O Motu proprio Omnium in Mentem

O tema de nossa comunicação é o recente Motu proprio do Papa Bento XVI Omnium in mentem. Nós o faremos em três pontos:

 

1. Em primeiro lugar convém recordar que por Motu proprio se entende um decreto emanado pelo Romano Pontífice, que, a diferença do rescrito (o qual é dado como resposta a uma solicitação), é emitido "por iniciativa própria" do mesmo Romano Pontífice, em forma de carta, sem cabeçalho.

O presente Motu proprio estabelece alterações em cinco cânones do Código de Direito Canônico, caracterizando-se claramente como um ato do poder de governo legislativo. Evidentemente, essa mudança legal tem uma base doutrinária: no documento, o Papa menciona desejar "aperfeiçoar a norma canônica", adequando-as as mudanças ocorridas no Catecismo[1] no texto referente aos diáconos, bem como precisar as normas sobre os elementos necessários para a validade do matrimônio canônico. Mas Omnium in mentem não é um documento de caráter doutrinal.

 

2.1. Os cânones relativos ao Sacramento da Ordem (diaconato)

2.1. As alterações.

O Motu proprio determinou primeiramente a alteração dos cc. 1008 e 1009. O c. 1008 era assim redigido:

 

Mediante o sacramento da ordem, por instituição divina, alguns de entre os fiéis, pelo carácter indelével com que se assinalam, são constituídos ministros sagrados, isto é são consagrados e deputados para que, segundo o grau de cada um, apascentem o povo de Deus, desempenhando na pessoa de Cristo Cabeça as funções de ensinar, santificar e reger[2].

 

E passou a ter a seguinte redação:

Mediante o sacramento da ordem, por divina instituição, alguns de entre os fiéis, pelo carácter indelével com que são assinalados, são constituídos ministros sagrados, e assim são consagrados e delegados a servir, segundo o grau de cada um, com título novo e peculiar, o povo de Deus.

 

Como se pode perceber nas palavras que sublinhamos (as demais diferenças são devidas às traduções[3]), o cânon não mais caracteriza o agir "in persona Christi Capitis", nem a missão pastoral ("apascentar") como finalidade específica do sacramento da Ordem. Em vez disso se diz "servir, com título novo e peculiar, o povo de Deus".

Quanto ao c. 1009, antes da mudança, constava dos seguintes parágrafos:

§ 1. As ordens são o episcopado, o presbiterado e o diaconato.

§ 2. Conferem-se pela imposição das mãos e pela oração consecratória, que os livros litúrgicos prescrevem para cada grau.

 

O Motu proprio acrescentou um 3º parágrafo:

§3. Aqueles que são constituídos na ordem do episcopado ou do presbiterado recebem a missão e a faculdade de agir na pessoa de Cristo Cabeça; os diáconos, ao contrário, sejam habilitados para servir o povo de Deus na diaconia da liturgia, da palavra e da caridade.

 

Aqui, "agir na pessoa de Cristo Cabeça", refere-se expressamente aos bispos e aos presbíteros, enquanto dos diáconos se diz que são "habilitados para servir o povo de Deus na diaconia da liturgia, da palavra e da caridade". Como se pode facilmente perceber, as mudanças feitas têm como objeto principal uma diferente caracterização do diaconato.

 

2.2. Histórico.

As dificuldades na compreensão teológica do diaconato são bastante antigas. Sua fundamentação escriturística é complexa[4] e parece correto afirmar que "as primeiras gerações cristãs não nos legaram uma imagem primordial do diácono, mas esboços variados"[5].

O Concílio Vaticano II, apesar de ter restabelecido o diaconato como grau próprio e permanente no rito latino, não colaborou muito em sua compreensão teológica. O Vaticano II, com é sabido, ocupou-se prioritariamente do múnus episcopal, pretendendo, em continuação ao Concílio Vaticano I, "declarar e manifestar a todos a doutrina sobre os Bispos, sucessores dos Apóstolos" (LG 18b). Se uma particular necessidade fez com que fosse redigido um "Decreto sobre o ministério e a vida dos sacerdotes"[6], a mesma sorte não tiveram os diáconos: além dos dois parágrafos que lhes coube na Constituição dogmática sobre a Igreja (LG 29), são apenas citados na mesma constituição nos nn. 20c; 28a (numa citação do Concílio de Trento); 41; bem como nos Decretos Ad gentes nn. 15h; 16 e Christus Dominus 15. Sequer são citados na Constituição Gaudium et spes sobre a Igreja no mundo atual.

As intenções do n. 29 da LG parecem ter sido predominantemente práticas: a restauração do diaconato "como grau próprio e permanente da Hierarquia", o qual poderia "ser conferido a homens de idade madura, mesmo casados, e a jovens idôneos", sendo que foi o debate relativo ao celibato que ocupou boa parte das discussões conciliares.

Parece, todavia, evidente por toda a tradição da Igreja, confirmada pelo Concílio, tratar-se de um ministério que implica a participação no sacramento da Ordem. A Lumen gentium, com efeito, afirmou serem os diáconos "fortalecidos com a graça sacramental" (LG 29)[7], onde "sacramental" refere-se, evidentemente, ao sacramento da Ordem.

Justifica-se, portanto, a distinção entre o ministério do diácono e os ministérios próprios dos fiéis leigos, afirmada pelo "Diretório para o ministério e a vida dos diáconos permanenentes" (n. 28): "Ao ministério do bispo e, subordinadamente, ao dos presbíteros, o diácono presta uma ajuda sacramental, portanto intrínseca, orgânica, inconfundível. É evidente que a sua diaconia junto do altar, tendo a sua origem no sacramento da Ordem, difere essencialmente de qualquer outro ministério litúrgico que os pastores possam confiar aos fiéis não ordenados"[8].

O texto traz à memória a afirmação do Vaticano II (a qual o Papa faz referência na Omnium in mentem): "O sacerdócio comum dos fiéis e o sacerdócio ministerial ou hierárquico, embora se diferenciem essencialmente e não apenas em grau, ordenam-se mutuamente um ao outro; pois um e outro participam, a seu modo, do único sacerdócio de Cristo" (LG 10)[9].

Porém, com relação aos diáconos, afirma o mesmo Concílio que lhes são "impostas as mãos «não em ordem ao sacerdócio, mas ao ministério»" (LG 29), uma citação dos Statuta Ecclesiae antiqua[10] (por volta do ano 475), apoiado, portanto, em sólida tradição eclesial. Temos, pois, a afirmação (de um grau) do sacramento da Ordem, que não comporta a participação no sacerdócio ministerial.

A afirmação não traria problemas, se séculos de teologia não houvessem identificado o ministério ordenado com o sacerdócio[11], "comprimindo" assim o ministério ordenado (sacramental) no presbiterato[12]. É certo que o Vaticano II afirmou explicitamente a sacramentalidade do episcopado[13], abrindo, desse modo caminho, para se superar essa identificação reducionista e reconhecer, junto à "diferença entre episcopado, presbiterato e diaconato"[14], a dignidade sacramental comum a estes três graus, que têm sua origem comum no ministério apostólico instituído por Cristo[15].

 

2.3. Questões levantadas.

Com a afirmação da sacramentalidade do diaconato, parece correto supor que a dimensão sacerdotal não é a principal caracterizadora do ministério ordenado. Com relação aos bispos, o Concílio afirma que "a consagração (sacramental) episcopal juntamente com o poder de santificar, confere também os poderes de ensinar e governar" (LG 21b), ou seja, a participação no múnus de Cristo Mestre e Pastor (e não apenas Sacerdote). Excluído, pois o sacerdócio, a configuração com Cristo Cabeça da Igreja, parecia ser o elemento comum que caracterizava todos os "graus" do sacramento da Ordem. Ora, Omnium in mentem, nega que o seja. Os textos do Catecismo e do Código referem agora a representação de Cristo-Cabeça apenas ao episcopado e ao presbiterado, não ao diaconato.

Resta saber: qual é o específico do múnus diaconal? Afirmar que seja uma "configuração com o Cristo Servidor"[16] não parece satisfatório. Com efeito, conforme o Evangelho, a dimensão do serviço pertence a todo ministério eclesial, à semelhança do "Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir" (Mc 10,42b-45)[17]. Como interroga (com razão, ao nosso entender) o documento da Comissão Teológica Internacional, "será possível separar ‘capitalidade' e ‘serviço' na representação de Cristo para fazer de cada um deles um princípio de diferenciação específica? Cristo, o Senhor, é ao mesmo tempo o Servidor Supremo e o servidor de todos. Os ministérios do bispo e do presbítero, precisamente em sua função de presidência e de representação do Cristo Cabeça, Pastor e Esposo da Igreja, torna também visível o Cristo Servidor e lhes pedem que sejam exercidos como serviço"[18].

Convém ainda notar que, não tendo sido alterado o c. 743 do Código dos Cânones das Igrejas Orientais, ainda se afirma que compete a todo ministro ordenado (sem excluir os diáconos), apascentar e santificar o Povo de Deus. De resto, as funções dos diáconos nas Igrejas Orientais diferem muito das funções previstas no rito latino[19] (o que não acontece com os bispos e presbíteros).

Por fim, dado que o diaconato faz parte do sacramento da Ordem (não sendo um "oitavo sacramento"), parece importante determinar um elemento que seja comum a todos os graus. Após a Omnium in mentem ficou mais difícil definir qual seja este elemento!

 

3. As alterações relativas ao sacramento do Matrimônio.

3.1. Os cânones alterados.

Em relação ao sacramento do Matrimônio, Omnium in mentem determinou a alteração em três cânones, omitindo em cada um deles as palavras que destacamos abaixo:

Cân. 1117. A forma acima estabelecida deve ser observada, se ao menos uma das partes contraentes tiver sido batizada na Igreja católica ou nela tenha sido recebida, e não tenha dela saído por ato formal, salvas as prescrições do cân. 1127,§ 2.

Cân. 1086. § 1. É inválido o matrimônio entre duas pessoas, uma das quais tenha sido batizada na Igreja católica ou nela recebida e que não a tenha abandonado por um ato formal, e outra não é batizada.

§ 2. Não se dispense desse impedimento, a não ser cumpridas as condições mencionadas nos cânn. 1125 e 1126.

Cân. 1124. O matrimônio entre duas pessoas batizadas, das quais uma tenha sido batizada na Igreja católica ou nela recebida depois do batismo, e que não tenha dela saído por ato formal, e outra pertencente a uma Igreja ou comunidade eclesial que não esteja em plena comunhão com a Igreja católica, é proibido sem a licença expressa da autoridade competente.

 

3.2. Histórico.

"A configuração do matrimônio canônico como um ato jurídico formal (além de consensual) é uma constante no Direito da Igreja desde a publicação, em 1563, do capítulo Tametsi do Concílio de Trento (Sess. XXIV, Decr. De reformatione matrimonii, cap. 1). Esta disposição, que instaura uma forma jurídica substancial e exigível para a válida celebração do matrimônio, sofreu algumas modificações no Decreto Ne temere (2.VIII.1907), e foi substancialmente assumida pelo CIC 17 em seu c. 1094. Por sua vez, o c. 1108 reafirma a linha iniciada em 1563, submetendo a validez do matrimônio (salvo as exceções que se indicam) a que, no momento da celebração, assistam o pároco ou o Ordinário do lugar, ou um sacerdote ou diácono delegado por um ou por outro, e duas testemunhas comuns"[20].

O c. 1099 do CIC 1917 em seu §1 estabelecia estarem obrigados a guardar essa forma determinada "todos os que tivessem sido batizados na Igreja Católica e todos os que a ela se converteram da heresia ou do cisma, ainda que, tanto estes como aqueles, a tenham depois abandonado". No §2 afirmava não estarem obrigados a forma canônica do matrimônio "os acatólicos, tanto batizados, como não batizados, se contraem (matrimônio) entre si" e, acrescentando uma exceção à norma do §1, "também os nascidos acatólicos, ainda que tenham sido batizados na Igreja Católica, que cresceram desde a infância na heresia, no cisma, na infidelidade ou sem nenhuma religião, todas as vezes que o contraem com parte acatólica".

Esta exceção, porém, foi suprimida pelo Motu proprio "Decretum Ne temere" de Pio XII[21], que invocou como justificativa a experiência de trinta anos, que mostrou não ter a exceção colaborado no bem das almas, antes, tivesse multiplicado as dificuldades[22]. Na palavra de um comentador do CIC 1917: "Por que foi suprimida esta parte do cânon? Não duvidamos - e assim insinua o Motu proprio - que seja para evitar as dúvidas acerca da validade de alguns matrimônios; pois julgar se alguém foi educado na heresia, no cisma, na infidelidade ou sem nenhuma religião é coisa que, muitas vezes, oferece dificuldades insuperáveis, donde tornava-se duvidosa, por falta de forma, a validade de alguns matrimônios que se celebravam acolhendo-se a disposição que agora foi eliminada"[23].

 

Como vimos, o CIC 1983, no c. 1117 estabelecia uma exceção à obrigação de observância da forma canônica, não obrigando a ela quem houvesse saído da Igreja "por um ato formal". O c. 1071,4[24] sugeria indiretamente que continuava obrigado à forma canônica quem apenas houvesse abandonado notoriamente a fé católica, mostrando que o referido "ato formal" do c. 1117 deveria ser entendido de outra maneira. A questão, porém, não era clara.

Uma Sessão Plenária do então Pontifício Conselho para interpretação dos textos legislativos (03 jun 1997) tratou do tema. Nela "os Padres aprovaram a fórmula de um dubium e o relativo responsum, para realizar eventualmente uma interpretação autêntica sobre o correto alcance jurídico da dita cláusula"[25]. Preferiu-se, porém, realizar primeiramente uma consulta às Conferências episcopais, que resultou em muitas respostas que pediam a clarificação e até mesmo a supressão da referida cláusula de exceção[26]. Em nova Sessão Plenária (04 jun 1999) o Pontifício Conselho aprovou por unanimidade a supressão da cláusula, o que foi aprovado pelo Papa João Paulo II (em Audiência de 03 jul 1999), que determinou que fosse preparado o texto legislativo.

Enquanto isso, uma questão presente em alguns países do centro-europeu, que levantava dúvidas de muitos "Bispos, Vigários judiciais e outros profissionais do Direito Canônico" sobre a eficácia eclesial da declaração feita por um católico perante um funcionário civil dizendo não ter religião, para ver-se livre das taxas públicas referentes ao culto[27], motivou uma "Comunicação" do Pontifício Conselho para os textos legislativos[28] (13 de março de 2006) sobre como deveria ser entendido o referido "ato formal de defecção da Igreja Católica". Tal Comunicação determinava que o ato formal de defecção comportava:

"a) decisão interna de sair da Igreja Católica", ou seja, um ato de verdadeira apostasia, heresia ou cisma, e não apenas um ato de "carácter jurídico-administrativo (sair da Igreja no sentido de proceder à averbação de tal acto em cartório, com as respectivas consequências civis");

"b) actuação e manifestação externa desta decisão"; o que supõe capacidade jurídica e decisão consciente e livre;

"c) recepção de tal decisão por parte da autoridade eclesiástica competente", isto é, "o Ordinário ou o Pároco próprio, a quem compete exclusivamente julgar sobre a existência ou não, no acto de vontade, do conteúdo (interno)".

A meu entender, o resultado prático da Comunicação foi tornar letra morta a exceção feita no c. 1117 e, obviamente contribuiu para a redação do Motu proprio Omnium in mentem. Este para as alterações realizadas, apresentou as seguintes motivações:

(1) - "da nova lei pareciam nascer, pelo menos indirectamente, uma certa facilidade ou, por assim dizer, um incentivo à apostasia naqueles lugares onde os fiéis católicos são numericamente exíguos, ou então onde vigem leis matrimoniais injustas, que estabelecem discriminações entre os cidadãos por motivos religiosos.

(2) - além disso, ela tornava difícil o retorno daqueles baptizados que desejavam intensamente contrair um novo matrimónio canónico, depois do fracasso do precedente;

(3) - muitíssimos destes matrimónios tornavam-se de facto para a Igreja matrimónios chamados clandestinos".

As razões apontadas são de ordem prática, tendo surgido (provavelmente) da consulta feita às Conferências episcopais em 1997.

 

3.3. Questões levantadas.

A questão subjacente a toda problemática parece ser o famoso princípio, "uma vez católico, sempre católico", implicitamente aceito pelo c. 11. A Igreja, certamente, não é uma associação ou clube que se possa deixar a bel prazer, mas, numa época em que se valorizam as relações ecumênicas, a afirmação, do modo como se apresenta, não deixa de causar problemas. A realidade de que as pessoas, de fato, abandonam a Igreja não me parece poder ser ignorada. Particularmente me parece impróprio não considerar o caso daqueles que, tendo sido batizados na Igreja Católica, cresceram desde a infância (para usar a expressão do CIC 17 antes da mudança de 1948) em outra Igreja ou Comunidade eclesial (ou até mesmo em outro grupo religioso). Além disso, a Igreja, de fato, parece tratar estas pessoas (especialmente quando ocupam posição na hierarquia das Igrejas ou Comunidades eclesiais que pertencem) como verdadeiros ortodoxos ou evangélicos. Não parece fazer sentido dizer que continuam sendo católicos e, portanto, obrigados às leis puramente eclesiásticas católicas.

Não basta dizer que a questão não tem importância, visto que os que deixaram a Igreja não se importam mais com suas leis e que muitos deles (por ex. os que foram educados desde a infância em religião acatólica) não incorreram em censura alguma, nem estão em estado de pecado subjetivo. Tal afirmação desvaloriza a afirmação do estado "objetivo de pecado" em que acabam sendo colocadas estas pessoas.

O mesmo raciocínio parece-me que se aplica à questão da validade dos sacramentos. A tradição sempre reconheceu que a Igreja, que administra os sacramentos (nos dois sentidos do verbo "administrar"), detém alguma autoridade sobre a definição dos elementos necessários para sua válida celebração. Digo alguma porque não me parece possível afirmar que tal autoridade seja ilimitada. Também parece ser limitada a capacidade que possui a Igreja de legislar sobre a validade de sacramentos celebrados em outras confissões religiosas. Já o Papa S. Cornélio defendia a validade do Batismo celebrado por "hereges", mesmo opondo-se a S. Cipriano (que possuía argumentos teológicos em maior número que o Papa). A tradição da Igreja (depois teorizada por S. Agostinho) deu razões ao Papa. Pergunto-me se hoje poderia ser diferente! Parece-me também, que a Igreja sempre admitiu a validade das ordenações celebradas por bispos que abandonaram a comunhão católica (desde que observada matéria e forma corretas). Veja-se o caso do "bispo de Maura" e a ordenação de D. Salomão Ferraz.

Notar, ainda que a Igreja Católica reconhece a capacidade das demais Igrejas e Comunidades eclesiais legislarem e até mesmo impor exigências para a válida celebração dos matrimônios de seus fiéis (como afirma a Instrução Dignitas connubii).

Ainda, se a graça sacramental, objetivamente falando, é algo importante para a vida e salvação da pessoa, faz sentido privar desta graça pessoas que poderiam recebê-la? O Motu proprio, como foi redigido, não priva da graça um número muito maior de pessoas do que aquelas que ele favorece (aqueles "baptizados que desejavam intensamente contrair um novo matrimónio canónico, depois do fracasso do precedente")?

Também a questão dos matrimônios clandestinos não é a mesma que aquela que motivou o Decreto Tametsi do Concílio de Trento. Eles são, evidentemente, um mal para a Igreja, mas há um contexto diferente do contexto do Trindentino. Com efeito, ali se tratava de matrimônio de católicos, o que não parece ser o mesmo caso.

 

3.4. Algumas conseqüências práticas.

Vale ainda lembrar algumas questões práticas:

a) Em razão do c. 1127 § 1 [29], é valido o matrimônio daquele que, tendo abandonado a Igreja Católica, casa-se, em rito ortodoxo, com um membro de uma das Igrejas ortodoxas.

b) Também se casa validamente quem, tendo abandonado a Igreja Católica, ao contrair matrimônio civil ou matrimônio em outra denominação religiosa com pessoa batizada, encontrava-se nas situações previstas pelo c. 1116: "Se não é possível, sem grave incômodo, ter o assistente competente de acordo com o direito, ou não sendo possível ir a ele, os que pretendem contrair verdadeiro matrimônio podem contraí-lo válida e licitamente só perante as testemunhas: 1°- em perigo de morte; 2°- fora de perigo de morte, contanto que prudentemente se preveja que esse estado de coisas vai durar por um mês".

c) É possível conceder-se dispensa da forma canônica (c. 1127 §2) ou sanatio in radice (c. 1161) em favor do matrimônio celebrado civilmente ou em outro rito religioso por pessoa que abandonou a Igreja Católica com outro acatólico (a pedido de uma mãe aflita, por ex, ou se a pessoa deseja voltar à comunhão católica).

d) No caso de alguém que abandonou a Igreja Católica, casou-se fora dela, rompeu o matrimônio e deseja casar-se na Igreja Católica, deve-se observar:

- se estão presentes algumas das circunstâncias acima mencionadas (nesse caso o matrimônio pode ter sido válido e, ao meu ver, é necessário um processo canônico.

- se a pessoa casou-se antes da promulgação do CIC 83 ou depois da promulgação do Omnium in mentem¸ o matrimônio é inexistente e, para novo casamento, basta a verificação e procedimentos paroquiais;

- se a pessoa se casou depois da promulgação do CIC 83 e antes do Omnium in mentem, é necessário ver se estava no caso previsto pelo abandono da Igreja Católica por ato formal (quanto a interpretação deste "ato formal" antes da Comunicação do Pontifício Conselho para os textos legislativos, o que implica a questão da retroatividade ou não dessa interpretação, prefiro me calar).

Côn. Carlos Antônio da Silva



[1] As alterações no Catecismo da Igreja Católica foram feitas em 1997. No Motu proprio o Papa menciona uma alteração feita no n. 1581 do Catecismo. O mesmo afirma D. Francesco COCCOPALMERIO, em artigo no l'Osservatore Romano (Le ragioni di due interventi, OR ed. italiana 16 deciembre 2009). Porém, este número do Catecismo, em todas as versões que pudemos consultar (inclusive no site do Vaticano), continua a dizer: "Pela ordenação, recebe-se a capacidade de agir como representante de Cristo, cabeça da Igreja. na sua tríplice função de sacerdote, profeta e rei". A modificação foi feita no n. 875: "É d'Ele (Cristo) que os bispos e presbíteros recebem a missão e a faculdade (o «poder sagrado») de agir na pessoa de Cristo Cabeça e os diáconos a força de servir o povo de Deus na «diaconia» da Liturgia, da Palavra e da caridade, em comunhão com o bispo e com o seu presbitério". O mesmo COCCOPALMERIO, em apresentação do Motu proprio feita na internet ("Le ragioni di due modifiche" texto que parece coincidir em grande parte com o texto de l'Osservatore Romano acima citado; cf. http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/intrptxt/documents/rc_pc_intrptxt_doc_20091215_omnium-in-mentem_it.html) cita também o c. 1581, afirmando, logo a seguir que as mudanças foram feitas na "redazione di questo n. 875" (!).

[2] Utilizamos a tradução da Conferência Episcopal Portuguesa, mais conforme à tradução utilizada pelo site do Vaticano, da nova redação promulgada pela Omnium in mentem. Na tradução do Brasil: "Por divina instituição, graças ao sacramento da ordem, alguns entre os fiéis, pelo caráter indelével com que são assinalados, são constituídos ministros sagrados, isto é, são consagrados e delegados a fim de que, personificando a Cristo Cabeça, cada qual no seu respectivo grau, apascentem o povo de Deus, desempenhando o múnus de ensinar, santificar e governar".

[3] No original latino são alteradas apenas estas palavras finais: "in persona Christi Capitis munera docendi, sanctificandi et regendi adimplentes, Dei populum pascant" para "novo et peculiari titulo Dei populo inserviant".

[4] Os autores, em número cada vez maior, se recusam admitir a associação tradicional de At 6,1-6 com o que posteriormente se chamou de ministério diaconal. Com efeito, no texto não se encontra o termo διάκονος (que aparece pela primeira vez no Novo Testamento apenas em Fl 1,1, passagem de sentido discutível, e 1Tm 3,8); em At 6,3 aparece apenas o verbo διακονέω (servir às mesas). Os Sete também se mostram realizando tarefas bastante diferentes do servir à mesa: Estevão prega (At 6,8-10); Felipe prega, faz exorcismos, batiza (At 8,5-8.38). Trata-se , provavelmente, de verdadeiros dirigentes do "grupo helenista", mais aberto às inovações, com maiores reservas ao Templo e às tradições judaicas (cf. At 7,47-50), e que, por isso, foram mais cedo alvo das perseguições (At 8,1b).

[5] A. FAIVRE, "‘Servir': lês derives d'um ideal. D'um ministère concret à une étape ritualisée " in A. HAQUIN - Ph. Weber (dir.) : Diaconat, XXIe siècle. Actes du colloque du Lovain-la-Neuve (13-15 septembre 1994) Lumen Viatae - Novais - Cerf - Labor et Fides, 1997, 58.

[6] Presbiterorum ordinis, assinado na véspera do encerramento do Concílio! Em aula conciliar, vários Padres conciliares se manifestaram sobre a necessidade de satisfazer as expectativas dos presbíteros de um documento referente a eles.

[7] A posição contrária, que nega a sacramentalidade do diaconato, defendida por ex. por Jean BEYER antes do Concílio (Nature et position du sacerdoce, NRTh 76 [1954] 356-373, 469-480, retomada, porém, em De diaconatu animadversiones PRMCL 69 [1980] 441-460) não parece conciliável com o ensinamento conciliar. A meu ver, diante do texto da LG 29, também não se sustenta a afirmação da Comissão Teológica Internacional: "Vatican II ne fait aucune affirmation explicite à propos du caractère sacramentel du diaconat" (Le Diaconat: evolution  et  perspectives. http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/cti_documents/diaconate-documents/cap7.html. Acesso 10/07/2010 16:52.

[8]http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cclergy/documents/rc_con_ccatheduc_doc_19980331_directorium-diaconi_po.html

[9] "A fórmula essentia et non gradu tantum, usada no texto conciliar, deve ser interpretada a partir de sua gênese histórica, que remonta a uma alocução de Pio XII em 1854 (Magnificate Dominum, 2 nov. 1954: AAS 46 [1954] p. 669), na qual foi usada com a intenção de refutar toda idéia de delegação ou de paridade nas relações entre comunidade e ministros sagrados. A evocação da gênese histórica explica como a fórmula pode dizer muito ou muito pouco: diz muito, se lida à luz do atual uso comum do termo ‘essência', segundo o qual entre os dois sacerdócios parece se abrir como que um abismo; diz muito pouco se lida à luz do linguajar escolástico, no qual foi originalmente formulada, onde essência se refere a todo modo de existir, pelo que a fórmula não diz nada mais que os dois sacerdócios tem cada um a sua especificidade, sem com isto definir tal especificidade. A primeira interpretação, que exaspera a diferença, é inaceitável à luz do mesmo Vaticano II, que vê um sacerdócio ordenado ao outro; a segunda necessita ser esclarecida, iluminando o específico do sacerdócio ministerial no contexto da ministerialidade mais ampla da Igreja. Este específico não pode ser individuado em uma maior ou menor intensidade de participação no único sacerdócio de Cristo (pois então a diferença seria de grau!): sobre a base desta participação comum a todos, fundamento da unidade que precede toda distinção, são especificadas as diversas formas ministeriais, que representam em forma diversa o único Pastor, Sacerdote e Profeta" (Bruno FORTE, La chiesa ícona della Trinità. Breve Ecclesiologia, Editrice Queriniana, Brescia, 1995, p. 30-31; não seguimos a tradução brasileira "A Igreja ícone da Trindade", Ed. Loyola, São Paulo, 1987).

[10] "Quando se ordena um diácono, só o bispo, que o abençoa lhe põe as mãos sobre a cabeça, porque não é consagrado para o sacerdócio, mas para o ministério" (Statuta Ecclesiae antiqua 4, in Secretariado Nacional de Liturgia, Antologia Litúrgica, Fátima, 2003).

[11] A propósito ver Bernard SESBOÜÉ, Ministério y Sacerdocio, in Jean DELORME (dir.), El ministerio y los ministerios según el Nuevo Testamento, pp. 437-446.

[12] "Nella costituzione ecclesiologica Lumen gentium vengono esposte, in termini normativi, anche le basi teologiche del ministero ecclesiastico, a partire dall'assunto di fondo che il diaconato, al pari del presbiterato, partecipa di quell'unica consacrazione sacramentale che si conferisce per imposizione delle mani e che trova la sua pienezza nell'episcopato. Chi ha una conoscenza, anche solo sommaria, della storia della teologia sa bene quanto fosse poco familiare al tempo del concilio, un simile modo di esprimersi. Qui si scavalca, infatti, tutta l'evoluzione teologica del medioevo, per riallacciarsi alla liturgia e alla teologia dei primi secoli. Ora si spezzano quelle angustie che comprimevano il ministero ecclesiastico nel ministero presbiterale, visto esclusivamente a partire dell'ordine sacerdotale. In una visione così ristretta, com'era quella medievale, non si poteva riconoscere la dignità di sacramento né alla consacrazione espiscopale né a quella diaconale" (W. Kasper, Il diacono in prospettiva ecclesiologica di fronte alle attuali sfide nella Chiesa e nella società, in Teologia e Chiesa 2, Queriniana, Brescia, 2001 [tradução de Dino Pezzetta], pp. 155-156).

[13] "Ensina, porém, o sagrado Concílio que, pela consagração episcopal, se confere a plenitude do sacramento da Ordem, aquela que é chamada sumo sacerdócio e suma do sagrado ministério na tradição litúrgica e nos santos Padres" (LG 21b).

[14] Omnium in mentem.

[15] Ultrapassa os limites de nossa exposição a complexa questão origem histórica dos diversos ministérios ordenados, bem como a questão dos "presbíteros-epíscopos" do NT e a origem histórica do episcopado monárquico. A propósito ver Antônio José de ALMEIDA, O ministério dos presbíteros-epíscopos na Igreja do Novo Testamento, Paulus, São Paulo, 2001; bem como as obras coletivas El ministerio y los ministerios según el Nuevo Testamento, Ediciones Cristiandad, Madrid, 1975; Igreja e Ministérios (Semanas de Estudos Teológicos da Universidade Católica Portuguesa), Rei dos Livros, Lisboa, s/d.

[16] Assim o afirma a Ratio fundamentalis institutionis diaconorum permanentium 5: "specificum signum sacramentale Christi Servi" e o Papa João Paulo II: "Il diacono nel suo grado personifica Cristo servo del Padre, partecipando alla triplice funzione del sacramento dell'Ordine" (Insegnamenti VIII/1, 649).

[17] Notar que o título "Filho do Homem" (ao contrário do que pode sugerir à primeira vista) indica, conforme a tradição de Dn 7,13-14, a dignidade do Messias Juiz escatológico, que recebe poder e realeza eternos, e não sua humildade. "La antigua dogmática oponía frecuentemente Hijo de hombre a Hijo de Dios. Partiendo del dogma posterior, que llama a Jesús «verdadero Dios y verdadero hombre», se pensó que la calificación Hijo de hombre expresaba únicamente la naturaleza humana de Jesús, en oposición a su naturaleza divina. No se conocían entonces las especulaciones judías relativas a la figura del Hijo de hombre y no se advertía que, al aplicarse este título, Jesús se atribuía a sí mismo un carácter celeste, hasta divino". (O. CULLMANN, Cristologia del Nuevo Testamento, Sígueme, Salamanca, 1998, tradução de Carlos T. Gattinoni e Xabier Pikaza, p. 226). Daí a força da afirmação relativa ao Filho do Homem que veio para servir!

[18] Le Diaconat: evolution  et  perspectives VII,4.

[19] Conforme o CCEO, os diáconos não podem administrar ordinariamente o Batismo (c. 677) e muito menos presidir (abençoar) matrimônios (c. 828).

[20] R. NAVARRO-VALLS, coment. ao c. 1108, in Comentario Exegético L Código de Derecho Canónico III/2, EUNSA, p. 1451.

[21] AAS 40 (1948) 305.

[22] Ibid.

[23] L. MIGUELEZ, comentário ao c. 1099, in Código de Derecho Canónico, BAC, Madrid, 1952.

[24] "Cân. 1071 § 1. Exceto em caso de necessidade, sem a licença do Ordinário local, ninguém assista: 4° - a matrimônio de quem tenha abandonado notoriamente a fé católica".

[25] F. COCCOPALMERIO, oc.

[26] "A questo proposito vennero segnalate motivazioni coincidenti, provenienti dall'esperienza giuridica: la convenienza di non avere in questi casi un trattamento diverso da quello dato alle unioni civili dei battezzati che non fanno alcun atto formale di abbandono; la necessità di mostrare con coerenza l'identità ‘matrimonio-sacramento'; il rischio di favorire matrimoni clandestini; le ulteriori ripercussioni nei paesi dove il Matrimonio canonico possiedi effeti civili, e così via" (ibid.).

[27] Cf. ibid.

[28]http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/intrptxt/documents/rc_pc_intrptxt_doc_20060313_actus-formalis_po.html

[29] Cân. 1127 § 1. No que se refere à forma a ser empregada nos matrimônios mistos, observem-se as prescrições do cân. 1108; mas, se a parte católica contrai matrimônio com outra parte não-católica de rito oriental, a forma canônica deve ser observada só para a liceidade; para a validade, porém, requer-se a intervenção de um ministro sagrado, observando-se as outras prescrições do direito.