1.       JESUS CRISTO E A IGREJA

 

A comunidade, que os Atos dos Apóstolos descrevem e que até hoje serve de espelho para qualquer comunidade da Igreja, não é uma criação a partir da iniciativa humana apenas. Trata-se de discípulos que, cativados pelo Senhor, seguem a Jesus que iniciou esta comunidade na ceia, dizendo: "Crede-me: eu estou no Pai e o Pai em mim ... Permanecei em mim, como eu em vós ...".

Para quem fala "sobre" a Igreja, trata apenas como um problema. Pode ser que ela seja definida como uma sociedade organizada numa unidade externa, visível, social, ritual e jurídica, instituída para guardar as expressões religiosas e aceita unicamente para defender com elas qualquer ordem estabelecida. Pode ser também que seja considerada comunidade por quem se deleita em sentimentos vagos e noções abstratos sobre um futuro melhor da humanidade, mas não aceita, porque quem não participa do seu desafio histórico não vive a sua visibilidade cheia de falhas de comunicação e comunhão a corrigir na história da libertação.

Para quem tiver uma fé viva em Deus e a ele se entregar consciente, pessoal e integralmente, a igreja é um mistério, uma realidade divina, que se manifesta de alguma maneira visível, por sua ação libertadora na história. A quem participar na dinâmica da fé na história, se manifestará o mistério da igreja como: a sociedade dos fiéis, que pela participação na vontade libertadora de Deus, por Jesus, manifesta uma comunidade na unidade do Espírito Santo.

 

3. 1. IGREJA É O SACRAMENTO EM CRISTO.

 

A Igreja com sua palavra e sacramentos. Estes anunciam a presença do Senhor, sobretudo a eucaristia, como a Igreja sempre vivenciou. A prática de amor e de Libertação. Onde há amor, lá está o Reino; e onde este amor tomou formas sociais (justiça), Lá está a antecipação sócio-histórica do reino. Como se relacionam Reino, mundo e Igreja?  As três realidades estão entrelaçadas: em parte coincidem em parte não. Isso significa que: O Reino está tanto na Igreja como mundo (família, fábricas, lutas populares etc.). É quando existem fé, esperança e amor; é quando imperam justiça, solidariedade e coragem, que o Reino se faz presente.

Sacramento (ou mistério) é a graça ( ou comunicação gratuita) visível numa forma visível. Cristo é o sacramento primordial, pois Jesus vivo, ressuscitado no seu corpo glorioso se a comunica com todos e com tudo na comunhão do Espírito Santo. Cabe à igreja reconhecê-lo em fé em todos os ambientes e levar a boa nova como libertação e redenção a todos os povos. A Igreja é assim o sacramento do Senhor glorificado e do seu Espírito. A Igreja é o sinal da libertação e redenção que Jesus traz aos homens e da sua glória, que por ela Jesus dá ao Pai. Por sua palavra autêntica e sua ação libertadora e redentora no meio dos oprimidos de qualquer espécie cumpre a igreja o seu múnus régio e profético. Nos gestos sacramentais corresponde a Igreja à ação sacerdotal de Cristo e sua graça libertadora. Toda a missão é marcada por Jesus, que cumpriu a sua missão de filho de Davi ao Pai como homem verdadeiro até à morte.

 

 

3. 2. IGREJA E O REINO DE DEUS

 

A Igreja católica romana e o corpo místico de Cristo não são uma e a mesma coisa. Mas a Igreja - constituída e ordenada como sociedade neste mundo -  subsiste na Igreja católica. A expressão Corpo de Cristo quer dizer que essa esta união de vida ou comunhão com Cristo se realiza de modo real, mas é revelado no mistério da Igreja pela economia divina. Cristo deu a todos os homens seu Espírito para que sua redenção chegasse e fez de modo místico de seus irmãos seu próprio corpo.

O modo do Reino estar na Igreja é diferente do modo de ele estar no mundo. De fato, ma Igreja, o Reino está de modo claro e patente. Aí o Reino é conscientizado, confessado, celebrando (na pessoa de Jesus Cristo). Por isso se diz que a Igreja é o "sacramento do Reino". Sacramento como sinal, mas também como instrumento, enquanto tempo missão levar o Reino ao mundo. Por outro lado, no mundo, o Reino está  presente de modo anônimo e latente (sempre na medida em que há justiça, comunhão etc.). Por isso pode-se dizer que o mundo é o "símbolo do Reino" na medida em que se constrói segundo os planos de Deus.

A Igreja não é o Reino de Deus consumado e não se identifica com o Reino de Deus, mas é seu germe e início. A Igreja peregrina e reza no caminho: "Venha a nós o vosso reino". O Reino de Deus é a realização do poder de Deus por Jesus Cristo, que através da cruz se tornou a consumação da vontade de Deus e a cabeça da criação e de todos os homens. Este reino já está presente em mistério e cabe aos fiéis reconhecê-lo em ação de graças. Os membros da Igreja são chamados a seguir o Cristo pobre, humilde e carregado da cruz, para que entrem na sua glória. Mas muitos apenas seguem de longe ... pois a cruz de Jesus foi a conseqüência da sua veracidade no meio de um mundo de escravidão, hipocrisia e desunião. Se a Igreja se identifica com o reino da glória consumada, ela foge de seu múnus régio, profético e sacerdotal, não segue o filho de Davi, que serve a Deus como homem verdadeiro e nega o verdadeiro sentido da glória. Não é quando o mundo a aplaude que a igreja é verdadeira, mas quando ela em veracidade cumpre a sua missão de servir no processo da redenção. A Igreja é luz, fermento e sal, enquanto responder livremente a Deus por Cristo. Pois a luz dos ovos é o próprio Cristo e para Cristo e, por sua constituição lunar, ela ilumina todos os homens com a claridade solar de Cristo, que de alguma maneira resplandece na sua face. A Igreja é chamada para ser a consciência crítica do mundo e esta consciência crítica cresce e faz crescer pelo humilde serviço à redenção. Esta Igreja redentora, a Igreja da ressurreição, será compreendida pelos pobres de coração e estará a serviço de todos os oprimidos.

 

 

3. 2. 1.  JESUS E O POVO ESCATOLÓGICO DO REINO

 

A pregação de Jesus dirigi-se na linha de um apelo pessoal cuja resposta é a fé. Em termo bíblicos, a fé é uma atitude do homem para com Deus. O homem de fé agarra-se a Deus nas dificuldades da vida. Implica uma confiança que não se deixa abalar. Esta fé é capaz de operar maravilhas. Tem uma força que o homem, sem ela, é incapaz de desenvolver.

Por todas as partes por onde Jesus passava, havia grupos e pessoas que aderiam à Sua mensagem e que ficavam a aguardar o reino de Deus. Estes aderentes estavam espalhados por todo o país (Mc 5, 19ss). Faz-se acompanhar por um grupo de pessoas, homens e mulheres (Mc 2, 14; At. 1,23; Lc 8, 1-3; Mc 15, 40ss). O  núcleo central é constituído pelos doze (Mt 10, 2, 4). Assim  se vai configurando o povo dos que esperam o reino de Deus. Jesus quis formar o grupo dos que testemunham o Reino de Deus. Este é a família de Deus nascida do espírito (Jo 3, 3-7). Isto realizava os laços do sangue (Mc 3, 35). Não assenta no nascimento da carne (Jo 1, 12-13).

Nesta família, Deus é o Pai (Mt 23, 9). A família de Deus aparece sobretudo na comunhão de mesa que é uma antecipação do banquete escatológico. O maior dos nascidos de mulher é menor que o mais pequeno dos membros da nova família de Deus (Mt 11,11). A imagem do Reino como banquete aparece muitas vezes nos evangelhos. Os seus participantes são amados e defendidos por Deus. O pastor enfrenta os perigos e é capaz de dar a vida para o defender e reunir. Este povo escatológico é construção de Deus. Engloba os pecadores que têm fome de libertação; os pobres (Lc. 7, 21; Mt. 11, 4); os pequeninos. Estes são os eleitos aos quais Deus Se revela. Aparece ainda alargado a todos os necessitados, presos, doentes ou nus. Na família escatológica de Deus, todos os membros são irmãos, filhos de Deus.

Ao contrário desta abundância de testemunhos acerca do povo escatológico de Deus, a palavra Igreja aparece apenas em duas passagens e estas no mesmo evangelista. Trata-se de Mateus 16, 18, onde se refere a toda a Igreja, e Mateus 18, 17, onde a palavra aparece duas vezes com o sentido de comunidade cristã concreta. J Jeremias pensa que o termo aparece em Mateus devido à grande importância que a palavra ekklesia tinha para a Igreja das origens.

Na mensagem do Jesus histórico aparece repetidamente a idéia da família escatológica de Deus. Foi certamente este o tipo de iluminação que Jesus teve quando da irrupção do Espírito no Seu batismo. A este respeito diz J. Jeremias: "Precisamos de frisar fortemente: o único sentido de toda a atividade de Jesus é reunir o povo de Deus do fim dos tempos. Resulta de Lucas 11, 1 que o grupo dos discípulos também estava convicto de que era uma sociedade bem definida. O pedido: "Senhor, ensina-nos a rezar" não significa que ainda tivessem de aprender o modo correto de rezar. O que, na realidade, acontece, é que os discípulos estão pedindo ao Senhor que lhes ensine uma oração que os distinga como grupo e os congregue. É este o sentido da alusão do Batista. Possuir um modo próprio de rezar era considerado, no mundo judaico, uma marca social básica para distinguir com grupo religioso diferente dos outros.

A preocupação por reunir o povo escatológico de Deus fez-se sentir muito fortemente em muitos judeus contemporâneos de Jesus. A vida religiosa do judaísmo contemporâneo de Cristo estava marcada por várias tentativas deste gênero. Isto deve-se à esperança deste povo marcado com um cunho profundamente escatológico e apocalíptico, no qual a idéia do resto fiel de Javé era apregoada por muitos grupos como João Batista, os essênios, os sicários e os zelotas. Os fariseus também se julgavam o grupo dos puros dos últimos tempos. Os essênios entendiam-se como o resto de Deus. O Mestre da justiça seria escolhido dentre os monges para formar para Deus uma comunidade de eleitos, que seriam o resto dos santos de Deus. Os essênios consideravam-se a "Eda", comunidade cultural e pura em oposição aos pecadores, aos publicanos e aos marginais.

A originalidade de Jesus está em que os eleitos por Deus são os desprezados pelos demais grupos. Desprezar os outros significa, para Jesus, excluir-se da família de Deus. Esta perspectiva do resto fiel encontra a sua raiz numa profecia de Elas: "Mas vou deixar com vida em Israel sete mil homens que não dobraram os joelhos diante de Baal e cujos lábios não o beijaram". O profeta Isaías desenvolveu depois esta teologia do resto fiel de Javé. Os textos bíblicos do resto de Javé referiam-se a pessoas que se purificaram. João entende-se como aquele que convida à purificação final. João Batista aceitava os pecadores e publicanos, convidando-os a batizarem-se e fazerem penitência, Jesus, pelo contrário, aceita-os antes de qualquer penitência. Rejeita qualquer tentativa de segregação de castas, classes sociais ou comportamento religioso. Dá preferência aos rejeitados pelos fariseus e essênios (Lc 14, 13). Fala  de mutilados, cegos, aleijados (Lc 14, 21). Isto escandaliza os fariseus e os sacerdotes. Agora o dom é a graça. A condição é a abertura do coração. Jesus não congrega o grupo dos puros, mas o povo escatológico dos salvos gratuitamente. O importante é converter-se e abrir o coração ao dom escatológico de Deus. Não é questão de fazer coisas. Não tem conotação moralista, mas essencialmente uma maneira de ser, uma atitude de coração que Deus conhece: "Veio João Batista que não come nem bebe vinho, e dizeis: Está possesso do demônio! Veio o Filho do Homem, que come e bebe, e dizeis: Aí está um glutão e bebedor de vinho, amigo de publicanos e pecadores! Mas a sabedoria foi justificada por todos os seus filhos".

 

 

3. 2. 2.  A IGREJA NASCE DA PÁSCOA

 

É um fato hoje aceite pela teologia e pela exegese que o Jesus pré-pascal não fundou a Igreja durante a Sua vida mortal. A Igreja surge como obra escatológica, fruto do Espírito do Cristo Ressuscitado. Nascimento da Igreja e experiência pneumática de Cristo Ressuscitado caminham paralelamente.

Dizer que Jesus não fundou a Igreja durante a Sua vida histórica não significa que o povo escatológico que ia despertando e mesmo os discípulos mais próximos não recebessem de Jesus qualquer organização Jesus quis formar a família dos filhos de Deus, que seria o povo escatológico do Reino de Deus. Os seus membros não se sentiam ainda separados do povo judeu. A consciência da separação só surgirá depois da experiência pascal. Desenvolve-se à maneira que se sentem rejeitados pela generalidade dos judeus. No entanto, não seria legítimo deduzir daqui que a Igreja não tem nada a ver a pregação de Jesus acerca do reino escatológico de Deus. Tal conclusão seria historicamente falsa. Na realidade, a Igreja surge como a configuração social dos que aceitam o conteúdo original da mensagem de Jesus, confirmada pela Ressurreição e pelo dom do Espírito.

Podemos dizer que, a partir do momento em que o Espírito Santo revela aos discípulos o sentido pascal da escatologia, começa a Igreja. Igreja e Pentecostes são realidades coextensivas. O começo da Igreja é o começo do Pentecostes e a sua continuidade é o pentecostes. Isto é tão verdade para os tempos primordiais como para hoje. A Igreja não é uma instituição criada e entregue aos homens. O elemento primordial da realidade eclesial é o Espírito e atuar nos crentes. A Igreja não é um grupo de homens que têm uma doutrina estática e fixa a comunicar, mas o espaço onde o Espírito faz experimentar aos crentes uma Boa Nova para ser anunciada aos homens.

O acontecimento total de Cristo vai da Sua conceição ao Pentecoste. Toda a Sua vida foi pascal. Nele começam os últimos tempos. É destes tempos que a Igreja e o Espírito Santo dão testemunho. São estas as testemunhas da vida e mensagem de Cristo confirmadas pela Ressurreição. A Igreja real são os homens e mulheres tocados pela Boa Nova do reino e a testemunhá-la. Não é uma realidade estática. Está a renascer todos os dias. Não cabe no meramente institucional. Sem a ação do Espírito, a Igreja não seria mais que estruturas, a Escritura seria letra morta e as celebrações da fé, ritos vazios.

Não houve uma fórmula  concreta através da qual Cristo fundou a Igreja. A raiz histórica da igreja é, no entanto, o acontecimento total do Jesus histórico, sem o qual não teria havido Igreja. Dentro do acontecimento total de Cristo, devemos inserir o Pentecostes como testemunho do Espírito em favor de Cristo Ressuscitado. A Igreja cabe na acontecimento de Cristo enquanto é uma mediação do Reino de deus. Se afastar desta missão, não pode referenciar-se a Cristo nem à Sua mensagem. O fato de, em vida, Cristo não ter pregado a Igreja é a prova de que não quis uma Igreja por si mesma ou preocupada consigo. A sua razão de ser é, um serviço à causa do Reino de Deus. Existe por causa da humanidade e para a humanidade. É neste sentido que vão as imagens do sal, da luz, do fermento a atuar na massa. Quando Mateus põe o Jesus histórico a falar da Igreja está simplesmente a transmitir a sua experiência eclesial. Estas passagens revelam a experiência de uma Igreja já construída.

 

 

3. 3. JESUS E A MENSAGEM DO REINO

 

Jesus  realiza a Sua missão evangelizadora em moldes itinerantes. Pelas diversas partes por onde passa deixa famílias ou círculos de pessoas que se abrem à Boa Nova do Reino e ficam aguardando a intervenção estacológica de Deus. A pregação de Jesus suscita grupos de pessoas motivadas para uma  nova esperança. Estes grupos estão disseminados por toda a Galiléia, pela Judéia e mesmo na Dacápole. Jesus  não pretende dar-lhes qualquer organização especial. Abre-os à esperança e propõe-lhes a vivência do amor como modo de estar preparados. Dentre os aderentes surge um grupo que O segue nas Suas deslocações apostólicas. Não se trata apenas dos dozes. Estes são sobretudo um sinal escatológico do novo Povo de Deus  que acolhe os dons messiânicos. Além dos doze, encontramos José Barsabás e Matias e algumas mulheres. Assim se vai formando o Povo dos que aguardam a plenitude dos dons messiânicos, frutos duma intervenção escatológica de Deus. A prática messiânica de Jesus orienta-se fundamentalmente para a formação deste povo escatológico. A exegese reconhece que no centro da pregação de Jesus está o Reino de Deus e que o Senhor não tem qualquer preocupação com a fundação de uma Igreja no sentido de um grupo separado do judaísmo com estruturas próprias.

A Igreja nasce como acontecimento pascal. É obra do Espírito Santo, o grande dom escatológico que transforma os crentes, ajudando-os a compreenderem o sentido da messianidade de Jesus que corrige a sua visão meramente terrena, apoiada em esperanças de prestígio e poder.

As camadas mais antigas da tradição sinótica apontam para o fato de Jesus estar convencido de que o fim escatológico está para breve. Isto é claro sobretudo nos textos apocalípticos, os quais têm muitas probabilidades de virem do próprio Jesus, uma vez que muitos aspectos não se realizaram literalmente. Jesus têm consciência de que na Sua pessoa começaram os tempos messiânicos. Através d'Ele, Deus  concede os seus dons escatológicos, sobretudo a reconciliação total de Deus com os homens, a qual tem como conseqüência a filiação divina.

A filiação divina é um dom, não uma imposição. Daqui, a necessidade de o homem a aceitar, vivendo a conseqüente fraternidade humana. Do mesmo modo, aceitar o dom do perdão total dos tempos messiânicos pressupõe o perdão aos irmãos. Ao aperceber-se da reconciliação total e gratuita de Deus, o homem deve reconciliar-se com os irmãos, único modo de aceitar reconhececidamente o perdão de Deus. Jesus prepara as pessoas para formarem a família de Deus, que é herdeira, com Cristo, dos dons messiânicos. Deus é o Pai de todos. É no Espírito Santo que Deus gera os Seus filhos.

Os filhos de Deus são igualmente filhos da luz. É o povo da Nova Aliança (Mc. 14, 24). É a família escatológica cujo Pai é Deus. A comunhão de mesa na eucaristia exprime o banquente salvífico do Reino de Deus, que é para os necessitados, os  abandonados, os que sofrem toda a classe de carências.            Para Jesus, a adesão de homens e mulheres à Sua mensagem é a prova de que a Salvação messiânica está a acontecer. São os pobres, os oprimidos e os abandonados os grandes beneficiados. É com estes que Deus quer formar o Povo dos últimos tempos que serão um sinal claro do Seu amor. É o resto fiel, conceito muito significativo nos profetas e na teologia do judaísmo contemporâneo de Jesus. Os fariseus, os essénios e os discípulos de João entendiam-se a si mesmos como este resto que aguardava a chegada de Deus. Jesus ensina aos discípulos a oração da filiação divina, do advento do Reino (c. 11, 2-4; Mt. 6, 9-13). É a família dos irmãos reconciliados que aceita o perdão escatológico: "Porque se perdoardes aos homens as suas ofensas, também o vosso Pai Celeste vos perdoará a vós".

 

 

3. 4. REINO DE DEUS:  UMA UTOPIA CRÍSTICA NA VIVÊNCIA CRISTÃ HODIERNA.

 

Na língua bíblica, reinar é libertar os oprimidos. Reinar não é um "estado", uma "situação", mas é um ato que consiste em mudar as relações (que estão sendo injustas entre seres humanos). Reino de Deus significa que Deus liberta os oprimidos, os pobres, os rejeitados... Voltando a anunciar o Reino de Deus - o que já tinham feito os profetas - Jesus suscita a fé dos pobres e oprimidos, desperta a esperança do povo que já a tinha perdido, cria confiança no futuro e a estima de si próprio.

Por outro lado, Jesus anuncia a presença do Reino de Deus agora. Agora mesmo Deus está agindo, realizando a sua libertação. Jesus mostra os sinais visíveis dessa ação de Deus, e chama colaboradores para - como ele - darem os sinais do Reino: cura dos doentes, expulsão dos demônios, atendimento aos pobres e acolhida oferecida a todos os rejeitados. O convite feito aos discípulos é para que sejam instrumentos do advento do Reino de Deus. Muitos aceitam. Jesus convenceu-os de que é preciso perder a vida para ganhá-la e de que é preciso sacrificar tudo para comprar a pérola preciosa. O advento do Reino de deus inicia vida nova, novo modo de viver e a transformação do mundo.

Jesus anuncia um mundo novo como os profetas. Todavia, diferentemente dos profetas que o antecederam, anuncia a presença atual do Reino de Deus. Seu olhar concentra-se no presente antes que no futuro. Projeta uma utopia. No entanto, essa utopia é diferente da apresentada pela época moderna. "Utopia" quer dizer sem lugar definido. Porém, o anúncio de Jesus tem lugar bem definido: é aqui e agora. O Reino não se situa num lugar indefinido da imaginação. O reino de Deus está aqui agora. Está surgindo, está se realizando. Não está distantes da vida ordinária dos contemporâneos. Está dentro desta vida ordinária.

A utopia de Jesus não é mera imaginação, nem perspectiva, nem projeto. É uma convocação para agir já, agora mesmo. Como utopia, a mensagem de Jesus envolve um anúncio para a humanidade inteira. Jesus está dentro da perspectiva de Israel, povo que se atribui uma missão universal. Porém, o advento do mundo novo realiza-se mediante opções individuais. O Reino de Deus está no agir de seres humanos individuais. Supõe a conversão das pessoas. Cada conversão é um acontecimento significativo. Não há transformação global da sociedade. A transformação consta de milhões de transformações individuais, ainda que articuladas entre elas. Por isso, a utopia de Jesus não se perde no idealismo. Está presente na conversão de inúmeros discípulos. A utopia de Jesus é bastante aberta e permite diversidade de leituras. O próprio novo Testamento oferece um leque bastante amplo de interpretações. Essas interpretações são bastante diferentes entre si, e todas podem invocar títulos de legitimidade.

A intermediação da mensagem de Jesus permitiu - e exigiu - que aparecessem várias figuras históricas. Por si só o Novo Testamento não basta para construir uma vida humana - seja individual, seja comunitária. Os seres humanos precisam de figuras mais concretas, mais determinadas para agir efetivamente. O novo Testamento não nos diz o que devemos fazer hoje em dia, como não disse o que era para ser feito ao longo da história. Daí as diferentes atuações das figuras históricas aparecidas na cristandade. Algumas tiveram mais expansão e mais dinamismo, orientando os cristãos durante séculos em áreas extensas. Outras tiveram existência mais breve, abrangendo área mais limitada. Cada uma nasce a partir de intuições de personalidades mais fortes. Todas estavam ligadas ao mesmo contexto histórico. Todas foram criações humanas, procurando traduzir a utopia do reino de Deus no seu tempo.

As figuras históricas mais importantes no decorrer dos sois primeiros milênios da era cristã foram traduzidas nestes modelos: 1) o modelo apocalíptico da espera da volta iminente de Jesus nas comunidades primitivas; 2) o modelo bizantino ou ortodoxo em geral, nascido da experiência da vida monástica, orientada para a divinização do ser humano desde já na terra a partir da caminhada monástica, paradigma para todo o cristão; 3) o modelo da cristandade ocidental medieval baseado na dualidade entre o poder imperial e o poder do clero; 4) o modelo calvinista nascido da reforma e que vai produzir os Estados Unidos da América; 5) o modelo barroco resultante da união íntima entre a Igreja e as monarquias absolutas; 6) o modelo de restauração formado depois da Revolução francesa em oposição a uma sociedade liberal. Este modelo foi levado para as novas Igrejas na Ásia e na África durante os séculos XIX e XX, assim como o modelo calvinista. Na América Latina esse modelo recebeu o nome de romanização ou neo-romanização

Recentemente surgiu na América Latina o modelo de libertação, formulado por uma teologia original, cujos portadores históricos deveriam ser as comunidades eclesiais de base e os movimentos de libertação. Este modelo está sofrendo o impacto das transformações sociais e culturais que afetam a América Latina. As causas e as modalidades da crise que afeta este modelo são bem conhecidas. A crise já foi analisada e tudo o que se podia dizer já foi dito. Ainda não foi formulado um novo modelo para encarnar a utopia de Jesus no mundo de hoje. O novo modelo está sendo experimentado. Falta-lhe a expressão verbal. Esta não deve demorar muito, mas, por enquanto, ainda não apareceu. No entanto, algumas condições básicas podem ser expressas desde já, porque resultam obviamente da nova situação dos povos latino-americanos.

 

3. 4. 1. ESTRUTURAS MESTRAS DE UM NOVO MODELO: A EMANCIPAÇÃO DAS INSTITUIÇÕES.

 

As novas gerações emancipam-se de todas as instituições, tidas por dominadoras e opressoras: a tradição familiar, a Igreja, a escola, o estado - com seus códigos e leis - e as estruturas tradicionais em todas as áreas. Acham que podem descobrir a vida na satisfação dos desejos, sem restrições nem constrangimentos. Rompem com a chamada "metafísica", isto é, com os princípios absolutos supostamente dominadores e expressão de uma vontade de dominação onipresente contra a qual querem lutar.

Segunda linha de pensamento que se origina em Nietsche, e se prolonga na tradição filosófica ao redor de Heidegger e dos seus epígonos, a ruína da metafísica devia produzir uma geração de "super-homens", seres humanos sem limitações nem constrangimentos, capazes de tudo - já que nada os limita. Na realidade, o que apareceu foi uma geração incapaz de agir, de se definir, de ter projetos, de lutar para realizar projetos. Uma geração apática, fechada em si mesma, sem futuro. Uma geração que não tem interesse para nada, a não ser o momento presente. Continuam sendo batizados. Professam-se católicos, uma vez que para eles, ser católico não representa nenhum compromisso vital.

Esta geração ainda pode ter alguns reflexos cristãos na hora da doença ou do perigo (uma vela diante da imagem do santo, uma promessa feita "na hora do aperto"). Tudo isso vivido com muita superstição. Não é mais expressão de um substrato religioso. São restos em via de decomposição.           Essa postura demonstra carência de fé, de tônus vital e de energia para o agir. Demonstra carência daquela fé que é a força interna, disposição para assumir tarefas e desafios. Em certos casos ainda podem assistir às missas, ser crismados, comungar - porque ainda não houve uma oportunidade para que se tornasse evidente o que já é realidade: debaixo dos gestos religiosos não há mais fé.   Essa situação pode ser encontrada também, às vezes, entre sacerdotes e seminaristas, religiosos e religiosas. Continuam realizando atos religiosos, porém sem vigor, sem fé, sem compromisso real da pessoa. Em situações assim, a fé morreu, ou nunca nasceu.

A fé é dom de Deus. Porém, o dom de Deus passa por mediações humanas. Ora, não se trata da fé nos dogmas cristãos, nem de adesão a uma doutrina, mas da fé como vontade de viver, de ser ativo e de fazer, de realizar obras consistentes no mundo e na sociedade. Esta é a fé que faz falta. Devido à falta dessa fé, as novas gerações se deixam levar pelo movimento da sociedade. Recebem tudo passivamente, conformando-se com o que lhes chega. Falta-lhe energia para qualquer oposição ou contestação. Seria muito cansativo opor-se ao que aí está.

Ora, as estruturas da Igreja católica, mesmo as estruturas das comunidades eclesiais de base, não têm capacidade para transmitir ou fazer surgir a fé. Nem a catequese, nem a preparação para os sacramentos, nem a vida paroquial, nem as comunidades, nem os movimentos conseguem inculcar a fé. Todos eles supõem a fé. Não estão armados para despertá-la.

Hoje em dia, somente os movimentos carismáticos conseguem fazer surgir a fé e transformar a vida dos seus convertidos. Por sinal, o movimento pentecostal é de longe o fenômeno mais importante do século XX, já que se estima que houve entre 300 e 400 milhões de conversões em todos os continentes. A grande maioria diz respeito a Igrejas de ascendência protestante, porém há também movimentos católicos carismáticos com muito dinamismo. Na prática são os únicos que convertem a novas gerações, seja qual for o seu segredo. Isto não quer dizer que outros grupos ou organizações não possam conseguir resultados semelhantes. Porém, esses outros movimentos não aparecem. Esse é o desafio trazido pelo pentecostalismo. Por que muitos grupos e organizações das Igrejas não conseguem transmitir a fé, enquanto os carismáticos conseguem? Aí está o fato. Sem fé o cristianismo nada pode. Teologia, catequese, evangelização, organização eclesiástica, movimentos, pastorais, tudo é inútil se não existe fé. A partir da fé tudo é possível. Nenhuma utopia cristã tem significado se não há pessoas de fé para assumi-la.

 

Nas atuais circunstâncias não podemos esperar que verdadeiras "vocações" surjam por si mesma. Que uma pessoa se sinta chamada a entrar no projeto de Jesus, a imitar a vida de Jesus, isso não vai surgir espontaneamente. Entre as chamadas "vocações" que se apresentam na atualidade, quantas respondem a um apelo evangélico? É freqüente o candidato querer "ser padre", mas sem necessariamente querer uma vida de imitação de Cristo. Quer um ofício, uma situação social garantida na Igreja. E tudo se resume a isso, ainda que logo aprenda que lhe convém usar um vocabulário mais edificante, para responder às expectativas dos formadores.

Não haverá possibilidade de promover nenhum projeto histórico concreto se não houver pessoas que se dediquem gratuita e voluntariamente - e com sacrifício - a essa tarefa. Todavia, é bom lembrar novamente que o mundo não corre nesse sentido. Será preciso despertar vocações de pessoas que queiram romper com o processo vigente, renunciar a uma carreira profissional, deixar de competir no campeonato da modernidade. Aqui também os movimentos de tipo pentecostal conseguem despertar tais vocações. Qual  será o seu projeto? Na atualidade, as orientações  não estão ainda definidas.

A Igreja católica, sobretudo na América Latina, está agora cada vez mais ocupada por movimentos integristas, tais como os "Cavalheiros de Cristo" (México), "Sodalitium" (Peru) e outros. O que fazer para evitar que o conjunto da estrutura caia nas mãos de tais organizações? De que forma desviar as vocações de tais tentações?

 

A característica da Idade Moderna foi a persuasão de que o futuro estava nas mãos dos seres humanos. Alimentou-se a ilusão de que eles podiam construir um futuro, dominá-lo e realizar os próprios projetos abstratos os concretos na história. A lição que nos ficou é de que as coisas não acontecem de acordo com as previsões, e que nenhuma inteligência humana consegue captar o futuro. Consequentemente, não há como elaborar uma figura concreta de vida cristã a priori. O olhar histórico retrospectivo, que nos permite visualizar os diversos modelos de cristandade, não nos dá o aval para criar um novo modelo. Os homens e as mulheres do passado não tinham modelos na mente à medida que iam construindo a sua vida e a vida da Igreja. Muitos queriam outra coisa, mas deu no que deu.

Há 25 anos havia certo modelo de vida comunitária que estava na raiz das comunidades eclesiais de base. Hoje sabemos que a comunidade possível para o início do Terceiro Milênio é algo ainda indefinido - mas bem diferente das expectativas que tínhamos há 25 anos. Naquele tempo tinha-se certa imagem de socialismo. Hoje ninguém mais sabe o que essa palavra significa na prática. A imagem do novo modelo histórico irá aparecendo pouco a pouco. Não adianta querer adivinhar. Resultará dos  experimentos a serem feitos. Mas ainda não sabemos o que fracassará e o que terá êxito. Essa indefinição não é problema para o cristão, pois a utopia de Jesus olha menos para o futuro do que para o presente. O que prepara o futuro é o presente, e não as idéias sobre o futuro. O que cria nova figura histórica são os atos, as obras, as realizações presentes que se entrelaçam e vão construindo conjuntos.


Cf. Jo 13, 11; 15, 4.

Cf. Cân. 204, § 2.

FABRIS, R. Jesus de Nazaré: história e interpretação. São Paulo, Loyola, 1988, pp. 245-246

Cf. Mt 17, 20; Lc 17, 6.

 

FABRIS, R. Jesus de Nazaré: história e interpretação. São Paulo, Loyola, 1988, p. 257

Ibid., pp. 260-261.

Cf. Mt 12, 20; Lc 11, 23; Mt 15, 24; Jo 10, 1-5; 16, 2-30.

Cf. Mc 2, 16; Mt 11, 19; Lc 15, 1.

Cf. Mc 9, 42; Mt 9. 10, 42.

Cf. Lc 10, 42; Mt 11, 25-26

Cf. Mt 25, 40.

Cf. Mc 10, 42-43.

FABRIS, R. Jesus de Nazaré: história e interpretação. São Paulo, Loyola, 1988, p. 258.

 

Ibid., pp. 261-262.

Ibid., p. 262.

4 QpPs, 37, III, 16.

1 Rs 19, 18.

Cf. Is 7, 3; 10,21; 28, 16.

Lc 7, 33,35.

Cf. KÜNG, H. op. cit., p. 107.

 

Cf. At 5, 32.

Ibid., p. 112.

Cf. Jo 15, 26-27.

Cf. Mt 16, 18; 18, 17.

Cf. Mc 5, 19-20.

Cf. At 1, 21-23.

Cf. Lc 8, 1-3; Mc 15, 40-41.

Cf. Mc. 10, 35-45.

Cf. Mt 5, 9; 5, 45; Lc 6, 35; 20,36.

Cf. Lc 17, 4; Mt 18, 22.

Cf. Mt 18, 22; Lc 17, 4.

Cf. Rm 8, 16-17; Gl 4, 5-7

Cf. Mt 11, 25; Lc 10, 22; Mc 13, 32.

Cf. Jo 3, 3; 3, 9; 5, 4; 2, 16

Cf. Lc. 16, 18; Jo.12, 36

Cf. Mt 25, 40.

Lc 4, 18-21

Mt. 6, 14.