O Papa Francisco publicou neste dia 4 de outubro, memória de São Francisco de Assis, neste ano celebrando o 27º domingo do tempo comum, uma nova Encíclica social sobre a fraternidade e a amizade social. Ele a assinou neste sábado, DIA 3, na Basílica inferior de São Francisco em Assis. Ela se inicia com as palavras do pobrezinho de Assis, em italiano: “Fratelli tutti” (Admoestações, 6, 1): “Todos irmãos”, em português.

Logo no início, como ocorre em todas as encíclicas, o Papa lhe dá o título e expõe sinteticamente o seu grande objetivo: “FRATELLI TUTTI”: escrevia São Francisco de Assis, dirigindo-se a seus irmãos e irmãs para lhes propor uma forma de vida com sabor do Evangelho. Destes conselhos, quero destacar o convite a um amor que ultrapassa as barreiras da geografia e do espaço; nele declara feliz quem ama o outro, ‘o seu irmão, tanto quando está longe, como quando está junto de si’ (Admoestações, 25: o. c., 175). Com poucas e simples palavras, explicou o essencial duma fraternidade aberta, que permite reconhecer, valorizar e amar a todas as pessoas independentemente da sua proximidade física, do ponto da terra onde cada uma nasceu ou habita” (n. 1).

         O desejo do Santo Padre não é senão o de fazer renascer, entre todos, um anseio mundial de fraternidade (cf. n. 8). Embora não pretenda resumir de modo total a doutrina sobre o amor fraterno, quer deter-se na sua dimensão universal, na sua abertura a todos; por isso, é dirigida a todas as pessoas de boa vontade (cf. n. 6).

Confessa o Papa que o estímulo para escrever a “Fratelli tutti” nasceu de um muçulmano. São palavras do Sumo Pontífice: “Senti-me especialmente estimulado pelo Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb, com quem me encontrei, em Abu Dhabi, para lembrar que Deus ‘criou todos os seres humanos iguais nos direitos, nos deveres e na dignidade, e os chamou a conviver entre si como irmãos’ (Francisco – Ahmad Al-Tayyeb, Documento sobre a fraternidade humana em prol da paz mundial e da convivência comum (Abu Dhabi 4 de fevereiro de 2019): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 05/II/2019), 21). Não se tratou de mero ato diplomático, mas duma reflexão feita em diálogo e dum compromisso conjunto. Esta encíclica reúne e desenvolve grandes temas expostos naquele documento que assinamos juntos. E aqui, na minha linguagem própria, acolhi também numerosas cartas e documentos com reflexões que recebi de tantas pessoas e grupos de todo o mundo” (n. 5).

         E por que, depois da Laudato Si, inspirada em São Francisco de Assis, o Santo Padre se volta novamente para ele ao tratar da fraternidade e da amizade social, tema tão central ao Cristianismo? – Uma vez mais, o próprio Papa explica que foi por ver na vida do Santo de Assis um fato que dá a cada ser humano exemplo grandioso. Ei-lo: “Na sua vida, há um episódio que nos mostra o seu coração sem fronteiras, capaz de superar as distâncias de proveniência, nacionalidade, cor ou religião: é a sua visita ao Sultão Malik-al-Kamil, no Egito. A mesma exigiu dele um grande esforço, devido à sua pobreza, aos poucos recursos que possuía, à distância e às diferenças de língua, cultura e religião. Aquela viagem, num momento histórico marcado pelas Cruzadas, demonstrava ainda mais a grandeza do amor que queria viver, desejoso de abraçar a todos. A fidelidade ao seu Senhor era proporcional ao amor que nutria pelos irmãos e irmãs. Sem ignorar as dificuldades e perigos, São Francisco foi ao encontro do Sultão com a mesma atitude que pedia aos seus discípulos: sem negar a própria identidade, quando estiverdes ‘entre sarracenos e outros infiéis (…), não façais litígios nem contendas, mas sede submissos a toda a criatura humana por amor de Deus’ (São Francisco de Assis, Regra não bulada dos Frades Menores, 16, 3.6: Fonti francescane, 42-43). No contexto de então, era um pedido extraordinário. É impressionante que, há oitocentos anos, Francisco recomende evitar toda a forma de agressão ou contenda e também viver uma ‘submissão’ humilde e fraterna, mesmo com quem não partilhasse a sua fé” (n. 3).

         Antes de prosseguir na leitura e no compartilhamento de trechos da encíclica em foco, desejo lembrar um ponto essencial que – de modo explícito ou implícito – se acha presente no documento pontifício. Trata-se do fato de que, segundo a natureza, todos somos filhos de Deus; há uma pertença de cada um dos seres humanos à fraternidade universal. Realçar isso numa encíclica já era – segundo fontes fidedignas – desejo do Papa Pio XI, pois essa doutrina – como hoje – se fazia importante no período imediatamente anterior à Segunda Guerra Mundial (1939-1945) no qual ideologias anticristãs – nazismo, fascismo e comunismo – se arvoravam como falsas soluções aos problemas humanos. Vejamos esse ponto que, por certo, muito ajudará cada um(a) a melhor entender o substrato teológico da abarcativa e oportuna “Fratelli tutti”.

         A Teologia reconhece que, além da filiação divina sobrenatural – dada a cada um de nós pelo Batismo, que nos possibilita, de modo pleno, o consórcio com Deus já aqui na terra e, depois, na eternidade feliz – há a filiação natural que nos faz todos irmãos, pois filhos do mesmo Pai. Duas citações vêm a propósito. A primeira é de Dom Estêvão Bettencourt, OSB, afamado teólogo brasileiro, a afirmar o seguinte: “Todo ser humano, pelo fato de ter sido criado à imagem e semelhança de Deus, é filho de Deus. Os vestígios desta filiação se encontram na realidade mesma do ser humano: em todos existe a sede do Infinito ou do Absoluto (muitas vezes mal entendido), todo homem pode reconhecer Deus como o Autor deste mundo e Pai da sua vida. Com outras palavras: todo homem aspira a algo de melhor do que aquilo que ele tem… aspira ao Bem que não se acaba, embora nem sempre saiba como atingir este Bem. Tais são as marcas do Criador ou de Deus, que se imprimem em toda criatura feita à imagem do Pai celeste”.

“Mais ainda: todo homem tem em si a capacidade de cultivar as quatro virtudes cardeais, que ajudam a atingir o Fim Supremo ou a caminhar corretamente neste mundo: – a prudência, que sabe escolher os meios que levam ao fim e sabe evitar os obstáculos que a ele se oponham; – a justiça, que procura dar a cada um o que lhe compete; – a fortaleza, que robustece a vontade para que enfrente e supere os desafios da vida cotidiana; – a temperança, que modera os apetites da pessoa e a torna equilibrada entre os atrativos da vida presente. O homem que assim vive pode chegar a um certo grau da perfeição, fazendo muitos esforços para tanto. Era essa perfeição meramente humana que os filósofos estoicos gregos e romanos desejavam alcançar mediante a prática da apatia (isenção de paixões), prática esta que os próprios estoicos julgavam muito difícil de ser sustentada. Todavia é de notar que, mesmo antes de Cristo, podiam alcançar a salvação os homens e as mulheres que não conheciam o verdadeiro Deus sem culpa própria, mas viviam corretamente, seguindo os ditames de sua consciência cândida e sincera, julgando, com certeza subjetiva, que o erro era a verdade” (Pergunte e Responderemos n. 547, janeiro de 2008, p. 10-11).

Também Dom Amaury Castanho, 3º. Bispo Diocesano de Jundiaí- SP, já falecido, oferece-nos importante reflexão ao escrever, à luz de Gênesis 1-2, que “todos os homens pertencendo à mesma espécie humana e descendendo de um só casal, segue-se, por natural consequência, que todos somos fundamentalmente iguais e irmãos entre nós. Nada, portanto, justifica o racismo ou qualquer tipo de discriminação entre os homens. As diferenças são acidentais, secundárias, devendo ser superadas pela solidariedade e fraternidade universais. Entre indivíduos e povos somente deveria haver diálogo e entreajuda, jamais ódios e guerras, jogando-se irmãos contra irmãos. Isso não está no plano de Deus. A fraternidade deve traduzir-se em gestos cotidianos de serviços e delicadezas” (Iniciação à leitura da Bíblia. 5ª ed. Aparecida: Santuário, 2007, p. 45). Perguntaria, talvez, alguém aqui: aquele bispo teria intuído, naquele tempo, o que o Papa Francisco escreveria agora? Afinal, na transcrição que fiz, Dom Amaury parece, a seu modo, sintetizar a “Fratelli tutti”… Não é nada disso. Propus esta citação para deixar muito claro aos leitores que o tema abordado hoje pelo Santo Padre é, em sua essência, pertencente ao patrimônio da nossa fé católica.

Sim, foi publicado, em 1995, o livro L’Encyclique cachee de Pie XI (A encíclica oculta de Pio XI. Editions La Découverte. Paris 1995. p. 320 pp.), da autoria de Bernard Suchechky, historiador judeu, e do Pe. Georges Passelecq, beneditino belga que trabalhou na Resistencia ao nacional-socialismo e foi Vice-presidente da Comissão Nacional Belga para as Relações com Povo Judeu. Eles apresentam, no referido livro, o texto de um esboço de encíclica de Pio XI sobre antissemitismo, esboço que nunca foi ulteriormente elaborado e, por isto, também não publicado. Tal encíclica devia começar pelas palavras Humani Generis Unitas (A Unidade do Gênero Humano). Contudo, aquele Pontífice faleceu na noite de 9 para 10 de fevereiro de 1939, deixando-nos apenas o esquema do documento.

Como quer que seja, os dois renomados historiadores, afirmam que “a intenção dominante do texto era colocar as bases filosóficas, científicas e teológicas da unidade do gênero humano; todos os homens têm a mesma origem; por conseguinte, são iguais entre si; daí serem perversas as discriminações de ordem racial, religiosa, econômica, etc. […]. O racismo é condenado como contrário à unidade do gênero humano e como avesso à liberdade e à dignidade da pessoa humana”. Além da forte defesa dos judeus perseguidos pelo nazismo, o esboço do documento se volta para outros pontos fundamentais: Unidade da estirpe humana: “A unidade do gênero humano pousa, em primeiro lugar, sobre um fundamento que é a natureza humana comum a todos” (n. 72). Mistério do Sangue: “O sangue e o parentesco de sangue fundamentam a realidade da comunidade dos homens… ligam todos os homens entre si por aquilo que eles têm de mais profundo, a saber: as suas relações com Deus” (n. 75). Racismo: “A teoria e a prática do racismo, distinguindo raças superiores e inferiores, ignoram o vínculo da unidade, cuja existência está demonstrada” (n. 112). O Papa Pio XII usou fragmentos desse rascunho de seu antecessor, principalmente os concernentes à unidade do gênero humano, em sua encíclica inaugural do pontificado, a Summi Pontificatus, de 20/10/1939 (cf. Pergunte e Responderemos n. 407, abril de 1996, p. 159-163).

Que assentimento o fiel católico é chamado a dar a essa importante encíclica? – Aquele que nos recomenda a Mãe Igreja na Lumen Gentium: a religiosa submissão da vontade e do entendimento no que ela traz do magistério autêntico (fé e moral). Diz textualmente o documento conciliar citado: “Esta religiosa submissão da vontade e do entendimento é por especial razão devida ao magistério autêntico do Romano Pontífice, mesmo quando não fala ex cathedra; de maneira que o seu supremo magistério seja reverentemente reconhecido, se preste sincera adesão aos ensinamentos que dele emanam, segundo o seu sentir e vontade; estes manifestam-se sobretudo quer pela índole dos documentos, quer pelas frequentes repetições da mesma doutrina, quer pelo modo de falar” (LG, 25).

Dito isso, a título de oportuno pano de fundo da encíclica “Fratelli tutti”, será muito importante o aprofundamento dos temas que o Papa Francisco desenvolve e atualiza com relação às questões sociais em seus longos capítulos. Que isso estimule a leitura integral e a reflexão profícua deste novo documento que vem integrar a rica Doutrina Social da Igreja.

 

A nova encíclica social “Fratelli tutti” (II) 

         A nova encíclica sobre a fraternidade e a amizade social, do Papa Francisco – que se inicia com as palavras de São Francisco de Assis: “Fratelli tutti”, em italiano, “Todos irmãos”, em português – foi publicada neste domingo: são oito densos capítulos.

         No capítulo I, intitulado “As sombras de um mundo fechado” (n. 9-55), o Santo Padre expõe, sem pretender ser exaustivo, algumas tendências do mundo atual que atrapalham ou mesmo impedem a fraternidade universal. Eis suas palavras: “Sem pretender efetuar uma análise exaustiva nem tomar em consideração todos os aspetos da realidade que vivemos, proponho apenas manter-nos atentos a algumas tendências do mundo atual que dificultam o desenvolvimento da fraternidade universal” (n. 9). E quais são essas sombras?

         São muitas: as regressões na história que reacendem conflitos anacrônicos que se consideravam superados, ressurgem nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos, ideologias egoístas, nacionalistas e fechadas ao próximo (cf. n. 11 e 37); o mundo globalizado que se desinteressa pelo bem comum e, por isso, em vez de aproximar, afasta as pessoas. “O avanço deste globalismo favorece normalmente a identidade dos mais fortes que se protegem a si mesmos, mas procura dissolver as identidades das regiões mais frágeis e pobres, tornando-as mais vulneráveis e dependentes. Desta forma, a política torna-se cada vez mais frágil perante os poderes econômicos transnacionais que aplicam o lema ‘divide e reinarás’” (n. 12); parece reinar um “‘desconstrucionismo’, em que a liberdade humana pretende construir tudo a partir do zero. De pé, deixa apenas a necessidade de consumir sem limites e a acentuação de muitas formas de individualismo sem conteúdo […]. Para isso, precisam de jovens que desprezem a história, rejeitem a riqueza espiritual e humana que se foi transmitindo através das gerações, ignorem tudo quanto os precedeu” (n. 13); perde-se, assim, a identidade espiritual e social com seus grandes conceitos norteadores; semeia-se o desânimo e a polarização, especialmente no campo político. Nesse contexto, “a política deixou de ser um debate saudável sobre projetos a longo prazo para o desenvolvimento de todos e o bem comum, limitando-se a receitas efêmeras de marketing cujo recurso mais eficaz está na destruição do outro” (n. 15). Também os defensores do meio ambiente ou da “casa comum” são ridicularizados (cf. n. 17).

         Ainda: a “cultura do descarte” é denunciada com ênfase: “no fundo, as pessoas já não são vistas como um valor primário a respeitar e tutelar, especialmente se são pobres ou deficientes, se ‘ainda não servem’ (como os nascituros) ou ‘já não servem’ (como os idosos). Tornamo-nos insensíveis a qualquer forma de desperdício, a começar pelo alimentar, que aparece entre os mais deploráveis. A falta de filhos, que provoca um envelhecimento da população, juntamente com o abandono dos idosos numa dolorosa solidão, exprimem implicitamente que tudo acaba conosco, que só contam os nossos interesses individuais” (n. 18-19). Não deixa o Papa de lembrar ainda os baixos salários a prejudicar os mais vulneráveis que por vezes prescindem do necessário para viver (cf. n. 20-21); os direitos humanos não são iguais para todos, as mulheres sofrem preconceitos e uma nova forma de escravidão atinge a não poucas pessoas em várias partes do mundo. Usam-se para se seduzir mulheres e crianças as redes sociais e desse tráfico de pessoas surgem gravidezes e, por conseguinte, abortos (cf. n. 23-24).

         Temos ainda as guerras, os atentados, as perseguições por motivos raciais ou religiosos e tantas afrontas contra a dignidade humana; o etnocentrismo, ou seja, tudo o que vem do outro ou de um grupo diferente do meu é suspeito ou não aproveitável (cf. n. 25-27); nesse cenário, surge o crime organizado ou as máfias. São palavras do Papa: “A solidão, os medos e a insegurança de tantas pessoas que se sentem abandonadas pelo sistema, fazem com que se crie um terreno fértil para as máfias. Com efeito, estas impõem-se apresentando-se como ‘protetoras’ dos esquecidos, muitas vezes através de vários tipos de ajuda, enquanto perseguem os seus interesses criminosos” (n. 28 e 38).

         Há ainda uma obsessão pelo próprio bem-estar que os demais são esquecidos; apareceu também a Covid-19 que poderá ajudar a humanidade a repensar o seu futuro e trocar o exagero do “eu” pela grandeza do “nós” (cf. n. 31-35); no campo virtual, tem-se um paradoxo: as pessoas podem perder sua intimidade expondo-se, mas também há o isolamento de quem troca o virtual pelo real e é nas redes sociais que, quase sempre, surgem ofensas contra o próximo. É preciso romper essas barreiras e encontrar-se, de fato, com o outro na sadia convivência (cf. n. 42-50). O Santo Padre conclui o capítulo com uma mensagem alentadora: “Convido à esperança que ‘nos fala duma realidade que está enraizada no mais fundo do ser humano, independentemente das circunstâncias concretas e dos condicionamentos históricos em que vive. Fala-nos duma sede, duma aspiração, dum anseio de plenitude, de vida bem-sucedida, de querer agarrar o que é grande, o que enche o coração e eleva o espírito para coisas grandes, como a verdade, a bondade e a beleza, a justiça e o amor. (…) A esperança é ousada, sabe olhar para além das comodidades pessoais, das pequenas seguranças e compensações que reduzem o horizonte, para se abrir aos grandes ideais que tornam a vida mais bela e digna’ (Discurso no encontro com os jovens do Centro Cultural Padre Félix Varela (Havana – Cuba 20 de setembro de 2015): L´Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 24/IX/2015), 9.). Caminhemos na esperança!” (n. 55).

         No capítulo II, intitulado “Um estranho no caminho” (n. 56-86), o Papa Francisco deixa – como ele mesmo afirma – as respostas às questões levantadas no capítulo I para refletir sobre a conhecida parábola do Bom Samaritano (cf. Lc 10, 25-37). Eis as palavras do Sumo Pontífice: “Com a intenção de procurar uma luz no meio do que estamos a viver e antes de propor algumas linhas de ação, quero dedicar um capítulo a uma parábola narrada por Jesus Cristo há dois mil anos. Com efeito, apesar desta encíclica se dirigir a todas as pessoas de boa vontade, independentemente das suas convicções religiosas, a parábola em questão é expressa de tal maneira que qualquer um de nós pode deixar-se interpelar por ela” (n. 56). Em se tratando de um texto bíblico apto a despertar profundas reflexões, convido a cada um(a) a lê-lo e meditá-lo com vagar e, em seguida, tomar o capítulo II da “Fratelli tutti” e sentir-se desafiado pelas reflexões do Papa.

         Sem “estragar” o gosto de beber na própria fonte da encíclica, chamo a atenção para alguns pontos mais interpeladores. O primeiro é a síntese “atualizada” que Francisco oferece da parábola ao escrever: “A parábola mostra-nos as iniciativas com que se pode refazer uma comunidade a partir de homens e mulheres que assumem como própria a fragilidade dos outros, não deixam constituir-se uma sociedade de exclusão, mas fazem-se próximos, levantam e reabilitam o caído, para que o bem seja comum. Ao mesmo tempo, a parábola adverte-nos sobre certas atitudes de pessoas que só olham para si mesmas e não atendem às exigências iniludíveis da realidade humana” (n. 67). Nessa passagem bíblica, “já não há distinção entre habitante da Judeia e habitante da Samaria, não há sacerdote nem comerciante; existem simplesmente dois tipos de pessoas: aquelas que cuidam do sofrimento e aquelas que passam ao largo; aquelas que se debruçam sobre o caído e o reconhecem necessitado de ajuda e aquelas que olham distraídas e aceleram o passo” (n. 70). E, recorrendo aos Santos Padres, vai além: “São João Crisóstomo expressou, com muita clareza, este desafio que se apresenta aos cristãos: ‘Queres honrar o Corpo de Cristo? Não permitas que seja desprezado nos seus membros, isto é, nos pobres que não têm que vestir, nem O honres aqui no templo com vestes de seda, enquanto lá fora O abandonas ao frio e à nudez’ (Homiliae in Matthaeum, 50, 3-4: PG 58, 508)”.

Depois, vem outro problema: Quem é o meu próximo? – pergunta o jovem a Jesus. Daí uma explicação: “Importa notar que para os israelitas só era considerado ‘próximo’ dois pastores que se associam (re’a), os amigos, os sócios, os compatriotas, pois eles não deviam se misturar com outros (cf. Lv 19,19). O estrangeiro, salvo se fosse um oficial romano, não tinha valor algum. Ninguém era obrigado a ajudá-lo. Certo é que em Lv 19,34 e Dt 10,19 é preceituado o amor ao estrangeiro, porém não a qualquer um, mas, sim, apenas, ao estrangeiro domiciliado em Israel e, de certo modo, assimilado, por adoção ao povo de Israel (ger). Eis, pois, um importante pano de fundo da parábola” (Recorramos a Santa Gertrudes de Helfta. São Paulo: Cultor de Livros, 2019, p. 81 – nota 42). Dito isso, notemos – com o Papa – que tal mentalidade foi se abrindo no próprio Antigo Testamento (cf. Tb 4,15; Sir 18,13 etc.), mas só ganha contornos claros no Novo Testamento (cf. Mt 7,12; Mt 5,45; Lc 6,36; 1Ts 3,12 etc.).

         Ao olhar, no entanto, o sacerdote, o levita e o samaritano, somos confrontados. Daí a indagação firme do Santo Padre: “Com quem te identificas? É uma pergunta sem rodeios, direta e determinante: a qual deles te assemelhas? Precisamos de reconhecer a tentação que nos cerca de se desinteressar dos outros, especialmente dos mais frágeis. Digamos que crescemos em muitos aspetos, mas somos analfabetos no acompanhar, cuidar e sustentar os mais frágeis e vulneráveis das nossas sociedades desenvolvidas. Habituamo-nos a olhar para o outro lado, passar à margem, ignorar as situações até elas nos caírem diretamente em cima” (n. 64).

Nós, como o Bom Samaritano, “gozamos dum espaço de corresponsabilidade capaz de iniciar e gerar novos processos e transformações. Sejamos parte ativa na reabilitação e apoio das sociedades feridas” (n. 77). E mais: fazer tudo por amor de Deus, ou seja, sem esperar recompensa humana alguma: “O samaritano do caminho partiu sem esperar reconhecimentos nem obrigados. A dedicação ao serviço era a grande satisfação diante do seu Deus e na própria vida e, consequentemente, um dever. Todos temos uma responsabilidade pelo ferido que é o nosso povo e todos os povos da terra. Cuidemos da fragilidade de cada homem, cada mulher, cada criança e cada idoso, com a mesma atitude solidária e solícita, a mesma atitude de proximidade do bom samaritano” (n. 79). Cristo está nos abandonados e excluídos (cf. Mt 25,40.45).

         Aprendamos, pois, a olhar os problemas de nosso tempo e a enfrentá-los por amor de Deus que é também amor ao próximo. Ambos são indissociáveis, pois ninguém consegue amar a Deus a quem não vê, se não ama o irmão a quem vê (cf. 1 Jo 4,20-21). Peçamos a graça de uma fé que opera pela caridade (cf. Gl 5,1-6) perante todos os necessitados que o Senhor coloca em nosso caminho a fim de que lhes sejamos também bons samaritanos do século XXI.

A nova encíclica social “Fratelli tutti” (III)

         Reflitamos sobre os capítulos 3 e 4 da nova encíclica “Fratelli tutti”: a fraternidade e a amizade social, do Papa Francisco. Espero despertar em cada um o gosto pela leitura integral desse precioso documento.

         Recordo, a título de contextualização, que no capítulo I, intitulado “As sombras de um mundo fechado” (n. 9-55), o Santo Padre expôs algumas tendências do mundo atual que atrapalham ou mesmo impedem a fraternidade universal. Deixou de lado, por um tempo, esses questionamentos para iluminar sua reflexão com a parábola do Bom Samaritano (cf. Lc 10, 25-37). Eis que, agora, no capítulo III, cujo título é “Pensar e gerar um mundo aberto” (n. 87-127), o Papa como que se volta para as respostas aos desafios por ele recolhidos no capítulo II. Acompanhemos com atenção.

         É preciso amar de verdade e concretamente, diz o Papa: “O ser humano está feito de tal maneira que não se realiza, não se desenvolve, nem pode encontrar a sua plenitude ‘a não ser no sincero dom de si mesmo’ (Gaudium et spes, 24) aos outros. E não chega a reconhecer completamente a sua própria verdade, senão no encontro com os outros: ‘Só comunico realmente comigo mesmo, na medida em que comunico com o outro’ (Gabriel Marcel, Du refus à l’invocation (Paris 1940), 50). Isso explica por que ninguém pode experimentar o valor de viver, sem rostos concretos a quem amar. Aqui está um segredo da existência humana autêntica, já que ‘a vida subsiste onde há vínculo, comunhão, fraternidade; e é uma vida mais forte do que a morte, quando se constrói sobre verdadeiras relações e vínculos de fidelidade. Pelo contrário, não há vida quando se tem a pretensão de pertencer apenas a si mesmo e de viver como ilhas: nestas atitudes prevalece a morte’ (Francisco, Alocução do Angelus (10 de novembro de 2019): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 12/XI/2019), 3)” (n. 87). Aliás, a) “o individualismo não nos torna mais livres, mais iguais, mais irmãos. A mera soma dos interesses individuais não é capaz de gerar um mundo melhor para toda a humanidade” (n. 105) b) mesmo na defesa da verdade, devemos agir com amor, pois “o maior perigo é não amar (cf. 1Cor 13,1-13)” (n. 92).

O que foge disso tudo está, via de regra, mais voltado a si mesmo do que ao próximo e pode ser doentio: “A pessoa humana, com os seus direitos inalienáveis, está naturalmente aberta a criar vínculos. Habita nela, radicalmente, o apelo a transcender-se a si mesma no encontro com os outros” (n. 111). Até mesmo em nível micro, nas comunidades, “os grupos fechados e os casais autorreferenciais, que se constituem como um ‘nós’ contraposto ao mundo inteiro, habitualmente são formas idealizadas de egoísmo e mera autoproteção” (n. 89). Ninguém deve se isolar, somos “todos irmãos (Mt 23,8)” (n. 95).  Aqui entra o racismo: “um vírus que muda facilmente e, em vez de desaparecer, dissimula-se, mas está sempre à espreita” (n. 97). Nesse contexto, quem ama os que com ele convivem numa comunidade local, deverá amar também os de mais longe: é assim o exercício da fraternidade universal (cf. n. 99-104). Sim, pois “todo ser humano tem direito de viver com dignidade e desenvolver-se integralmente, e nenhum país lhe pode negar este direito fundamental” (n. 107). Somos, portanto, chamados a dar o melhor aos outros na verdadeira solidariedade (cf. n. 112 e 114), sem nos esquecermos do cuidado para com a “casa comum”, conforme foi longamente tratado na Laudato Si, e com o uso correto da terra.

Sobre a terra, em especial, escreve o Pontífice: “Faço minhas e volto a propor a todos algumas palavras de São João Paulo II, cuja veemência talvez tenha passado despercebida: ‘Deus deu a terra a todo gênero humano, para que ela sustente todos os seus membros, sem excluir nem privilegiar ninguém’ (Centesimus annus (1 de maio de 1991), 31: AAS 83 (1991), 831). Nesta linha, lembro que ‘a tradição cristã nunca reconheceu como absoluto ou intocável o direito à propriedade privada, e salientou a função social de qualquer forma de propriedade privada’ (Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015), 93: AAS 107 (2015), 884). O princípio do uso comum dos bens criados para todos é o ‘primeiro princípio de toda a ordem ético-social’ (Carta enc. Laborem exercens (14 de setembro de 1981), 19: AAS 73 (1981), 626), é um direito natural, primordial e prioritário (cf. Conselho Pontifício «Justiça e paz», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 172). Todos os outros direitos sobre os bens necessários para a realização integral das pessoas, quaisquer que sejam eles incluindo o da propriedade privada, ‘não devem – como afirmava São Paulo VI – impedir, mas, pelo contrário, facilitar a sua realização’ (Populorum progressio (26 de março de 1967), 22: AAS 59 (1967), 268). O direito à propriedade privada só pode ser considerado como um direito natural secundário e derivado do princípio do destino universal dos bens criados, e isto tem consequências muito concretas que se devem refletir no funcionamento da sociedade. Mas acontece muitas vezes que os direitos secundários se sobrepõem aos prioritários e primordiais, deixando-os sem relevância prática” (n. 120; cf. n. 124).

         Francisco louva os empresários em seus esforços, porém também os desafia: “Mas estas capacidades dos empresários, que são um dom de Deus, deveriam em todo o caso orientar-se claramente para o desenvolvimento das outras pessoas e a superação da miséria, especialmente através da criação de oportunidades de trabalho diversificadas” (n. 123). Afinal, só ante uma lógica que considera a dignidade humana é possível sonhar com e ter um mundo melhor (cf. n. 123).

         No capítulo IV, cujo título soa “Um coração aberto ao mundo inteiro” (n. 128-153), o Papa se volta, por primeiro a um problema que lhe é muito especial: o dos migrantes. Para o Santo Padre o ideal seria ninguém deixar a sua terra natal, mas se, forçado por algumas circunstâncias específicas, as pessoas tiverem de buscar outras regiões, que vigore para elas a fraternidade universal: onde quer que esteja ou vá, encontre irmãos e irmãs capazes de lhes aplicar concretamente quatro verbos: “acolher, proteger, promover e integrar” (n. 129). A quem já se encontra instalado em um lugar faz algum tempo, importa que lhe seja reconhecida a cidadania, ou seja, a pertença legal à população local (cf. n. 131); ele há de ser um dom para ela, pois sempre traz algo novo (cf. n. 133).

“As várias culturas, cuja riqueza se foi criando ao longo dos séculos, devem ser salvaguardadas para que o mundo não fique mais pobre. Isso, porém, sem deixar de as estimular a que permitam surgir de si mesmas algo de novo no encontro com outras realidades” (n. 134 e 148). Nesse cenário, “a ajuda mútua entre países acaba por beneficiar a todos” (n. 137), dado que “hoje nenhum Estado nacional isolado é capaz de garantir o bem comum da própria população” (n. 153). Isso tudo sem perder, é certo, a identidade local (cf. n. 142) à luz de intercâmbios sadios e enriquecedores (n. 144). Nessa perspectiva, não cabem os “narcisismos bairristas que não expressam um amor sadio pelo próprio povo e a sua cultura. Escondem um espírito fechado que, devido a uma certa insegurança e medo do outro, prefere criar muralhas defensivas para sua salvaguarda” (n. 146). Pensa, assim, o Santo Padre, junto com Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb, no bom relacionamento entre o Ocidente e o Oriente (cf. n. 136).

Antes de prosseguir na leitura da Fratelli Tutti, desejo lembrar, a título pessoal, as palavras do Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965) sobre os muçulmanos, uma vez que a relação entre o Ocidente e o Oriente envolve Cristianismo e Islamismo: “A Igreja olha também com estima para os muçulmanos. Adoram eles o Deus Único, vivo e subsistente, misericordioso e omnipotente, criador do céu e da terra, que falou aos homens e a cujos decretos, mesmo ocultos, procuram submeter-se de todo o coração, como a Deus se submeteu Abraão, que a fé islâmica de bom grado evoca. Embora sem o reconhecerem como Deus, veneram Jesus como profeta, e honram Maria, sua mãe virginal, à qual por vezes invocam devotamente. Esperam pelo dia do juízo, no qual Deus remunerará todos os homens, uma vez ressuscitados. Têm, por isso, em apreço a vida moral e prestam culto a Deus, sobretudo com a oração, a esmola e o jejum. E se é verdade que, no decurso dos séculos, surgiram entre cristãos e muçulmanos não poucas discórdias e ódios, este sagrado Concílio exorta todos a que, esquecendo o passado, sinceramente se exercitem na compreensão mútua e juntos defendam e promovam a justiça social, os bens morais e a paz e liberdade para todos os homens” (Nostra aetate n. 3). Neste ponto específico, como fonte de aprofundamento, indico uma obra que trata do Islamismo de modo sério: Religiões: respostas para as perguntas do homem moderno. São Paulo: Mundo e missão, 1998, p. 73-95 (volume I).

Retornando à encíclica, vemos Francisco se volta para a gratuidade cristã que é, em síntese, fazer o bem sem esperar nada em troca. Eis suas palavras sobre a gratuidade: “é a capacidade de fazer algumas coisas, pelo simples fato de serem boas, sem olhar êxitos nem esperar receber imediatamente algo em troca. Isto permite acolher o estrangeiro, mesmo que não traga de imediato benefícios palpáveis. Mas há países que pretendem receber apenas cientistas ou investidores. Quem não vive a gratuidade fraterna, transforma a sua existência num comércio cheio de ansiedade: está sempre a medir aquilo que dá e o que recebe em troca” (n. 139-140). É óbvio que “os nacionalismos fechados manifestam, em última análise, esta incapacidade de gratuidade, a errada persuasão de que podem desenvolver-se à margem da ruína dos outros e que, fechando-se aos demais, estarão mais protegidos. O migrante é visto como um usurpador, que nada oferece” (n. 141).

         Daí afirmar o Papa sobre a interação social: “Esta abordagem exige, em última análise, que se aceite com alegria que nenhum povo, nenhuma cultura, nenhum indivíduo pode obter tudo de si mesmo. Os outros são, constitutivamente, necessários para a construção duma vida plena. A consciência do limite ou da exiguidade, longe de ser uma ameaça, torna-se a chave segundo a qual sonhar e elaborar um projeto comum. Com efeito, ‘o homem é o ser fronteiriço que não tem qualquer fronteira’ (Georg Simmel, Brücke und Tür. Essays des Philosophen zur Geschichte, Religion, Kunst und Gesellschaft (Estugarda 1957), 6)” (n. 150).

         Possam estas reflexões do Santo Padre levar-nos a repensar, à luz do Evangelho, nossa relação com todos os que passam por nós no dia a dia. Peçamos a Deus a graça de sermos realmente acolhedores como manda o Evangelho (cf. Mt 25,35) e recomenda a Regra de São Bento (53,15) citada pelo Papa no número 90 da Fratelli Tutti.

A nova encíclica social “Fratelli tutti” (IV)

         Com este artigo sobre os capítulos 5 a 7 da nova encíclica “Fratelli tutti”, sobre a fraternidade e a amizade social, do Papa Francisco, avanço um pouco mais na minha apresentação desse documento que muito tem a dizer a todos os fiéis católicos e demais homens e mulheres de boa vontade.

         O capítulo V, com o título “A política melhor” (n. 154-197), é um convite muito prático a superar as “más” ou até as consideradas “boas” políticas por uma “melhor”. Que é essa política melhor? – É “a política colocada ao serviço do verdadeiro bem comum” (n. 154; cf. n. 176-177) e que vista desta maneira, “é mais nobre do que a aparência, o marketing, as diferentes formas de maquilhagem mediática” (n. 197). Ela se choca com a forma liberalista e populista de fazer política, que é longamente explanada na “Fratelli tutti” (cf. n. 155-161). No entanto, o Santo Padre recorda que populismo é diferente de popular, este último vocábulo se aplica apenas a quem promove o bem do povo em geral, não só oferecendo dinheiro aos pobres, mas, sim, garantindo-lhes vida digna. Afinal, “por mais que mudem os sistemas de produção, a política não pode renunciar ao objetivo de conseguir que a organização duma sociedade assegure a cada pessoa uma maneira de contribuir com as suas capacidades e o seu esforço” (cf. n. 162).

Ainda: são falsamente acusados como “populistas quantos defendem os direitos dos mais frágeis da sociedade” (n. 163); todavia, não pode haver garantias aos sadios direitos particulares sem a presença apoiadora do Estado, dado que “de fato, não há vida privada, se não for protegida por uma ordem pública; um lar acolhedor doméstico não tem intimidade, se não estiver sob a tutela da legalidade, dum estado de tranquilidade fundado na lei e na força e com a condição dum mínimo de bem-estar garantido pela divisão do trabalho, pelas trocas comerciais, pela justiça social e pela cidadania política” (Paul Ricoeur, ‘Le socius et le prochain’, in: Idem, Histoire et vérité (Paris 1967), 122). A verdadeira caridade inclui tudo isso e nada desperdiça do que pode servir – de verdade e não por interesses escusos – o próximo. Sim, afirma o Papa que “às vezes deparamo-nos com ideologias de esquerda ou pensamentos sociais cultivando hábitos individualistas e procedimentos ineficazes, porque beneficiam a poucos; entretanto a multidão dos abandonados fica à mercê da possível boa vontade de alguns. Isto demonstra que é necessário fazer crescer não só uma espiritualidade da fraternidade, mas também e ao mesmo tempo uma organização mundial mais eficiente para ajudar a resolver os problemas prementes dos abandonados que sofrem e morrem nos países pobres” (n. 165). Também a política econômica ativa, que é necessária, deve ser acompanhada pela solidariedade e confiança mútua, tendo a dignidade humana no centro (n. 168) e o apoio ao chamados “movimentos populares” (n. 169).

Seria importante uma autoridade internacional capaz de garantir a vivência da justiça entendida como o “dar a cada um o que lhe é devido” (n. 171). Contudo, “quando se fala duma possível forma de autoridade mundial regulada pelo direito (Cf. Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de junho de 2009), 67: AAS 101 (2009), 700-701.), não se deve necessariamente pensar numa autoridade pessoal. Mas deveria prever pelo menos a criação de organizações mundiais mais eficazes, dotadas de autoridade para assegurar o bem comum mundial, a erradicação da fome e da miséria e a justa defesa dos direitos humanos fundamentais” (n. 172). Não se pode esquecer que, na debilidade ou ausência de atuação de Organizações Internacionais, alguns grupos civis têm ajudado a suprir a lacuna (cf. n. 175). Em tudo, no entanto, há de reinar a caridade, síntese de toda lei (cf. Mt 22,36-40). “Esta caridade política supõe ter maturado um sentido social que supere toda a mentalidade individualista” (n. 182), pois só “a caridade pode construir um mundo novo” (n. 183), à luz da razão e da fé, sem relativismos (cf. n. 185). Ainda mais: “Esta caridade, coração do espírito da política, é sempre um amor preferencial pelos últimos, que subjaz a todas as ações realizadas em seu favor” (cf. São João Paulo II, Carta enc. Sollicitudo rei socialis (30 de dezembro de 1987), 42: AAS 80 (1988), 572-574; Idem, Carta enc. Centesimus annus (1 de maio de 1991), 11: AAS 83 (1991), 806-807). Sejam pois lembrados os princípios “de subsidiariedade, inseparável do princípio de solidariedade” (n. 187) e uma política voltada a “eliminar efetivamente a fome” (n. 189).

Vem a título de fecho deste capítulo um ponto destacado por Francisco: “Neste contexto, gostaria de lembrar que eu juntamente com o Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb pedimos ‘aos artífices da política internacional e da economia mundial, para se comprometer seriamente na difusão da tolerância, da convivência e da paz; para intervir, o mais breve possível, a fim de se impedir o derramamento de sangue inocente’ (Documento sobre a fraternidade humana em prol da paz mundial e da convivência comum (Abu Dhabi 4 de fevereiro de 2019): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 05/II/2019), 21). E quando uma determinada política semeia o ódio e o medo em relação a outras nações em nome do bem do próprio país, é necessário estar alerta, reagir a tempo e corrigir imediatamente o rumo” (n. 192).

O capítulo VI, “Diálogo e amizade social” (n. 198-224), reafirma – em suma – um verbo muito caro ao atual Pontífice: dialogar (cf. n. 198) e promover, apesar das dificuldades, a “cultura do encontro que supere as dialéticas que colocam um contra o outro” (n. 215; cf. n. 216-217). Tal diálogo jamais se confunde com “uma troca febril de opiniões nas redes sociais, muitas vezes pilotada por uma informação mediática nem sempre fiável” (n. 200) com menosprezo a quem pensa diferente (cf. n. 201). Aliás, essa “falta de diálogo supõe que ninguém, nos diferentes setores, está preocupado com o bem comum, mas com obter as vantagens que o poder lhe proporciona ou, na melhor das hipóteses, com impor o seu próprio modo de pensar” (n. 202). Sim, “o diálogo social autêntico pressupõe a capacidade de respeitar o ponto de vista do outro, aceitando como possível que contenha convicções ou interesses legítimos” (n. 203). Nisso, se bem usada, “a internet pode oferecer maiores possibilidades de encontro e de solidariedade entre todos” (n. 205).

Contudo – e isso é deveras importante –, o diálogo não pode ceder lugar ao relativismo a professar sermos incapazes de chegar à verdade como tal (cf. n. 206), ao qual se junta “o risco de que o poderoso ou o mais hábil consiga impor uma suposta verdade” (n. 209). E dá exemplo do não matar. “É uma verdade irrenunciável que reconhecemos com a razão e aceitamos com a consciência. Uma sociedade é nobre e respeitável, nomeadamente porque cultiva a busca da verdade e pelo seu apego às verdades fundamentais” (n. 207). “Temos de nos exercitar em desmascarar as várias modalidades de manipulação, deformação e ocultamento da verdade nas esferas pública e privada” (n. 208). Afinal, as verdades morais básicas vão além do mero consenso, estão inscritas na natureza humana (cf. n. 211-212).

Mais: “Se devemos em qualquer situação respeitar a dignidade dos outros, isto significa que esta não é uma invenção nem uma suposição nossa, mas que existe realmente neles um valor superior às coisas materiais e independente das circunstâncias e exige um tratamento distinto” (n. 213). Nessa sociedade, há de se reconhecer no outro o direito de ser ele mesmo, sem violência, dado que “por trás da repulsa de certas formas visíveis de violência, muitas vezes esconde-se outra violência mais dissimulada: a daqueles que desprezam o diferente, sobretudo quando as suas reivindicações prejudicam de alguma maneira os próprios interesses” (n. 218).

Também somos convidados a respeitar os povos nativos, especialmente os indígenas (cf. n. 220), bem como abrirmo-nos ao diálogo com todos os povos e até a ceder algo pelo bem comum (cf. n. 221). Já contra o individualismo consumista (cf. n. 222), São Paulo propõe “um fruto do Espírito Santo com a palavra grega chrestotes (Gl 5,22), que expressa um estado de ânimo não áspero, rude, duro, mas benigno, suave, que sustenta e conforta. A pessoa que possui esta qualidade ajuda os outros, para que a sua existência seja mais suportável, sobretudo quando sobrecarregados com o peso dos seus problemas, urgências e angústias” (n. 223) e é levada a viver a amabilidade do “com licença”, “desculpe”, “obrigado” (n. 224).

Ao concluir este capítulo da “Fratelli tutti”, a tratar da amizade social, não posso, enquanto monge cisterciense agradecido a Deus pelo dom da minha consagração, deixar de recomendar a obra de um grande Padre cisterciense. Trata-se da “Amizade espiritual”, de Aelredo de Rievaulx, monge e abade do século XII, que ajuda a cada ser humano a, valendo-se dos sadios laços humanos, transcendê-los ou elevá-los a Deus. Para Aelredo, a amizade deve ser uma escada que conduz ao céu (cf. Amizade espiritual. Oração pastoral. São Paulo: Cultor de Livros, 2017). Elevemo-nos – pela graça divina que a ninguém falta –, com esse monge inglês, a tão altos patamares espirituais!

Chegamos, assim, ao capítulo VII que tem por título “Percurso dum novo encontro” (n. 225-270) capazes de nos conduzir à paz sem desejos de vingança (cf. n. 226-227), mas a sermos promotores da reconciliação e do encontro (cf. n. 229 e 232). Importa perdoar o rival de fora como se fosse membro da nossa família (cf. n. 230). Embora longo, devo apenas apontar os itens tratados que recordam, na sua quase totalidade, temas trabalhados recentemente pelo Papa Francisco e que abordei, inclusive, de algum modo, em meus artigos à imprensa.

Podemos dizer que o Santo Padre recomenda neste capítulo: 1) a amizade social com os mais pobres (cf. n. 233), uma vez que a desigualdade e a falta de inclusão social pode ser geradora de violência (cf. n. 234-235); 2) o perdão e a reconciliação (237-239) superando o mal com o bem (cf. n. 243), apesar  de que “amar um opressor não significa consentir que continue a ser tal; nem levá-lo a pensar que é aceitável o que faz” (n. 241); 3) não se esquecer de fatos graves da história para não repeti-los: A Shoah, os bombardeios atômicos de Hiroxima e Nagasáqui (cf. n. 246-247), “as perseguições, o comércio dos escravos e os massacres étnicos que se verificaram e verificam em vários países, e tantos outros factos históricos que nos fazem envergonhar de sermos humanos” (n. 248). Alguém poderia perguntar: mas como entender o Papa se ele convida a perdoar, e, ao mesmo tempo, a não esquecer dos erros cometidos?

Eis sua própria explicação: “Aqueles que perdoam de verdade não esquecem, mas renunciam a deixar-se dominar pela mesma força destruidora que os lesou” (n. 251). O que também não redunda em impunidade: quem erra tem de pagar pelo erro (cf. n. 252); 4) condena a guerra injusta e pede que elas nunca mais aconteçam, pois todas deixam o mundo pior do que antes (cf. n. 256-262); 5) recrimina a pena de morte, a prisão perpétua e as ações extrajudiciais (cf. n. 263-268) e 6) defende um mundo de paz no qual se cumpra a profecia de Isaías para os tempos messiânicos: “transformarão as suas espadas em relhas de arado” (2,4).

Eis, assim, mais um trecho da “Fratelli tutti” a cada irmão e irmã interessado(a) em meditar, com alegria, este novo documento social da Igreja.