Ao empregarmos a locução "palavra de Deus", todo o mundo pensa logo na bíblia. No entanto, em primeiro lugar, a palavra de Deus é a "tradição". A propósito, a bíblia é a "tradição escrita", enquanto a tradição propriamente dita é a "palavra de Deus vivida". Sem a tradição, a bíblia perde totalmente a legitimidade e a credibilidade. Por isso, com o Catecismo da Igreja Católica, devemos repetir que "o cristianismo não é uma religião do livro" (n. 108), como o judaísmo, o islamismo ou mesmo o protestantismo, crenças estribadas exclusivamente em documentos escritos.
Tanto a tradição sagrada quanto a bíblia sagrada são inspiradas por Deus. Com efeito, Jesus jamais determinou a seus apóstolos que escrevessem nada. Apenas, mandou-os pregar a boa nova e administrar os sacramentos. A Igreja católica já existia há 50 anos, quando surgiu o primeiro texto sagrado do novo testamento: a Primeira Carta de São Paulo aos Tessalonicenses.
Salvo melhor juízo dos liturgistas, sou da opinião de que nas missas em que se faz a "entronização da palavra de Deus", com a bíblia carregada através do corredor central até o altar, leve-se igualmente um exemplar do Catecismo da Igreja Católica, representando a sagrada tradição. Este gesto, se precedido de uma adequada catequese por parte do presidente da celebração, ensejará na assembleia um correto entendimento do termo "palavra de Deus", que não se restringe à bíblia. Enfatize-se, contudo, a diferença infinita entre a bíblia, de natureza sobrenatural, e o catecismo, de natureza humano-eclesiástica.
É bom esclarecer que a tradição e a bíblia constituem modos distintos da mesma fonte da revelação de Deus, consoante frisou o Concílio Vaticano II (Constituição dogmática Dei Verbum, n. 9). De qualquer maneira, a bíblia é corretamente interpretada apenas pelo magistério eclesiástico. Sem a tradição e sem a Igreja católica, a bíblia transforma-se num simples livro de belas histórias edificantes e aterrorizantes, porque a alma da bíblia encontra-se na sagrada tradição.
O povo de Deus deve realmente ler a bíblia com frequência, mas para fazê-lo de fato e com proveito espiritual, é mister ter em mãos uma edição da bíblia aprovada pela Igreja católica e, de preferência, com notas explicativas (cf. cânon 825). Até o século XVI, antes da invenção da imprensa, o povo de Deus lia (ouvia) a bíblia nas missas, através das três leituras. Ao longo de 1.600 anos as sagradas escrituras foram conservadas pelos copistas (monges) católicos! A partir do século XVI, com o advento da imprensa, a bíblia tornou-se acessível a todos os crentes, porém tem de ser lida em estrita sintonia com a Igreja católica.
Por fim, à luz do cânon 760, compreendamos que o ministério da palavra de Deus, exercido pelos clérigos, há de se basear na sagrada escritura, na sagrada tradição, na liturgia, no magistério e na vida da Igreja.

Edson Luiz Sampel
Doutor em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade Lateranense, do Vaticano.
Professor da Escola Dominicana de Teologia (EDT).