Para quem conhece um pouco da história da Igreja e de psicologia, não é de se admirar que em pleno século XXI haja pessoas que se dizem seguidoras de Jesus, inclusive líderes religiosos, e que defendem (com dentes cerrados) o armamento da população.

Religião e violência, infelizmente, não raras vezes, andam de mãos dadas na história. Escrevo este texto não para convencer os que defendem o armamento em nome de Cristo e da Igreja de que estão errados. Não importa o que se lhes diga. Já escolheram seu lado e isso parece crença entranhada em seu ser. Escrevo especialmente para os católicos que, pasmos, se entristecem de ver este tipo de teoria daninha alastrada também no edifício da Igreja. Coragem! Esta apologia à violência (disfarçada de “defesa da vida”) não faz parte do ensinamento oficial da Igreja. 

Para endossar a teoria insana do atual presidente do Brasil, os argumentos mais esdrúxulos são utilizados. “Tá’ rolando”, por exemplo, pelas redes sociais, um dito isolado atribuído a São João Paulo II, como que para contrapor o santo à declaração de Dom Orlando Brandes, Arcebispo de Aparecida, numa das missas do dia 12/10/2021. Dom Orlando, em consonância com a Doutrina Social da Igreja e com o magistério do Papa Francisco, declarou: “Pátria amada não é pátria armada”, com evidente crítica ao Presidente Jair Bolsonaro, que desde antes de sua eleição, sempre pregou o armamento da população e, inclusive, a guerra civil, quando ainda deputado. 

Para se contrapor a Dom Orlando, espalhou-se, então, pelas redes sociais, a seguinte frase que supostamente seria de São João Paulo II: “Em um mundo marcado pelo mal e pelo pecado, existe o direito à legítima defesa com armas e por motivos justos [...] e esse direito pode se tornar grave dever para quem é responsável pela vida dos outros, da família, ou da comunidade civil”. Bem, a Igreja tem sua doutrina sobre legítima defesa (deixo algumas referências abaixo para quem quiser aprofundar o assunto) e a frase em si não contrapõe sua concepção de legítima defesa. Mas há ao menos quatro problemas na frase acima. Já de início, seria preciso indicar a fonte precisa. Isso não foi feito seguramente porque do jeito que está é mais uma falsa notícia. Explico-me: indica mais uma montagem, já que é a junção de uma frase que alguns atribuem ao documento Conciliar Gaudium et Spes, 79 (mas lá nada encontrei) com um texto alterado do Catecismo da Igreja Católica, § 2265. O segundo problema é que se trata de frase isolada, sem se considerar o contexto em que é citada, e que ainda omite o ensinamento da Igreja de que é totalmente contra a violência e contra a guerra (Compêndio da Doutrina Social da Igreja 496, 497 e 491, com citações inclusive de São João Paulo II) e que afirma que o uso de armas para legítima defesa é o último dos últimos recursos e com critérios muito rigorosos (Compêndio da Doutrina Social da Igreja 401, inclusive com citações de São João Paulo II). 

Se difundimos o dito acima, sem considerar tudo isso que acabo de dizer, estamos adulterando a mensagem cristã, estamos fazendo apologia à violência em nome de Deus, estamos espalhando mentiras. O terceiro problema é que na doutrina da Igreja fala-se de “legítima defesa” e não no armamento irresponsável e inescrupuloso da população. Você já se perguntou por que tanto esforço do atual presidente para se armar a população? Parece haver nele e nos que defendem insistentemente o armamento da população um fetiche (em torno do falo? Símbolo do poder? Freud explica!). Só por curiosidade, você já pesquisou sobre quanto custa uma arma de fogo? Eu já. E o custo é bem caro. Tem brasileiro na fila para pegar restos de ossos para ter “uma comidinha melhor” e este governo preocupado em armar as pessoas. Você acredita que o atual presidente (que em 1999 já pregava a guerra civil) não quer uma guerra civil no Brasil? Acredita que não vai ter estragos enormes para todos, sobretudo para os mais pobres (que sempre levam a pior)? E sabe quem vai levar a culpa? Os pobres e todos que os que se opõem a esse (des) governo. 

No fundo, como disse um amigo padre, e este é o quarto problema, o que os grupos que se levantam contra Dom Orlando e que espalham o tipo de mensagem acima (supostamente de São João Paulo II) não suportam é o magistério do Papa Francisco, pautado muito mais num paradigma de cuidado pastoral (acolher, acompanhar, discernir, integrar), que num magistério legalista, distante da realidade do povo e autoritário. 

Dom Orlando, apóstolo da Igreja, está em comunhão com Pedro, o Papa Francisco. Fiquemos atentos com a apologia às armas do atual governo. Se não tomarmos cuidado, todo esse movimento neofascista vai virar um “nazisme à la brésilienne” (um nazismo ao modo brasileiro). É fácil repetir feito papagaios frases soltas, descontextualizadas, espalhando confusão, ódio e pânico no meio do povo. Exigente é se esmerar na pesquisa para encontrar a fonte segura dos fatos. 

Para o aprofundamento do tema: Compêndio Vaticano II, Gaudium et Spes n.77-83; Compêndio da Doutrina Social da Igreja (n. 401, 432; 438-439; 501ss); Catecismo da Igreja Católica (2263 ss). 


Pe. Leomar Nascimento de Jesus
Vigário paroquial da Paróquia Santa Catarina de Alexandria, Diocese de Santo Amaro. Mestre em Teologia pela PUC-SP
Doutorando em Ciência da Religião pela PUC-SP
Professor e coordenador da Pós-graduação Religião e Cultura no Centro Universitário Assunção, São Paulo, SP