Questões:

 

1) Segundo a Exortação Apostólica pós-sinodal Vita Consecrata, como você compreende os deveres dos religiosos?

 

Ainda que uma Exortação pós-sinodal não tenha um escopo normativo ou canônico em si, poder-se-á dar que o texto contenha algumas sugestões e algumas alusões neste sentido. Vale ainda a pena precisar que toda norma pretende garantir a fidelidade ao Espírito inspirador da vida consagrada e isso é permanente. As normas servem para encarnar-nos melhor e para fazer-nos entender melhor e não para fazer-nos mais estranhos e estranhos nem para separar-nos mais do mundo e dos irmãos.

 

Para cada consagrado há a resposta a um especial chamado de Deus: ela deve ter a característica da ‘totalidade[1], tal ligação íntima é a ‘consagração’, a ‘nova e especial consagração[2].

 

O Papa nos fala que a opção pela vida consagrada não conseqüência necessária da consagração batismal ou da crisma, mas tem nesses dois sacramentos as sas raízes, pois é dom especial do Espírito Santo, indo além das exigências normais, abrindo possibilidades de santidade e missão[3].

 

Dever ou meta imediata é a ‘conformação a Cristo’, ‘adesão conformativa’ de toda a existência a Cristo’[4]. O dever fundamental do viver os conselhos evangélicos é ‘cristificar’ a existência do chamado[5].

 

A dimensão eclesial também é salientada como dever da vida consagrada, dos religiosos, como sinal da koinonia trinitária concedida à Igreja e do compromisso sempre urgente de se viver a comunhão eclesial[6] de forma autêntica e profética. É um dever que, no fundo cabe a toda a Igreja, mas que é atribuído à vida dos religiosos como um dever de ponta, um ‘sinal’ que deve apresentar: ‘sinal eloqüente da comunhão eclesial’[7], um ‘fermento de comunhão missionária na Igreja universal’[8].

 

Outros deveres destacados de forma simbólica (com a cena da transfiguração[9]) que configurar a identidade da vida consagrada: ‘sobem ao monte’ para ter uma experiência de transformação da própria vida[10] e o ‘descem’ para transfigurar o mundo ‘lavando os pés’ da humanidade desfigurada, ou seja, ser íntimo com Deus (ter uma mística e uma ascese) e testemunhar[11] por meio da missão a consagração[12], testemunho de Cristo e em nome de Cristo, inspirado na ad gentes e englobando vários campos de trabalho.[13]

 

2) Quais foram as principais exortações feitas aos religiosos pelo documento?

 

O documento aborda diretamente a vida e ação dos Institutos de Vida Consagrada, inclusive os Institutos Religiosos de votos públicos e vida comum como os Institutos Seculares de vida de perfeição no mundo, fazendo breve menção das Sociedades de Vida Apostólica, bem como as novas formas evangélicas de vida matrimonial, que propriamente não se inscrevem na categoria da vida consagrada.

 

Segue o documento três dimensões fundamentais da vida consagrada, aludindo-se à Trindade (é uma confissão, consagração), à Igreja (realiza a comunhão) e ao mundo (desempenha um serviço de caridade). Por isso a vida consagrada constitui-se em confissão/consagração, comunhão e serviço.

 

A confissão trinitária marca fundamentalmente o texto. Na realidade, o religioso se consagra à trindade e por ela é consagrado e aqui possui uma originalidade na forma de viver algo que é de todo cristão, pois se vive por meio dos conselhos evangélicos, antecipando a realização escatológica da Igreja inteira. Desta Trindade Uma se entende a pluralidade das formas da vida consagrada, o documento frisa o elemento universal, comum, igual da vida consagrada que suas diferenças e por isso ela é sinal de fraternidade, serviço e caridade.

 

Seguir Cristo radicalmente é visto em muitas vezes, mas a marca dominante é a consagração da criatura ao Criador: a resposta do religioso e o dom do chamado de Deus.

 

A exortação tem estilo homilético à moda dos padres orientais e o pano de fundo inspirador da vida consagrada[14] é a vida contemplativa monástica proporcionando sempre uma releitura conforme a forma religiosa e vocação.

 

Tem-se destaque o papel da mulher consagrada, abrindo para elas espaços de participação nos diversos setores e a todos os níveis, principalmente nos processos decisórios. Daí surge também um aprofundar da reflexão no modelo antropológico feminino de vida consagrada.

 

Acentua-se a figura do irmão religioso (Institutos laicais) e se propõe a mudança de nome para Institutos religiosos de irmãos; nos institutos clericais a presença dos irmãos é uma participação diferenciada na missão do instituto colaborando no ministério sacerdotal.

 

Há ainda a exortação da questão da opção pelos pobres[15], seja como exigência, seja como compromisso com a causa dos pobres promovendo a justiça. E daí segue-se uma breve mas significativa referência à perseguição até o martírio de religiosos que atuaram em favor dos pobres e a importância de cultuar-lhes a memória.

 

Exorta ainda de maneira positiva da comunhão intercongregacional e dos organismos nacionais de coordenação de vida religiosa[16], cultiva-se a comunhão dos diversos órgãos colegiados da vida consagrada com os demais organismos da Igreja.  Na relação da vida consagrada com o magistério, com a obediência e da comunhão subordinada aos Pastores, há momentos em que se pede aos Bispos valorizarem, respeitarem a autonomia da vida consagrada.

 

Por fim, há uma atualidade à necessidade ao religioso do espírito ecumênico, do diálogo inter-religioso e da abertura-diálogo com as novas formas de expressão religiosa, que afetam o homem da cidade secular.

 

3) Qual foi o objetivo do Papa João Paulo II ao escrever a Exortação Apostólica Vita Consecrata?

 

  1. n. 13 da própria Exortação, Sua santidade deixa claro a finalidade da mesma, isto é, o Romano Pontífice recolhe os frutos do Sínodo e reconhece, cheio de gratidão, a abundância de formas históricas da vida consagrada e o surgir de novas. Deseja animar os religiosos em sua vocação, espera que eles acolham esta exortação e aprofundem pela reflexão o grande dom da vida consagrada, mostrando que mesmo com dificuldades, não se pode desanimar, pois somos animados pelo próprio Espírito de Deus, ‘que não cessa de velar com os seus dons de verdade e de amor.

 

Vale a pena notar que se acentua a dimensão do seguimento e do carisma e se faz uma ligeira referência às “tensões e dificuldades” destes anos, sem carregar de pessimismo a descrição. Percebe-se uma vontade de não colocar um ponto final no assunto, mas, antes, de estimular a reflexão sobre a identidade e a missão da vida consagrada em relação aos grandes desafios emergentes. Enfim, poderíamos dizer, que o Papa espera uma adesão cordial à exortação e seus conselhos, convencido de que a apropriação do documento deve dar-se no contexto cultural próprio, sob a luz da história vivida ao longo dos anos e segundo os diferentes carismas fundacionais e as diferentes tradições.

 

4) Fazer um comentário sobre o capítulo I da Exortação Apostólica Vita Consecrata, nos números 35-40[17], onde Papa João Paulo II apresenta a pessoa do Espírito Santo como protagonista da Vida Consagrada.

 

Trata-se de uma parte mais teológica, onde o Romano Pontífice salienta a identidade específica da vida consagrada, a nova e especial consagração. A vida consagrada é convocada, antes de qualquer coisa, a uma profunda exigência de conversão e de santidade. E por isso mesmo, a vida consagrada quer ser caminho privilegiado à santidade. Tal escopo se concretiza pela fidelidade criativa e sempre renovada ao carisma da fundação buscando sempre à vontade do Pai, na comunhão de vida com o Filho e sob a inspiração e orientação do Espírito, que é a ‘condição de possibilidade’. A vocação à santidade implica o cultivo do silêncio e a redescoberta dos meios ascéticos, ou seja, a pessoa tem que querer cultivar a santidade, afinal ninguém é santo pela própria vontade, mas ninguém pode ser santo sem que tenha vontade. Enfim, a compreensibilidade do ser consagrado se dá no tema da santidade, apresentada como existência ‘transfigurada’ ou ‘tocada pela mão de Cristo’, apesar das tentações e pela insídia diabólica[18]. A santidade é fidelidade que se eleva verticalmente às Santíssimas Pessoas da Trindade e se estende horizontalmente à observância da própria Regra e das Constituições e que se fortalece com a vivência do êxodo, com o combate espiritual e com o ‘sustentar a tensão que todo cristão deve ter com relação à perfeição’.

 


 

[1] Expressão que ocorre com certa freqüência.

 

[2] JOÃO PAULO II. Exortação Apostólica pós-sinodal Vita Consecrata2ª ed. São Paulo, Paulinas, coleção nº 147, 1998,nn. 30,31d.

 

[3] Cf. Id. Ibidem., nn. 30-32. Missionariedade é um dever do consagrado bem como compromisso da santidade.

 

[4] Cf. Id. Ib., n. 16. Expressão mais vezes repetida noutros parágrafos, 18, 19, 72.

 

[5] Cf. VC, n. 104.

 

[6] Os religiosos devem revelar o  sentire cum Ecclesia, VC n 46.imitando o amor e docilidade à Igreja vividos pelos Fundadores.

 

[7] Cf. VC, n. 42, 6.

 

[8] Cf. VC, n. 47.

 

[9] Cf. VC, n. 14c.

 

[10] Cf. VC, n. 75c.

 

[11] Cf. VC, n. 60.

 

[12] Cf. VC, n. 76. Testemunho dos consagrados e sua ‘específica contribuição’ na entrega e imitação de Cristo.

 

[13] Cf. VC, nn. 77-78. Testemunhar nos vários campos, seja na inculturação, 79; nova evangelização, 82; cuidado pelos doentes, 83; trabalho educacional, 96-97; promoção da cultura, 98; comunicação social, 99; diálogo ecumênico, 100-101 e diálogo inter-religioso, 102.

 

[14] Há novas expressões da vida consagrada. Ver VC, nn. 12, 62.

 

[15] Cf. VC, nn. 82, 89-90.

 

[16] Conferências de Religiosos, cf. VC, n. 52 e 53.

 

[17] O Título já é uma síntese por si mesmo: IV Guiados pelo Espírito de Santidade. Existência transfigurada: a vocação à santidade, 35; Fidelidade ao carisma, 36; Fidelidade criativa, 37; Oração e ascese: o combate espiritual, 38; Promover a santidade, 39; Levantai-vos e não tenhais medo: uma renovada confiança, 40.

 

[18] No n. 38c do VC fala sobre a insídia diabólica que se apresenta sob a aparência de bem: o querer estar na moda, o senso de superioridade, o mito da eficiência, o estilo mundano, o nacionalismo.