O tema do Reino de Deus é central na teologia e de modo especial na teologia latino-americana. E temos grandes nomes Libânio, Ellacuría, Jon Sobrinho e outros, pois é o Reino de Deus no Já, numa constante esperançosa do ainda não.

Em Canaã aceitar Yahweh como rei de Israel significava repudiar os reis que estavam explorando as aldeias produtivas e rejeitar a superestrutura religiosa que davam a estes reis legitimidade. Aos camponese rebeldes de Israel Deus se havia revelado no Egito como libertador e, por isso, eles achavam impossível adorar Yahweh e ao mesmo tempo aceitar reis que os estavam explorando e escravizando. Inspirados por esse Yahweh, camponeses cananeus insurgiram-se e formaram aliança tribais para enfrentar seus exploradores. Entretanto, tal projeto foi internamente subvertido quando Davi de Judá, em nome de Yahweh, fundou uma dinastia mais forte e mais poderosa do que aquelas que as tribos de Israel rejeitaram, nessa nova ordem, o reino de Yahweh passou a ser um apoio ideológico para a exploração dos trabalhadores.

No século I, da Era Cristã, sob impacto da opressão romana, o reino de Deus mais uma vez se transformou numa inspiraçã para revoltas e promessa de libertação. Jesus anunciou e pregou que o Reino já está aí, que o Reino vem, que o Reino se faz, que a Igreja é um sinal do Reino, contudo o Reino é uma Utopia ou um profetismo que deve ser levado até o fim. A resposta é dupla! Há, na realidade, estas duas vertentes que levam o tema do Reino de Deus se tornar radicalmente irrelevante no contexto atual. Seria o anti-Reino?

Não é que os "reinos deste mundo" sejam todos corruptos e injustos, abusivos e condenáveis. Muitos o são com toda evidência... Mas, mesmo aqueles que surgem dentro da legalidade, ou que se formam democraticamente e por "eleições diretas", nunca conseguem subtrair-se totalmente ao sopro da  corrupção e do suborno; aos abusos do autoritarismo e à tentação da injustiça; à lógica da violência e da exploração...

O Reino de Cristo, porém, é outra coisa. Ele não tem parentesco ou afinidade com nenhum deles; nem faz questão de buscar segurança e respaldo nas armas deles... O Reino de Cristo não conhece confins. Não arregimenta os povos para transformá-los em escravos ou em mecanismos de produção; mas se coloca a serviço de todos eles. Visa à unidade de todos, não permitindo separações e inimizades. Tem em vista a igualdade entre todos, não tolerando a vergonha das sociedades classistas e racistas. Zela pela promoção de todos, não reconhecendo privilégios e distinções... Em termos abstratos e gerais, o reino de Deus, significa na Sagrada Escritura uma sociedade de justiça, igualdade e abundância. Em termos concretos, esse reino orienta projetos históricos diferentes sob diferentes circunstâncias. Em dois momentos básicos, o reino significou libertação, luta contra os sistemas classistas que exploravam sistematicamente os trabalhadores de Israel.

As leis, do Reino de Deus é que estão a serviço do homem, não o homem a serviço das leis. Ele se rege sobre o amor gratuito, não sobre interesses escusos. Proclama o perdão, não o "olho por olho"; promove a mansidão e a misericórdia, não a violência. Cultiva a justiça e o direito, não a arbitrariedade. Derruba poderosos de seus tronos e exalta humildes. Deixa ricos egoístas de mãos vazias e cumula de bens os pobres sem amparo. Implanta nos corações a esperança do além, não os deixando se apegarem a esperança sem futuro. Promete e garante a ressurreição para a vida eterna, não permitindo que a história do homem tenha sua conclusão num cemitério... Mas os "reinos deste mundo" não precisam ficar com medo; Cristo, o Rei, não está contra eles, mas com eles, porque também lhe pertencem; e quer conduzi-los pelo caminho da justiça e da paz. Nem pretende destruí-los, mas transformá-los, até se tornarem imagem, ainda que imperfeita, do Reino do Céu.

Em suma, somente a experiência dirá se o reino bíblico de Deus pode verdadeiramente ser Boa Nova para os pobres, para os trabalhadores explorados da América latina. Parece haver aí elementos positivos, mas somente sua encarnação em estratégia efetivas de libertação irá confirmar que não se trata de uma questão de ilusões, de pedras quando o povo pede pão. A libertação dos povos da América Latina e do Caribe. A libertação deste povo se nos impõe hoje, e, para os que crêem no reino de Deus, temos um aliado divino em nossa luta. A história deverá dizer se nossa fé está bem situada. Só a experiência há de comprová-lo ...

 

 

 

 

 

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