O Contexto do Surgimento da Doutrina Social da Igreja.

Na tradição inicial da Igreja, até S. Tomás e por que não dizer, também, nos Padres da Igreja Colonial da América Latina, há uma tendência socializante da comunhão de bens, assegurada pela Destinação Universal dos Bens. Se mais tarde, dentro da Igreja, transparecem afirmações legitimando a propriedade privada, relegando esse grande princípio, é devido a conexões, ligações com os interesses, expectativas, posições, projetos e objetivos de reis, grandes proprietários, ricos, capitalistas, por parte de parcelas da Igreja. Mas, ao mesmo tempo, compete notar que, durante a história do cristianismo, nasceram movimentos tipicamente socialistas. Merecem realce os socialistas utópicos: Robert Owen (1772-1858), Charles Fourier (1772-1837), Saint-Simon (1760-1825), Pierre Proudhon (1809-1865) e outros(), os quais inspiravam-se nos evangelhos, nos Atos dos Apóstolos, nos objetivos religiosos da Destinação Universal dos Bens a todos, embora a Igreja, naquele tempo, não tivesse entendido isso e os colocasse à margem. Em seguida, aparece um movimento preocupado com a socialização dos bens, um segundo socialismo, chamado marxista, de Marx(). Sua durabilidade permaneceu até à crise da União Soviética, estando, ainda, em vigor em alguns países como China e Cuba. Foram tomadas medidas, reações, busca de caminhos, tentativas de aplicação da Destinação Universal dos Bens, frente à grande realidade degradante dos pobres, dos operários, gerada pela industrialização capitalista centralizada no lucro, como fim de produção. A classe trabalhadora, no início da industrialização, provinda em sua grande parte do campo, tem a saúde em breve tempo afetada, a duração de trabalhos sem limites, insuficiência física, pois trabalha-se de 15 a 18 horas por dia, a lei da oferta e da procura é o critério básico para a remuneração e garantia no contrato de trabalho, constatando-se mão-de-obra abundante para pouco emprego. Assim, o salário e as condições de trabalho são as piores possíveis. Há uma perda do sentido de família no operário, pois fica difícil para este encontrá-la devido às horas de trabalho que o consome e às distâncias de seus lares. Vivendo em estado de miséria, o operário, nos primórdios de sua existência, é identificado com o pobre. Bem mais tarde, após longo tempo, numa perspectiva individualista, surge sua consciência de classe, pois, no início da industrialização, não havia, ainda, consciência de justiça social e nem de classe operária. O contrato era de cada operário com seu patrão, tendo uma instabilidade extrema, causando rompimento por qualquer motivo. Priorizavam-se os que trabalhavam por preços irrisórios, e ser desempregado era pior ainda. O problema social passa, no século XIX, para o primeiro plano. Aparecem as novas ciências e o seu amadurecimento, como a sociologia e a economia. A classe operária, devido ao seu crescimento, vai ter um peso na sociedade. A produtividade pertence a outros que se enriquecem, e, assim, não havia interesse pelo trabalhador por parte dos empresários. O trabalho da fábrica se torna o único meio de sobrevivência para os trabalhadores, não deixando perspectivas para outras opções.

 

O avanço do capitalismo liberal após a revolução industrial absolutizou a propriedade privada. A crítica socialista e marxista a esse sistema, a partir da supressão da propriedade privada dos meios de produção, indica um caminho para a superação do então sistema. A Destinação Universal dos Bens, no contexto eclesial, vai ser novamente evidenciada, não tanto com a envergadura patrística e tomasiana, mas com uma certa timidez de ser instrumentalizada pelos socialistas-marxistas, a partir de Leão XIII. Mesmo ainda relegada pelo direito de propriedade privada que é evidenciada como direito natural, postura esperançosa se manifesta no Papa, quando propõe que todos os trabalhadores tenham acesso à propriedade. O Papa Pio XI vai insistir que a Destinação Universal dos Bens determina uma função social à propriedade privada. É somente a partir de Pio XII que a Destinação Universal dos Bens retoma seu lugar de primordialidade sobre os demais princípios e direitos, inclusive sobre o direito de propriedade. Para ele a posse dos bens, de maneira absoluta, pertence somente a Deus, o Pai de todos. Nessa mesma linha está todo o ensinamento de João XXIII, do Vaticano II na GS, de Paulo VI e das duas primeiras encíclicas sociais de João Paulo II, quanto à Destinação Universal dos Bens. Sendo a apropriação privada um direito secundário uma das formas, não a única, do ser humano concretizar o uso dos bens. Apesar de dar grande ênfase à economia de mercado, à propriedade privada como direito a ser atingido por todos, num contexto de modernidade (e pós-modernidade), a doutrina de João Paulo II na "Centesimus Annus" sobre a Destinação Universal dos Bens não deixa de ser evidenciada. Não há avanços e recuos importantes.


CHARBONNEAU, Cristianismo Sociedade e Revolução, p. 205-214; CAMACHO, I.  e  RINCON, R., Op. Cit., p. 444ss; sobre o capitalismo veja-se: MACFARLANE, ALAN,  A cultura do capitalismo, ZAHAR Editor, 1989.

CHARBONNEAU, Op. Cit. p. 214-220; ENGELS, F., Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico, Global Editora, S. Paulo, 1980. Para um aprofundamento sobre a questão do socialismo, veja-se: DROZ, JACQUES(Div.), História Générale Du Socialisme, vols. I-IV, Presses Universitaires de France, Paris, 1972-1979.