(artigo do prof. Sampel publicado na Folha de São Paulo) 

Em primeiro lugar, saibam os católicos que sempre devem amar e reverenciar o santo padre, o papa, em virtude da dignidade do cargo que ele ocupa como sucessor de são Pedro e, portanto, vigário ou representante de Jesus Cristo. Com efeito, são Luís Orione metaforizava o amor incondicional ao bispo de Roma, afirmando que mesmo se o papa fosse o guerrilheiro Garibaldi, ainda assim, mereceria o desvelo dos católicos. Desta feita, jamais falemos mal do papa! 

No documentário cinematográfico intitulado Francesco, o papa reinante, ao que tudo indica, mostrou-se favorável à lei de convivência civil entre homossexuais. A doutrina bimilenar da Igreja católica ensina que os homossexuais têm de ser acolhidos e respeitados. Eis o que consta no Catecismo da Igreja Católica: 

"Número não negligenciável de homens e de mulheres apresenta tendências homossexuais inatas. Não são eles que escolhem sua condição homossexual; para a maioria, pois, esta constitui uma provação. Devem ser acolhidos com respeito, compaixão e delicadeza. Evitar-se-á para com eles todo sinal de discriminação injusta. Estas pessoas são chamadas a realizar a vontade de Deus na sua vida e, se forem cristãs, a unir ao sacrifício da cruz do Senhor as dificuldades que podem encontrar por causa da sua condição" (n. 2358). 

 

Em 2003, o então cardeal Ratzinger, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, com aval de são João Paulo II, sumo pontífice da época, passava a seguinte orientação aos católicos em geral, particularmente aos leigos atuantes na política: 

"Em presença do reconhecimento legal das uniões homossexuais ou da equiparação legal das mesmas ao matrimônio, com acesso aos direitos próprios deste último, é dever opor-se de modo claro e incisivo. Há que abster-se de qualquer cooperação formal na promulgação ou aplicação de leis tão gravemente injustas. Nesta matéria, cada qual pode reivindicar o direito de objeção de consciência" (Considerações sobre os Projetos de Reconhecimento Legal das Uniões entre Pessoas Homossexuais, n. 5). 

Entre diversas manifestações em prol da família tradicional, o papa Francisco expressou o seguinte ponto de vista em 2017: 

"Seria possível questionar-se: o evangelho continua a ser alegria para o mundo? E mais ainda: a família continua a ser boa notícia para o mundo de hoje? Estou convicto que sim! E este 'sim' encontra-se firmemente fundado no desígnio de Deus. O amor de Deus é o seu 'sim' à criação inteira e ao seu âmago, que é o homem. Trata-se do 'sim' de Deus à união entre o homem e a mulher, em abertura e ao serviço da vida em todas as suas fases; é o 'sim' e o compromisso de Deus a favor de uma humanidade muitas vezes ferida, maltratada e dominada pela falta de amor. Por conseguinte, a família é o 'sim' do Deus amor. Somente a partir do amor, a família pode manifestar, propagar e regenerar o amor de Deus no mundo. Sem o amor, não podemos viver como filhos de Deus, nem como cônjuges, pais e irmãos." (Carta do papa Francisco para o 9.º Encontro Mundial das Famílias). 

No caso protagonizado pelo papa Francisco, sua santidade externou opinião pessoal. Não se trata do assim chamado magistério ordinário. Diferente impacto produziria o aludido depoimento se veiculado numa encíclica ou até mesmo na audiência geral de quarta-feira. Ainda nestas hipóteses, não nos encontraríamos em face de poder vinculante hábil a suscitar o obséquio da fé (adesão obrigatória dos católicos ao ensinamento papal). Conquanto o magistério ordinário (encíclicas, discursos oficiais etc.) se caracterize pela solenidade e demande a aquiescência, somente o magistério extraordinário produz a adesão cabal e irrestrita de todos os católicos. Isto ocorre quando o papa fala ex cathedra; em tal circunstância, o sucessor de são Pedro é infalível. Aqui a tradução do cânon 749, §1.º: 

"Em virtude de seu ofício, o sumo pontífice goza de infalibilidade no magistério, quando, como supremo pastor e doutor de todos os fiéis, a quem compete confirmar na fé a seus irmãos, proclama por ato definitivo, doutrina em matéria de fé ou de costumes."  

A fim de que o público ledor não especializado compreenda a pujança de uma declaração ex cathedra, fruto da infalibilidade do papa, lembremos, por exemplo, do dogma da imaculada conceição de Maria santíssima. Antes da declaração dogmática, havia pareceres perfilhando a tese de que santa Maria, a mãe de Jesus, foi concebida com o pecado original, como qualquer pessoa. A partir da encíclica dogmática do papa beato Pio IX, em 1854, cessaram-se todas as discussões; ninguém mais duvidava de que  Maria santíssima realmente foi concebida sem a mancha do pecado original! 

Voltando às palavras do papa Francisco, aparentemente favoráveis à lei de união homoafetiva, parece-me razoável a justificativa apresentada pela Comissão Pastoral para a Vida e a Família, organismo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) (link abaixo): "a fala do papa Francisco demonstra humanidade, mas não muda a doutrina católica"! 

 

Edson Luiz Sampel 

Professor da Faculdade de Direito Canônico São Paulo Apóstolo (da Arquidiocese de São Paulo).  

Pronunciamento da CNBB sobre a declaração do papa Francisco: 

https://www.cnbb.org.br/homoafetividade-fala-do-papa-nao-muda-doutrina-sobre-a-familia/