolução nos tratados de Teologia, mas a prática religiosa não a acompanhou, no mesmo ritmo e intensidade. No caso específico da Liturgia, verifica-se o mesmo processo. A Teologia Litúrgica mudou muito mais profundamente do que a prática litúrgica. Com isso não estamos absolutamente querendo dizer, que ainda hoje, a prática litúrgica é a mesma da de antes do vaticano II. Claro que muita coisa mudou: as línguas vernáculas, as músicas, as orações eucarísticas, o ritual dos sacramentos, etc. Porém, ainda não se chegou à profundidade necessária. A prática litúrgica não se renova, ou se transforma, pelo simples fato de renovar ou mudar a forma externa de celebrar os sacramentos (o ritual).

A experiência está a nos mostrar que pelo fato de terem ocorrido essas mudanças na liturgia a grande maioria dos(as) fiéis não compreendem, nem vivem melhor, agora, o que são e representam os sacramentos.

Com frequência é atribuído, como causa dessa realidade eclesial, a ignorância, e que portanto, necessita-se de uma formação teológica mais adequada. Critica-se, sobretudo, a catequese infanto-juvenil. É evidente que uma formação teológico-litúrgico aprofundada, permanente, contribui para uma melhor vivência dos sacramentos. Mas isso não é tudo!

Admitindo que doutrina e culto são dimensões religiosas interligadas, considerando tudo o que foi dito sobre a linguagem litúrgica, a gravidade da questão aflora. Quando um símbolo - expressão de vivência tão profundas ao ponto de não poderem ser comunicadas verbalmente -, necessita de muitas explicações para ser compreendido e vivido, significa que já deixou de ser um verdadeiro símbolo e se converteu em rito ou ideologia religiosa. É sintoma de que a prática litúrgica cristã está sendo vivenciada apenas no nível da prática religiosa. Neste sentido, na medida que a prática religiosa entra em crise na modernidade a liturgia é diretamente afetada.

Na liturgia cristã, de qual experiência o símbolo é expressão? É expressão da fé, do encontro com o Deus da vida. A fé cristã comporta essencialmente a entrega e a obediência (cf. Rm 1,5; 16,26; 2Cor 10,5-6). Fé é o encontro com o Deus vivo que se revelou em Cristo, é entrega total a ele, vivendo no Espírito.

Porém, a prática pastoral esbarra num grande dualismo. Por um lado, a Igreja afirma a necessidade de se viver de acordo com o Evangelho, de praticar a justiça de lutar por libertação. Na América Latina, a feição época da fé é a práxis histórica. Porém, por outro lado, ao mesmo tempo admite na celebração sacramental quem não está comprometido com o Evangelho, quem abertamente pratica a injustiça, quem dá pouquíssimo sinais de vivência eclesial. Assim, o que se afirma com a palavra se desfaz com o sacramento. E se admitirmos que os gestos falam mais do que as palavras, somos forçados a aceitar que o que a Igreja prega não pode ser tomado a sério.

Quando os sacramentos - expressão da fé - são deturpados em sacramentalismo - execução ritual do sacramento desvinculado da experiência de fé - deixa de ser simbólicos e adquirem uma função diabólica. Nesse caso, celebram-se os sacramentos mas sem a conversão. Colocam-se sinais figurativos da presença do senhor, mas sem a preparação do coração. Os sacramentos são usados para exprimir a adesão a uma fé. Entretanto esta fé é sem consequências práticas. É pura ideologia.

Nessa dicotomia pastoral entre pregação do evangelho e celebração dos sacramentos, sem dúvida, encontra-se a causa, não única, da crise da linguagem simbólica religiosa convencional da Igreja.


Cf. P. Ricouer. Poética y Simbólica, pp. 43-45.

"Quais as relações respectivas entre mito e rito, doutrina e culto, teologia e adoração? A interpretação mais plausível parece ser a que considera tanto a expressão teórica como a prática como estando inextricavelmente entrelaçadas e a que desaprova qualquer esforço de atribuir prioridade seja a uma, seja a outra. Nenhum ato de adoração pode existir sem alguma concepção do divino, nem uma religião pode funcionar sem pelo menos uma quantidade módica de expressão cultual". J. Wach. Sociologia de Religião, pp. 31-32.

"Infeliz dissociação que aconteceu nas cristandades ocidentais de tradição latina entre uma teologia escolar dada pelo ensino catequético e um pietismo afetivo ou moralizante, desenvolvendo-se à margem de uma liturgia artificialmente conservada e restaurada por uma cultura clerical, suscita enormes dificuldades quie podemos considerar quase insuperáveis para a renovação litúrgica desejada pelo Vaticano II". I-H. Dalmais. A expressão da Fé nas liturgias Orientais in: Concillium 82 (1973) p. 207.

"Foi uma teologia erudita e centrada no Vaticano que pretendeu dirigir a Reforma sem deixar lugar ao espontâneo de toda celebração ritual, sem talvez levar em conta o lugar do povo de deus na eclesiologia do Vaticano II". G. Fourez, Op. Cit., pp. 33-34.

Cf. Ibidem, pp. 25-39. O autor define o conceito de práxis, sua estrutura e a práxis como graça como dom. Mostra o que é cristão na práxis e a espiritualidade da práxis histórica.

Ibidem, p. 76.